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“Eu não posso dar o que
os homens chamam amor”:
Sintoma e nome próprio na obra de Machado de Assis
Ana Maria Clark Peres1
acperes.bh@terra.com.br
Resumo: Foi necessário a Machado de Assis um longo percurso
para que a frase “eu não poso dar o que os homens chamam
amor”, presente em Memorial de Aires, ecoasse não como o
registro de uma impotência, mas de uma impossibilidade: fazer existir
a relação sexual. Aproximando o tratamento analítico
da escrita literária, a autora destaca nesta o trabalho de construção
de um nome próprio e, através de um rastreamento dos detalhes
sintomáticos da obra machadiana, chega a um modo distinto, próprio
de gozar, ao qual ela associa o estilo do autor.
Palavras-chave: sintoma; nome próprio; nome de gozo; estilo.
Abstract: It has been a long time before the sentence “I
can give not what men call love” could echo to Machado de Assis
as impossibility rather than impotence when it referred to the actual
sexual relationship existence. Making a parallel between analytical treatment
and literary writing, in this work, the author highlights the construction
of a proper name. Tracing back symptomatic details in Machado’s
work, she indicates a specific way of jouissance that can be associated
with the author’s style.
Key words: Symptom; proper name; jouissance name; style.
Em Memorial de Aires, último romance de Machado de Assis, publicado
em 1908, mesmo ano de sua morte, o narrador-personagem conselheiro Aires
apropria-se, com insistência, de um verso do poeta romântico inglês Shelley:
“I can give not what men call love”. Aparentemente, a idade avançada de
Aires é que o lança nessa suposta impotência, que o impediria de dar “o
que os homens chamam amor”, mas se articulo esse último romance machadiano
aos anteriores, procuro sustentar a tese de que foi necessário a Machado
de Assis um longo percurso para fazer ecoar tal frase, através de seu
narrador, não como registro de uma impotência, mas de uma impossibilidade:
a de “dois fazer UM” ou, em outros termos, a de fazer existir a relação
sexual. 2
Afinal, Aires constata que não pode dar o que não tem, 3
ainda que continue amando... Se, na instigante trajetória literária do
escritor, detectamos perda de gozo, vale ressaltar também o gozo que resta
no final, um modo distinto e bastante próprio de gozar, ao qual podemos
associar o estilo do autor.
Uma referência importante para a abordagem dos escritos machadianos foi
a afirmativa de Lacan, em “Lituraterra”, a propósito de Joyce, precisamente
quando ele o associa, de alguma forma, ao que ocorre no fim de uma análise,
ao dizer que o autor irlandês conseguira ir “direto ao melhor que se pode
esperar da psicanálise em seu término”. 4
A partir daí, busquei aproximar o percurso de uma análise do percurso
de alguns escritores. Se num tratamento analítico, de acordo com
Marie-Hélène Brousse, “eleva-se o sintoma à dignidade de um estilo de
vida”, 5
não ocorreria algo semelhante na trajetória de determinados escritores,
que acabam por atingir, creio eu, um estilo próprio, por meio de um
tratamento singular do sintoma? Nesse processo, tanto o de uma análise
quanto o de algumas escritas literárias, destaco o trabalho crucial de
construção de um nome “próprio”, de um “nome de gozo”, o qual “se acrescentaria
não como metáfora da presença do sujeito, mas designando a verdade de
seus modos de satisfação”. 6
Com relação a Machado de Assis, seria possível detectar em seu percurso
literário, notadamente em seus nove romances, a construção de um nome
que lhe permitisse afirmar: “Eu gozo assim”, nome mutável, e que também
fosse passível de provocar uma satisfação especial em seus leitores?
