|
Amor lúbrico
Patrícia Badari1
pbadari@superig.com.br
“Se nada acontece
como estava previsto é porque,
pelo contrário,
as coisas caminham bem”
Resumo: Alheado na monotonia de uma ficção que se repete,
o sujeito é despertado em seu desejo por um encontro imprevisto.
Entretanto, é justamente da desarmonia, da disparidade desse encontro
que pode surgir a significação do amor: uma tentativa de
dar sentido a essa inadequação. A autora ilustra essa tentativa
com os personagens de um conto de Marçal Aquino, “Sete epitáfios
para uma dama branca”.
Palavras-chave: amor lúbrico; relação entre
os sexos; encontro; imprevisto.
Abstract: Alienated in a repetitive and monotonous fiction, the subject
desire is awakened by an unexpected encounter. Because of the excessive
disharmony and unpredictability in this encounter, a signification for
love can arise: an attempt to render meaning to such inadequacy. The author
illustrates that with the characters of a short story by Marçal
Aquino “Seven epitaphs for a pale lady”.
Key words: lubricous love; sexual relationship; encounter; unexpected.
A surpresa
Deixar-se persuadir pelo inesperado, suspender o saber ou deixá-lo ratear
são possibilidades para que a surpresa aconteça. Mas, ela é imprevisível
e intempestiva. E quando acontece, o coração palpita, as mãos tremem,
o corpo sua.
A surpresa é um momento de natureza diferente em relação ao restante do
tempo. No tempo que a precede e lhe é subseqüente, tudo transcorre conforme
a interpretação do sujeito sobre o que julga ser sua verdade.
E é por estar alheado nessa ficção que se repete em uma constância e monotonia,
é, justamente, aí que, paradoxalmente, pode aparecer o tropeço, a particularidade
do sujeito e que aponta para o seu desejo. Ou seja, é do que não se encaixa
nessa ficção que o desejo do homem pode advir, pois não há satisfação
que seja universal.
E um imprevisto pode nos levar ao encontro de uma verdade elevada à potência
de condição absoluta, que não se articula a nenhum saber. Com a surpresa
advém um excedente, ou seja, uma diferença entre aquilo que se pede e
aquilo que se precisa, daí o descompasso no que se constituía até então,
de modo constante e linear.
Um encontro que surpreende. Um instante fugaz, mas também, passível de
ter espessura e tornar-se um acontecimento - um ato bem sucedido. Ou seja,
este encontro pode produzir um feito em que se exprime uma decisão e que
faz sua interferência, aparentemente sem propósito, justamente onde a
intencionalidade falha.
Esta é uma possibilidade. A possibilidade do ato e, sobretudo daquele
que leva a cabo uma decisão de ordem peremptória, ao menos por um certo
tempo.
Os amantes
Um homem e uma mulher. “Ele, mãos enormes, grossas (...). Ela, pele e
olhos claros, cabelo curto de menino”3.
Ele, trabalhador de uma Usina Hidrelétrica. Ela, esposa do figurão. Personagens
do conto de Marçal Aquino, “Sete Epitáfios para uma Dama Branca”.
Um passeio pela reserva indígena, a chegada ao igarapé e algo captura
o sujeito homem. “Ela fez algo inesperado. (...) Primeiro tirou o tênis
e, em seguida, o vestido, puxando-o pela cabeça. Não estava usando sutiã,
apenas uma calcinha branca, que despiu e jogou sobre o vestido antes de
descer a elevação e entrar na água. Eu e o cacique ficamos imóveis por
um momento. Então ele fez um comentário sobre a beleza da floração dos
ipês naquela época do ano e eu voltei a tirar fotografias. Como se aquilo
não estivesse acontecendo à nossa frente. Era a primeira vez que eu a
via nua em um lugar que não fosse um dos quartos mal iluminados do hotel
ordinário da cidade. (...) Aquele era um momento que não podia ser deixado
só por conta da memória, e eu a fotografei até ouvir o ruído do filme
terminando e sendo rebobinado”4
Um lirismo, uma exaltação apaixonada desse instante que como uma pequena
brisa atiça a brasa dos amantes e deixa entrever algo do que motiva o
desejo desse homem entalhado no corpo da mulher.
Amantes de quartos de hotéis, que transam, fazem sempre o mesmo. Encontros
que fazem série em uma tentativa insistente de legitimar o motivo de serem
amantes. Ela está insatisfeita com o marido e com os homens que conheceu,
pois não estavam à altura de seus pedidos de amor e ele, por sua vez,
nunca soube o que fazer com uma mulher para além da cama.
No entanto, esses encontros repetitivos são os que semeiam o terreno para
surpresa. Fazem série e toda série pressupõe um intervalo, ou seja, um
tempo de espera entre um encontro e outro, um corte entre uma hospedagem
e outra. E é aí que a surpresa pode ser precipitada.
É quando a freqüente hospedagem para sexo claudica, que a surpresa emerge
e atrapalha, perturba e apaga as condições prévias, ao fazer com o que
escapa do sentido desses encontros o determinante de um ato - o que faz
desse ato um ato bem sucedido.
O amante dá de presente à amante sua vontade de conhecer índios e, pela
primeira vez, captura algo do que causa seu desejo entalhado no corpo
dessa mulher, apesar de tê-la visto nua, inúmeras vezes. Esse é o acontecimento
que curto-circuita o que estava meticulosamente planejado.
