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Tutti
i sintomi portano a Roma1
Antonio Di Ciaccia1
a.diciaccia@flashnet.it
Como título de minha intervenção,
quis recorrer a um ditado italiano, sem dúvida muito conhecido
nas outras línguas, tal como o ratifica um jornal americano a respeito
do imbroglio Nigergate sobre a fabricação das falsas
provas – todas italianas – que serviram a Bush para justificar
a guerra no Iraque. Mas não lhes falarei dessa Roma da política-politiqueira.
Roma é a cidade onde acontecerá o próximo Congresso
da Associação Mundial de Psicanálise, de 13 a 17
de julho, sobre o tema : « O Nome-do-Pai : prescindir, servir-se
dele ». Esse título foi extraído de uma passagem do
Seminário : Joyce, o sinthoma3,
de Lacan, que propiciou as bases para estas Jornadas da Escola da Causa
Freudiana. Nesse sentido, em nome da Scuola Laciana di Psicoanalisi, convido
os colegas da AMP a estarem em Roma nessa ocasião. Como vocês
sabem, esse Congresso é reservado aos membros da AMP.
A preparação do Congresso está em seu auge : vocês
já podem consultar o site on-line, aberto para esse fim;
o volume preparatório, no momento disponível apenas em CD,
reúne em cinco línguas mais de cem itens sobre o Nome-do-Pai,
escritos por colegas da AMP. Permitam-me dizer-lhes – eu que fui
um dos primeiros a ler essa obra por inteiro – que se trata de um
trabalho monumental, sempre útil, por vezes original, apaixonante
em seu conjunto, embora peque por alguns esquecimentos e, em alguns trechos,
por uma certa repetição.
Todavia, o título de minha intervenção -Tutti
i sintomi portano a Roma – não pretende fazer referência
aos psicanalistas que tomarão a via Romea, ou a via Francigena,
caminhos que classicamente conduzem os peregrinos à tumba de São
Pedro. Não me refiro nem aos psicanalistas-sintomas que podemos
ser, nem aos psicanalistas-parceiros-sintomas de um sujeito analisante,
função que nos cabe em nosso trabalho.
Refiro-me, então, ao fato de que em Roma – entendida como
o emblema de um vasto movimento que, apesar dos conflitos e cisões,
modelou o mundo ocidental -, os sintomas, e até mesmo os problemas-sintomas
de nossa civilização terão um destaque.
Portanto, a Roma à qual me refiro é a Roma da religião,
a Roma da religião romana, « a verdadeira », como diz
Lacan4.
Nessa acepção, Roma é o símbolo de um lugar
virtual aonde todos os problemas-sintomas de nosso mundo atual vêm
à tona.
Não farei a lista dos problemas-sintomas. Enunciarei apenas três
deles.
Como vocês sabem – foi anunciado on-line –
justo antes do Congresso, no dia 11 de julho precisamente, Jacques-Alain
Miller dará uma Lectio Magistralis em Roma, na Università
Pontifícia. Esta será, sem dúvida, a ocasião
para se medir as convergências paralelas – como disse Aldo
Moro -, ou os paralelismos divergentes – digo eu – entre dois
discursos tão próximos e tão estranhos : o discurso
religioso e o discurso analítico.
O primeiro problema-sintoma.
É na religião romana que se realiza a conjunção
entre, por um lado, o Deus dos filósofos e, por outro, o Deus de
Abraão. Ora, esse Deus adorado pela religião é um
verdadeiro sintoma, no sentido etimológico do termo, porquanto
Deus é o Nome no qual se encontram amalgamadas duas instâncias
estruturais heterogêneas, aparentemente às mil maravilhas.
O Deus dos filósofos é o Sujeito-suposto-Saber, que é
da ordem do significante e do universal, cuja estrutura é totalmente
diferente – como o lembra Lacan a partir de Pascal, e como enfatizou
Jacques-Alain Miller no ano anterior às Jornadas da Escola –
do Deus do particular, ou seja, o Deus de Abraão, de Isaque e de
Jacó, e que, em nossa linguagem, entraria na categoria do objeto
a.
Para pôr as coisas às claras, formularei à religião
romana a seguinte questão : que lugar terá o Islã
nesse contexto ? Como o Deus do Islã poderá estar de acordo
com o Deus da Bíblia ? Pelo lado da unicidade e da universalidade
porque seus fiéis são monoteístas ? Ou pelo lado
do particular, o que poria em série o Deus de Abraão, o
de Jesus e o de Maomé ? No momento, a solução encontrada
por Roma – solução apenas aparente -, vocês
poderão vê-la no discurso do Papa Bento XVI pronunciado no
verão passado em Colônia, no qual, por um lado, ele amalgama
as três religiões monoteístas, em razão da
crença em um Deus único e, por outro, ele faz convergir
o Deus do particular sobre a única figura de Abraão como
pai comum dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Mas,
será que se trata de fato de uma solução sustentável
? Ora, parece que para fazer face à estável secularização
do cristianismo, pelo menos a partir das Luzes, e diante do inatacável
fideísmo do Islã, tomou-se a decisão de cerrar as
fileiras na tentativa de uma nova restauração dos valores
clássicos. Será esta a boa solução ?