Para demonstrar minha hipótese, procurei dialogar, sobretudo, com proposições
de Antoine Compagnon e Sérgio Laia. Do primeiro, recortei as expressas
em O demônio da teoria, quando ele alude a uma “coerência textual”
que equivale à assinatura do autor, a “uma rede de pequenos traços
distintivos, um sistema de detalhes sintomáticos [...] tornando
possível uma identificação ou uma atribuição”. 7
De Laia, que também dialoga com Compagnon e, na esteira de Jacques-Alain
Miller (o qual, em O osso de uma análise, nos fala dos “restos
suplementares que escapam à mortificação [significante] e que são os objetos
a”
8), destaquei a assertiva
relativa aos “significantes, formas de encadeamento, escolhas e até impulsos
ou ‘restos suplementares’ à palavra que, especialmente por sua insistência,
pela repetição que eles fazem incidir sobre os textos, acabam marcando
um sujeito, uma obra, diferenciando-os de outros sujeitos e de outros
escritos”.9
Se em Compagnon, o “sintomático” que está em questão diz respeito a uma
“visão de mundo” do escritor, a partir da contribuição da psicanálise,
diferentemente, busquei abordar os sintomas como “querendo dizer” alguma
coisa, mas também se referindo “a uma satisfação, a um gozo que afeta
o corpo daquele que escreve, um gozo que é a substância mesma do que está
escrito e concerne ao próprio autor”.10
Uma questão de estilo, portanto.
Ora, ao rastrear detalhes sintomáticos na obra de Machado de Assis,
um se destacou em especial: os giros obstinados do escritor em torno da
perfeição. Das tantas variantes desses giros instigantes, em que
se lapidam pouco a pouco os escritos, vale sublinhar uma, que se refere
ao tratamento dado ao amor em sua obra: a procura pelo casal perfeito,
que viabilizaria um amor “pleno”. Em quase todos os seus romances, mesmo
naqueles em que ele ultrapassou a fase dita “romântica”, deparamos com
uma cena que irá se repetir insistentemente, não sem variações: a do casal
que se anseia “perfeito”, perfeição essa que aparenta ser atingida por
breves, fulgurantes momentos, mas que logo se desfaz. 11
Dissolvido o casal, o que resta, então, é um personagem confrontado com
a perda, vivenciada na solidão, na exclusão, na amargura, e que se torna
espectador da “plenitude” perdida. Nessa montagem, o olhar tem
papel fundamental: afinal, é por sua via que se atinge a suposta perfeição,
justamente no instante fugidio em que os amantes fundem, harmonizam seus
olhares, olhando um para o outro.
Senão, vejamos, dentre inúmeros outros exemplos, lampejos de tal ordem:
em Ressurreição (“Os olhos de ambos [procuravam] fundir as duas
almas no mesmo raio de luz”12);
em Helena (“O que eles disseram um ao outro, com os simples olhos,
não se escreve no papel, não se pode repetir ao ouvido [...]. As mãos,
de impulso próprio, uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum
receio, nenhuma consideração deteve essa fusão de duas criaturas nascidas
para formar uma existência única”.13);
em Dom Casmurro (“Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no
chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... [...]
Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das
duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica.”14).
Quanto ao personagem excluído da cena, no final do enredo, uma vez desfeita
a “perfeição” do casal, temos o exemplo de Félix (em Ressurreição),
que sofre com o afastamento de Lívia, cansada dos ciúmes incontroláveis
do noivo; de Estevão (em A mão e a luva), que vê sua amada, Guiomar,
se unir, sem amor, a Luís Alves; de Estácio (em Helena), subitamente
sozinho, com a morte da amada Helena; de Brás Cubas (em Memórias
póstumas de Brás Cubas), que, excluído do mundo dos vivos, assiste
ao espetáculo (perdido) da vida, solitário, amargurado, melancólico, sarcástico,
relembrando casais dissolvidos que ele próprio formou com Marcela, Eugênia,
Virgília, Nhã-loló; de Rubião (em Quincas Borba), que, louco e
abandonado, vê-se excluído do convívio social e, solitário, acaba morrendo:
entre outras perdas, perdeu-se também a miragem de “plenitude” do casal
Rubião/Sofia, cujos olhos se fundiram por tantas vezes; de Dom Casmurro
(no romance homônimo), o escritor solitário no qual Bentinho se transformou,
que se debruça sobre seu passado e, sobrevivente ao “casal perfeito” desfeito
pela suposta traição de Capitu (“a dos olhos de ressaca, de cigana oblíqua
e dissimulada”), confronta-se com um olhar perdido, tentando capturá-lo
pela via da escrita.