Repetição de encontros que denunciou seus motivos. Mexerico de amantes
em uma tentativa insistente de fazer vivo o personagem “amante”, desfalecido
há tempos. Ausência de conhecimento e justificativas que se dissiparam.
Restava-lhes, então, o vestígio do que motivava o desejo de cada um.
Um instante de ver, no encontro com o outro sexo, este traço de algo que
a mulher porta e que resvala no desejo do homem, o que lhe desarranja
a vida e lhe causa angústia sempre que surge.
Tempo para compreender o que este encontro quer dizer e momento de concluir
sobre o entalhe alongado na espessura do desejo.
Tempos sobre os quais se tem a impressão de que nunca é um bom tempo,
não se tem a medida certa. Haverá sempre uma defasagem no tempo. E basta
amar para ser introduzido nesta radical discordância e não complementaridade.
Peregrinações do amor
Uma desarmonia no tempo, no encontro e no desejo, isso é inerente à relação
entre os sexos, que é regida pela disparidade e será sempre dessimétrica.
Mas, é dessa inadequação que pode surgir a significação do amor – uma
interpretação sobre o que esse encontro inadequado quer dizer.
Se um imprevisto irrompe de forma estrondosa o que era para ser calculado
e enclausurado nos quartos de hotéis, o que se pode produzir? Uma explicação
válida onde não existe nada que a sustente.
“Escuta: por que a gente não vai embora daqui? (...) Do que você tem medo?”
- pergunta-lhe a dama branca, após o passeio. “Eu pensei em outro tempo,
em outro lugar e, sobretudo, em outra mulher. Não é medo, não. Eu acho
que não daria certo, só isso. Eu me conheço”5–
responde-lhe o homem.
Entre os traços que ainda faíscam de um outro tempo, de uma outra mulher
e o inédito que tropeça, poderia advir uma nova significação para esse
homem. Mas, ele se recusa e insiste na repetição que visa o rebaixamento
do valor erótico do que roça o seu desejo.
Ele não consegue ultrapassar o horror de não saber o que fazer com uma
mulher, para além da cama, e prefere retornar à sua peregrinação, ao invés
de seguir firme em seu logro, seu engano com relação à mulher.
Ela não é como todas as mulheres amantes que fizeram série em sua vida,
mas a iguala a todas as “damas brancas”, já amadas por suposto.
Quando é aberta a via do desejo, esse homem responde com a mortificação
– “sete epitáfios”. Faz poesia sobre a dama viva como se tratasse de um
morto e após a morte dela, um elogio fúnebre. Só lhe é possível “epitáfios
para uma dama branca”, este é o espaço limitado do desejo no qual ele
pode circular.
Segue em sua sina e clausura: esquecer uma mulher amada, uma “dama branca”,
uma pequena variante da mulher para esse homem. Essa é a solução inventada
por ele no encontro com o sexo. Esse é seu lirismo amoroso.
E a “dama branca”? Ser a amante, a carne branca que satisfaz um homem
lhe dá um lugar no desejo do outro e a nomeia. Isso faz série pelos diversos
lugares em que o marido trabalhou: um amante em cada usina.
No entanto, um simples passeio pela reserva indígena a faz vacilar. Recusa-se
a repetir a série de encontros nos quartos de hotéis Não mais compactua
com o que fazia consistir essa relação, que cada um ficasse nos lugares
designados até então: ele o amante e ela a amante.
Mas, seu amante não quer sair de sua clausura e ela faz dessa negativa
sua tragédia funesta. Apela para o horror e piedade ao tatuar no corpo
a marca do que se rasga de seu pedido de amor incondicional - corta os
pulsos.
Retira-se de cena diante da recusa do homem e será no corpo que localizará
seu lirismo amoroso, sua exaltação desse acontecimento. Eis sua tentativa
de eternizar-se como mulher para esse homem, uma saída derrisória. Amor
lúbrico
Um ato bem sucedido nesse encontro deu lugar ao que impede a proficuidade
de serem amantes, pois dele adveio um desejo que coloca limite a essa
proveitosa utilidade. Será preciso, paradoxalmente, recusar uma satisfação
para que ela seja atingida em um traçado feito pela caneta do desejo.
Mas, ambos não consentem.
Eis um amante e uma “dama branca”, um encontro lírico e amoroso, mas feito
lúbrico. Restando-lhes, assim, uma inscrição tumular: “Sete epitáfios
para uma dama branca”.
1Membro
da Escola Brasileira de Psicanálise - EBP.
2Brodsky
G. (2003). O princípio de imprevisibilidade. Opção
Lacaniana, nº 37. São Paulo: Eolia. p. 40.
3Aquino
M. (1999). Sete epitáfios para uma dama branca. O amor e outros
objetos pontiagudos. São Paulo: Geração editorial.
p. 19 e subtítulo.
4Cf.
LACAN, J. Da Psicose Paranóica em suas relações com
a personalidade, RJ, Forense-Universitária, 1987.
5LACAN,
J. Introdução à edição alemã
de um primeiro volume dos Escritos, in Outros escritos, RJ, Zahar, 2003,
p. 554.
6Idem,
Autocomentario, in Uno por Uno 43, Bs As, Piadós, 1996, p. 18.
|