O maior amor do mundo

Elisa Alvarenga1

elisaalv@terra.com.br

Resumo
: A autora utiliza o argumento do filme “O maior amor do mundo”, de Cacá Diegues, para pensar um dos nomes do amor. O filme relata a história de um homem que, na solidão de um câncer terminal, descobre um novo sentido para o desamor do pai, quando este lhe revela a dor de ter perdido, no parto, a mulher que ele tanto desejara: sua verdadeira mãe. A salvação do personagem acaba decorrendo de sua própria insistência em obter do pai um nome para esse amor, humanizando esse desejo que o gerou. Esse filme ilustra o que Lacan nos diz em RSI: um pai só tem o direito ao amor e ao respeito se ele tiver feito de uma mulher a causa do seu desejo.
Palavras-chave: pai; père-version; nome do amor; causa do desejo.

Abstract
: The author considers possible names for love based in the film argument by Cacá Diegues in “The greatest love in the world”. The film tells a story of a lonely and sick man who discovers a new meaning for his father’s indifference when the latter tells him the sorrow he had felt when he lost the woman he loved the character’s mother, as she gave him birth. She was the woman he actually desired and his true mother. He insisted then in making his father name such love, give it a name that could humanize that desire that generated him. That was his salvation. The film illustrates what Lacan says in RSI: a father can only have the right for love and respect if he has made out of a woman a cause for his desire.
Key words
: Father; père-version; love name; cause; desire.


O último filme de Carlos Diegues – “O maior amor do mundo” – pareceu-me uma ocasião oportuna para pensar um dos nomes do amor. Chamou-me a atenção o subtítulo acoplado ao nome do filme no seu cartaz: “ninguém está preparado para ele”. O que seria esse amor incomensurável, o maior do mundo, para o qual ninguém está preparado?

Carlos Diegues nos apresenta um homem de 55 anos que, às vésperas de sua morte, faz um retorno às origens – ao seu país, ao pai adotivo e à mãe, não aquela que o adotou, mas à original, aquela que o pariu no meio do lixo, na baixada fluminense. Apesar dos matizes do nosso Brasil miserável, da violência, das drogas e do lixo humano, não se trata de um filme sobre a violência, mas sobre um homem que, na solidão do seu câncer incurável, descobre o pai e o amor.

Antônio, anacrônico, desloca-se entre seu resto de vida e suas lembranças. Nascido no dia da derrota do Brasil pelo Uruguai na copa de 1950, a cada aniversário tem que ouvir do pai adotivo este motivo para não ter alegria de viver. Ele nos comove pela falta de ressonância que encontra no pai. Ao dizer-lhe que seus dias estão contados, recebe dele a resposta seca: “Todos nós vamos morrer”. Hospedado em um asilo de idosos, lúcido em seus 94 anos, o pai não se interessa pela morte do filho, como não se interessou por sua vida. Ao contar-lhe que poderá ser visto pela televisão, ao ser condecorado pelo Presidente da República, por seu trabalho como astrofísico, Antônio escuta do pai: “A televisão está estragada, e eu estou fazendo um abaixo-assinado para não consertá-la”.

Quando insiste, apesar de tudo, em saber se o pai nada tem a lhe dizer, este solta uma frase: “Você devia ter conhecido sua mãe”. Esta frase abre a porta para outro mundo, até então desconhecido para um astrofísico que em toda a sua vida só se interessou pelos corpos celestes. No momento em que seu melhor amigo entrava na luta armada contra a ditadura militar, ele só se interessava pelos primeiros passos do homem na lua, assim como faltou ao enterro da mãe adotiva para encontrar um professor americano e conseguir uma bolsa de estudos nos Estados Unidos.

“Então você sabe quem são meus pais biológicos?”, pergunta ao pai. Avaro de respostas ou de qualquer sinal de amor, o pai mostra-lhe uma foto e indica-lhe uma direção: foi lá que o buscou quando nasceu. Antônio vê, introduzida entre ele e o pai, uma mulher, única pista de vida nesse homem mortificado. Ao seguir a pista indicada pelo pai adotivo, Antônio descobre onde nasceu: às margens de um rio, na baixada fluminense. Em um barraco rodeado por lixo, fica sabendo que sua mãe morreu no parto e que seu pai veio buscá-lo: o maestro, até então pai adotivo, é seu verdadeiro pai.

Atordoado, Antônio retorna ao asilo do pai. Seu desamor ganha um novo sentido: a mulher amada pelo pai teve que morrer para que Antônio pudesse nascer. Ao saber que o filho encontrou suas origens e a história de sua mãe, este pai volta a viver. E conta a Antônio – menino às vésperas da morte – que sua vida começou quando conheceu Flora e acabou quando a perdeu. O maestro quer saber, e pela primeira vez sai de seu amargo sarcasmo: o que Flora teria dito sobre ele antes de morrer? Mostra finalmente ao filho uma foto da mãe, a bela jovem que vem acompanhando Antônio, tal como um anjo da guarda, desde o primeiro dia em que foi procurar suas origens à beira daquele rio. Assim como a realização alucinatória do desejo recupera o objeto perdido, Antônio recupera sua mãe, na visão que o acompanha em suas andanças pelo lixo.