Que contribuição a psicanálise poderia dar diante
de um problema-sintoma que requer, antes, uma solução do
ponto de vista da estrutura ? O que estou dizendo, é claro, não
passa de uma pura utopia.
Passemos ao segundo problema-sintoma.
Trata-se daquele que, em Roma, será chamado de problema
de ordem moral : ele concerne à relação de cada sujeito
com seu desejo e com seu gozo. No cristianismo, sempre se considerou que
essa relação deveria ser gerida por uma mediação.
E o discurso religioso se propõe com mediador.
Ora, o discurso religioso, pelo menos do cristianismo, nessa relação
de um sujeito com seu desejo e com seu gozo, barra de modo muito particular
o corpo, o corpo que deseja, o corpo que goza. O desejo é incentivado,
mas sob a condição de ser sublimado para além da
concupiscência da carne; e o gozo é prometido, porém,
ao corpo eternizado do Juízo Final.
Por causa da secularização, o mundo ocidental moderno, pelo
contrário, é caracterizado por uma propriedade considerada
adquirida e inalienável, que se poderia definir nos seguintes termos
: todo indivíduo tem direito ao desejo e ao gozo através
da intermediação de seu próprio corpo. As diversas
limitações impostas não concernem à moral
como tal, mas a problemas de ordem social.
É nesse contexto que cada um pode bradar pelo direito de viver
a própria sexualidade. É também nesse contexto que
o homem de hoje se vê confrontado com situações inéditas,
tais como a fecundação heteróloga, o casamento entre
homossexuais, a eutanásia, a manipulação genética,
a utilização das células estaminais, para não
falar dos velhos problemas como o aborto ou o uso de drogas.
As duas posições, a religiosa e a que chamarei secularizada,
se afastaram tanto que, se durante os períodos mais efervescentes
elas se desprezaram mutuamente, já há algum tempo elas simples
e reciprocamente se ignoram. A separação entre o poder do
Estado e o poder religioso - conquista do padre veneziano Paolo Sarpi
cujo nascimento data do tempo de Galileu – sancionou a distinção
entre os dois níveis : o da moral religiosa e o da moral social.
Atualmente, as duas posições são levadas
a confrontar-se de novo, mas a partir de um outro ângulo, porquanto
um novo entendimento e uma nova ligação despontam entre
o poder político e o poder religioso. À semelhança
do islamismo no qual a separação entre o Estado e a religião
é impensável, no mundo ocidental se torna evidente que também
nesse nível há uma nova tentativa de restauração.
Os Estados Unidos, por exemplo, que durante muito tempo se mantiveram
tão frios em relação ao Vaticano, nos dias de hoje
estão sempre prontos a fazer um certo catolicismo representar o
papel de integralista de além-mares.
O terceiro problema-sintoma é a relação do
homem com a ciência.
Vocês se lembram do que diz Lacan a esse respeito em O
triunfo da religião5:
quanto mais a ciência produzir voragens de angústia no tecido
do mundo, mais a religião se sentirá à vontade para
preencher esse real, sem qualquer dificuldade, com o sentido. A religião
é capaz de dar sentido a tudo. E, assim fazendo, apazigua os corações.
Como recorda Lacan, a religião não se deu conta imediatamente
da fortuna que lhe caiu nas mãos por causa da ciência moderna.
Todavia, o problema se torna complexo do momento em que a própria
ciência passa a ocupar o lugar do Sujeito-suposto-Saber. Desse modo,
ela tenta ocupar um lugar digno de todo respeito no discurso religioso.
Assim, por um lado, a ciência abala e enfraquece o Sujeito-suposto-Saber
da religião, mas, por outro, a própria religião utiliza
aquilo que se apresenta como discurso científico em prol dos seus
próprios fins. Um exemplo entre vários outros: a posição
indiscutível da Igreja no que concerne ao aborto. Embora ninguém
possa provar que haja uma alma no instante da concepção,
ela considera a questão concluída a partir não das
Sagradas Escrituras, mas sim das afirmações de um médico
do século XVII da Universidade de Louvain que as apresentou como
científicas.
Confrontada com esses problemas-sintomas a religião vem reagindo.
Roma vem tomando posição. De modo cada vez mais nítido,
ela vem se opondo à posição secularizada revelando
cartas que trazem os indícios de uma restauração.
Seu novo inimigo é chamado por ela de: “relativismo”.
É contra o relativismo religioso que ela recorda e exalta a centralidade
do Cristo, título da primeira e próxima encíclica
papal. É contra o relativismo moral que ela recorda e exalta a
retomada dos valores clássicos da moral. Ela se opõe, então,
ao relativismo entendido como o modo de vida adotado por cada um por considerá-lo
válido para si e para sua própria felicidade. A Igreja considera
que isso se faz em detrimento dos direitos de Deus, da Igreja e do homem.
Contra o relativismo, o Papa atual incita os católicos a não
confinarem a fé no campo privado, mas a manifestá-la não
só no plano social como também no político.