Ora, pode-se observar que, justamente neste romance, que deu a Machado
uma notoriedade incomum, proporcionando-lhe, desde então, um casamento
“perfeitamente” indissolúvel com seus leitores, encontramos um “excluído”
diferente. Por meio de longos meandros, chego ao ponto de identificá-lo
ao próprio escritor,15
acreditando ser possível afirmar que Machado goza enquanto casmurro, solitário
(“ímpar”), ensimesmado, obstinado, teimoso (haja vista as repetições que
teimam em seus escritos), espectador de uma perfeição almejada – e impossível.
Goza como um casmurro-escritor, intratável, não qualquer um, mas
o que captura seu parceiro-leitor com a singularidade de seu estilo, que
sabe fazer, pois, com seu sintoma, acabando por lidar com uma solidão
que ultrapassa o isolamento com relação aos semelhantes, talvez a “solidão
essencial” tal qual a concebe Maurice Blanchot.16
Goza não como um defunto-autor (Brás Cubas), ou como um louco (Quincas
Borba, Rubião), mas como um escritor desejante, vivo, “vivíssimo”, na
medida em que consegue manipular seu público-parceiro, convencê-lo, enredá-lo,
seduzi-lo. Quando chegamos a esse ponto de identificação, deparamos com
uma exigência, uma cifragem de gozo, do autor e nossa, seus leitores,
que giramos sem cessar em torno desses escritos magnetizantes. O curioso
é que, para muitos críticos, a obra é sinônimo de perfeição justamente
quando ela escancara a não-relação sexual, transmitindo-nos o real do
gozo e provocando, assim, incontáveis, indecidíveis leituras.
Mas no fio do tecido dos enredos machadianos, o que foi feito do “casal
perfeito”? Do “fazer UM de dois”? Ora, os últimos romances sinalizam seu
destino. Machado inventa um novo escritor, o conselheiro Aires, no qual
Dom Casmurro se transmuta. Como se sabe, a Aires é atribuída a autoria
de Esaú e Jacó e do Memorial de Aires. Oscilando entre poder
ou não amar, como se viu no início, ei-lo, no final deste último livro,
amando ainda a jovem Fidélia, mesmo que sob a forma de boas lembranças:
“Não acabarei esta página sem dizer que me passou agora pela frente a
figura de Fidélia, tal como a deixei a bordo, mas sem lágrimas. Sentou-se
no canapé e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita em graça, eu
desmentindo Shelley com todas as forças sexagenárias restantes”.17
Trata-se, a meu ver, de um novo Machado-Casmurro, ensimesmado, “intratável”,
que rodeia, agora, novos amores, novos casais, aquele que, por saber,
finalmente, que não se pode dar o que não se tem, arquiteta encontros
amorosos que se efetivam, e que não são “totalmente perfeitos”: Aguiar
e Carmo, por exemplo, gozam sua união (“Ao fundo, dei com os dous velhos
sentados, olhando um para o outro”18),
mas com uma “ferida”: a de não terem tido filhos. O mito de “Tristão e
Isolda”, do amor impossível, é igualmente subvertido pela via do casal
Tristão e Fidélia, que vivem, na existência terrena, sua parceria amorosa,
mesmo com o sofrimento de abandonar Aguiar e Carmo, seus pais “postiços”,
a quem tanto amam, quando partem para a Europa. E é quando o “Casmurro”
se transmuta em “Aires”, a ponto de nos oferecer esse “memorial de gozo”
reinventado, que Machado de Assis pode, finalmente, assinar sua obra,
no último romance: Memorial de Aires.19
1Professora
da Faculdade de Letras da UFMG; Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise
– seção Minas Gerais.