Além da mãe alucinada, porém, Antônio encontra também Julinho, garoto traficante que o conduz pelas ruas da favela até a casa de Mãe Santinha, mulher que o viu nascer e que lhe conta sua história. Julinho será logo “adotado” por Antônio que, sem ter para quem deixar sua herança, diz ao menino que vai deixar-lhe tudo, para que volte a estudar e saia daquela vida. “Eu nunca estudei não, tenho meus irmãos e Mãe Santinha para sustentar”. “Eu poderia ter sido você”, conclui Antônio, que devolverá o corpo morto de Julinho ao rio quando, pouco tempo depois, ele for assassinado pela polícia. Seu amigo revolucionário também havia sido morto, na adolescência, pelas forças armadas. Entre a vida e a morte, Antônio é pura dor.

O que este filme nos ensina sobre o amor e o pai? Ao contrário do que se poderia pensar, não me parece um filme sobre a relação com a mãe ou o re-encontro com a mãe primordial. Cacá Diegues nos mostra, sem provavelmente ter lido o Seminário RSI, o que Lacan nos diz em 1975: um pai só tem direito ao amor e ao respeito se este amor estiver “père-versamente” orientado, isto é, se este pai fez de uma mulher a causa do seu desejo. Por mais que a mulher do maestro tenha acolhido, educado e amado Antônio – com um amor, como vemos nas suas lembranças de infância, um tanto mortificado, na ausência do desejo do homem e pelo filho – esse pai, biológico e adotivo, só o adotou verdadeiramente quando pôde lhe falar da mulher que realmente desejou: sua verdadeira mãe. O pai de Antônio se humaniza e humaniza o menino nascido no lixo ao lhe falar de sua mãe, permitindo a esse homem que, nos seus 55 anos de vida, nunca havia amado uma mulher, despertar para a vida e desejar – ardentemente – uma mulher.

O que é, afinal, o maior amor do mundo? Por que ninguém está preparado para ele? Antônio só pode re-encontrar o objeto perdido no momento de morrer, mas, antes que ele se vá, descobre o que é fazer amor com uma mulher. E vai deixar-lhe um fruto daquele momento de amor, transmitindo a causa paterna encontrada numa mulher. Na cena final, tal como na Pietá, Antônio agoniza nos braços da mãe, não para salvar a humanidade, como Cristo, mas deixando um filho como fruto do seu amor. Nas suas palavras de agradecimento, ao receber sua condecoração, diz: “A vida vale a pena ser vivida, nem que seja das lembranças de um único momento feliz”. 

O tema da adoção de um filho como duplo de si mesmo e meio de redenção aparece também no filme “Meu nome é Tsotsi”, no qual um adolescente sul-africano sai do mundo do crime após seqüestrar, por acaso, um bebê. Tsotsi, ao roubar um carro, descobre no bando de trás um pequeno bebê negro, pelo qual é tomado de amor. Toda a sua vida se vê mudada em função desse objeto que toma como seu, amando nele o menino que foi, fugido do pai que, no momento da morte da mãe, enxota um cão quebrando-lhe as patas. Tsotsi viverá como esse cão enxotado, até o dia em que reencontra no bebê o menino abandonado pelo Outro que, no final, devolverá à mãe.

Também no caso de Tsotsi entrará em cena uma mulher, aquela que ele segue até sua casa, exigindo que amamente o bebê. Ela também é mãe e o convoca a devolvê-lo à sua mãe. Na cena final, Tsotsi devolve à mulher paraplégica - que baleara no assalto - o filho roubado, ele mesmo entregando seu corpo ao Outro. O encontro com o pai do bebê, que Tsotsi recusa-se a matar quando assalta sua casa, marcou-o de alguma forma.

Lacan dizia que somos todos restos de um desejo e nosso destino dependerá dos nomes que pudermos dar a esse desejo, para que ele não seja anônimo. Nosso destino dependerá das possibilidades que encontrarmos, de amar e dar nome a esse desejo que nos gerou, humanizando-o. Como nos aponta Ram Mandil, “o amor ao pai inclui o abandono, ou seja, a relação entre um filho e um pai implica algo que é cedido, abandonado. (...) A prova maior da função redentora do filho não estaria no seu sofrimento, mas no fato mesmo de ter experimentado o abandono do pai. (...) O amor ao pai só será possível a partir do lugar de uma separação, pois um filho só é um filho se tiver em seu horizonte, na sua relação ao pai, a dimensão de um corte e de algo que daí se desprende, considerando que um pai, para estar situado ao nível do desejo, deve ser capaz de ceder algo que é parte de si próprio”2.

Antônio não foi salvo pelo amor do pai, mas por  insistência própria, diante da iminência do fim de sua vida, em inventar um pai, em obter desse pai uma palavra, um nome para o amor que ele pôde, apesar de seu desespero, transmitir a uma mulher que desejou. Essa palavra acendeu nele uma centelha de vida, que pôde ser transmitida a partir do pecado do pai. Um pai que humaniza o desejo só pode ser situado a partir de seu pecado, de sua falta. Para Lacan, aquilo que um pai transmite está mais ligado aos seus pecados do que aos seus ideais. É o que o filme de Cacá Diegues nos mostra de maneira exemplar: o pai de Antônio, como ideal, só pôde transmitir-lhe o silêncio e a solidão. Só a partir da entrada em cena da causa do seu desejo é que Antônio pôde ouvir do pai uma palavra, um nome que o trouxe de volta, dos corpos celestes aos corpos humanos, desejantes.



1Membro da Escola Brasileira de Psicanálise -EBP.
2Cf. MANDIL, R. “Do pai primevo ao pai que humaniza o desejo”, trabalho inédito apresentado na Jornada da EBP-Rio em agosto de 2006.