A psicanálise teve e tem um grande peso na secularização
do mundo moderno. A psicanálise teve e tem um peso na instalação
do relativismo. Não se deve esquecer de que a psicanálise
não é estranha à subversão dos usos e costumes
do homem ocidental. Por certo que ela não está sozinha nisso,
ela faz parte das causas dessa mudança que, embora tenha encontrado
seu terreno fértil no judeo-criatianismo, teve seu começo
no tempo das Luzes culminando não com o “Deus está
morto”, de Nietzche, mas com o “Deus é inconsciente”,
de Lacan6.
Por sua parte, a própria psicanálise, como dizia Jacques-Alain
Miller em Comandatuba, se encontra em uma encruzilhada: há uma
prática da psicanálise que podemos chamar de reacionária,
uma prática que chamamos passadista e uma terceira que acredita
poder aderir ao real da ciência, dizia Miller7.
Todas essas práticas da psicanálise convêm perfeitamente
à religião: a primeira por voltar a adorar as insígnias
do Pai; a segunda por permitir que os fiéis-pacientes encontrem
refúgio num mundo imaginário; a terceira por tirar proveito
dos assim chamados resultados da neuro-psicologia.
Portanto, não devemos nos surpreender com o fato de que os cursos
da Faculdade de Psicologia de uma das mais importantes Pontifícias
Universidades, a Gregoriana, a Universidade romana dos jesuítas,
misturam sabiamente as diversas práticas psi, todas orientadas,
é verdade, para a promoção e o reconhecimento do
valor do sujeito humano, desconhecendo, porém, para não
dizer foracluindo, o sujeito do inconsciente.
De fato, a restauração em curso, este processo que esta
acontecendo para resolver os problemas-sintomas, tem como objetivo restabelecer
um acordo entre o sentido e o real, a fim de que eles possam caminhar
tranqüilamente de mãos dadas. Para tanto, a religião
dos dias de hoje pede ajuda à ciência e às assim chamadas
ciências psi.
Tudo isso funcionaria às mil maravilhas se não houvesse
o pequeno verme da sexualidade que, em contrapartida, faz furo –
e felizmente continuará a fazê-lo, sempre –, não
permitindo à globalização do sentido recobrir tudo
com um saber pleno. Todavia, ao tentar fazê-lo, a religião,
de um lado, reenvia essa globalização do sentido ao tempo
da escatologia e, do outro, nos dias de hoje, elimina a sexualidade de
seu programa. Com essas manobras, a religião, no fim das contas,
pode chegar a sustentar aquilo que em nosso modo de dizer chamaríamos
de: “há relação sexual”.
Nossa prática psicanalítica não se reduz às
três práticas psicanalíticas citadas.
A nossa é secularizada.
A nossa torna sua a lição do relativismo.
A nossa dá lugar à sexualidade, que não é
o pansexualismo do qual Freud foi acusado pela religião, nem tampouco
um fantasmático transbordamento de gozo o qual permanece estruturalmente
interditado para o falasser.
Nossa prática se ocupa com o que faz furo nesse real que o sentido
gostaria de recobrir. Um furo que o sentido nunca preenche e que Lacan
enunciou em seu aforismo « não há relação
sexual ».
Nossa prática, a fim de se ocupar desse furo, não se preocupa
com o sintoma uma vez que este se dissolve no universo do sentido, mas
sim à medida que ele assinala no contemporâneo, para um sujeito
particular, tanto o que para ele não funciona em relação
ao mundo que funciona, quanto o que, para ele, pelo contrário,
funciona em relação ao imundo de seu real.
Sim, a psicanálise fomenta o relativismo. Ela o fomenta porque
aquilo de que ela se ocupa é o particular do sintoma a fim de transformá-lo
- graças ao universal da linguagem – no singular do sinthoma.
Para o falasser, o singular do sinthoma é a cifra de seu destino.
Mas não apenas isso, visto que pode ser também a cifra de
uma invenção : a sua. Aquela pela qual ele é uma
exceção em relação a qualquer outro.
Paris, 6 de novembro de 2005
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
1“Todos
os sintomas levam à Roma”. Intervenção nas
Jornadas da Escola da Causa Freudiana, nos dias 5 e 6 de novembro de 2005.
O texto original foi traduzido para o francês pelo autor. O título
foi mantido em italiano. NT: a presente tradução foi feita
do texto original em italiano.
2AME
da École de la Cause Freudienne - ECF e da Scuola Lacaniana di
Psicoanalisi del Campo Freudiano – SLP. Presidente do V Congresso
da AMP em Roma, 2006.
3Lacan,
J. (2005). Le séminaire, Livre23, Le sinthome. Paris: Seuil.
4Idem.
(2006). Dei Nomi-sel-Padre deguito da Iltrionfo ella religione (p. 99).Torino:
Einaudi.
5Idem,
ibidem.
6Idem.
(2004). Il seminári, Libro 11, I quatro concetti fondamentali della
psicoanalisi (p. 58). Turim: Einaudi.
7Cf.
Miller, J.-A.( fevereiro de 2005). Uma fantasia. Opção lacaniana
– Revista Internacional de Psicanálise, 42, 7. São
Paulo: Ed. Eólia.
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