2Como
nos diz Lacan, “o amor é impotente, ainda que seja recíproco,
porque ele ignora que nada mais é do que o desejo de ser Um, o que
nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos
[d’eux]. A relação dos [d’eux] quem? – dois
[deux] sexos. Lacan, J.(1975) Le séminaire, Livre 20, Encore (p.
12). Paris: Seuil. Tradução minha.
3A
esse propósito, lembro ainda Lacan, quando afirma, na esteira de
O banquete, de Platão, que “o amor é dar o que não
se tem”. Lacan, J. (1991). Le séminaire, Livre 8, Le
transfert (p. 46). Paris: Seuil. Tradução minha.
4Lacan,
J. (2003). Lituraterra. In Outros escritos (p.15). (Trad. Vera Ribeiro)
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
5Afirmação
feita em conversa ocorrida em Paris em março de 2003. Tradução
minha.
6Mandil,
R. (2003). Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce (p. 205). Rio de Janeiro:
Contra Capa. Quanto ao “nome próprio”, procuro tomá-lo,
neste trabalho, em duas vertentes: inicialmente, enquanto “nome de
gozo”, um nome que é bastante “próprio”
ao sujeito, ao evidenciar sua forma peculiar de gozar; mais adiante, enquanto
“nome de família”, que é capaz de se distinguir
do “nome de gozo” do sujeito.
7Compagnon,
A. (2003). O demônio da teoria: literatura e senso comum (pp. 78-9).
(2. Reimp) (C. P. B. Mourão e C. F. Santiago, trad). Belo Horizonte:
Editora UFMG. Grifos meus.
8Miller,
J.-A. (1998). O osso de uma análise (p.97). Salvador: EBP-BA/Biblioteca
Agente. (Texto estabelecido por Sônia Vicente).
9Laia,
S. (2001). Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a loucura (p. 102). Belo
Horizonte: Autêntica.
10Idem,
ibidem, p. 103.
11Vale
sublinhar, também no conto, a procura pelo “casamento perfeito”,
agora das palavras, como em “O cônego ou a metafísica
do estilo”, que nos traz a tentativa de um encontro amoroso peculiar:
Na instigante narrativa acerca de um cônego que busca as palavras
mais adequadas para um sermão, Sílvio, o substantivo, está
à cata de Sílvia, o adjetivo, tal como os amantes do “Cântico
dos Cânticos”, e o narrador machadiano acaba por nos apresentar
sua fantástica descoberta “psicolexicológica”
sobre o sexo das palavras, que se “amam umas às outras. E casam-se.
O casamento delas é o que chamamos estilo”. Assis, M. de. (1997).
O cônego ou a metafísica do estilo. In Obra completa (v. II.
p. 571). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
12Assis,
M. de (1997). Ressurreição. In Obra completa. (v.I, p. 179).
Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
13Idem
(1997). Helena. In Obra completa (v. I. p. 386). Rio de Janeiro: Nova
Aguilar.
14Idem
(1997). Dom Casmurro. In Obra completa (v. I, p. 823-824). Rio de Janeiro:
Nova Aguilar.
15
A esse respeito, remeto o leitor para meu artigo “Machado de Assis,
Dom Casmurro”, in: Clark Peres, A. M., Peixoto, S. A. & Oliveira,
S. M. P. (2001). O estilo na contemporaneidade (pp.81-96). Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG.
16Cf.
Blanchot (1955). L’espace littéraire (pp. 11-32).
Paris: Gallimard.
17Assis,
M. de (1997). Memorial de Aires. In Obra completa (v. I. pp. 1198-1199).
Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
18Idem,
ibid. p.1200.
19Era
justamente desta forma que o autor costumava assinar cartas a amigos e advertências
aos leitores: M. de A. |