Pontuações à luz do Curso de Jacques-Alain Miller

Maria Angela Maia1

mangelamaia@terra.com.br

Resumo: A autora apresenta um resumo dos principais pontos abordados por Jacques-Alain Miller em seu Curso de Orientação Lacaniana (2005-2006), intitulado Iluminações Profanas. Ela sublinha como, a partir de uma leitura de Lacan criativa e perspicaz, Miller demonstra a modificação teórica na conceituação de Outro, de objeto a e do corpo.
Palavras-chave: Outro; outro; objeto a; corpo.

Abstract: The author presents a summary of the main aspects that Jacques-Alain Miller developed in his Course of Lacanian Orientation (2005-2006) named Profane Illuminations. She underlines Miller’s creative and perspicacious reading of Lacan which demonstrates the theoretical modifications in the concepts of Other, object a and body.
Key words:
Other; other; object a; body.

Na aula de abertura de seu Curso: Iluminações Profanas[2], Jacques-Alain Miller inicia a apresentação do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro[3], prestes a ser laçado naquela ocasião, com a idéia de “dois Lacan”. Cita Borges[4], em sua descrição de uma biblioteca na qual livros circulam em um espaço imaginário e se infiltram, pouco a pouco, na realidade comum: “Os livros de natureza filosófica contêm invariavelmente a tese e a contra-tese, os prós e os contra rigorosos de uma doutrina”. A seguir, nos apresenta “oposições binárias” que constituem o que ele chamou de primeiro e segundo ensino de Lacan e que se superpõem. Portanto, não se trata de momentos de ensino estanques: Sintoma/Sinthoma; Verdade/gozo; Desejo/pulsão; Tiquê/automaton; Falta/furo; falta-a-ser/ser; sujeito/falasser; fantasia/corpo. Essas oposições se enlaçam fazendo surgir, como ele diz, “uma outra psicanálise” em um “jogo de duplas”, com a qual Lacan marca seu esforço para “pensar o que há de impensado em seu próprio discurso”, e que o põe “no avesso de seu próprio ensino”.

É a esse avesso que J.-A. Miller chega na última lição de seu Curso, de 20 de junho de 2006, depois de passar pelo  objeto a como mais-de-gozar, furo topológico e consistência lógica. Isto é, ele chega à “oposição do gozo e do mais-de-gozar”, gozo que, como ele diz, “não é trançado por Lacan” no Seminário: De um Outro ao outro, mas cuja relação entre eles poderia ser estabelecida.

Ele ressalta que o Seminário 16 é aquele em que Lacan mais recorre a formas lógicas. Já na primeira aula, nos diz Miller, Lacan enfatiza que a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala, isto é, um “discurso reduzido a uma escrita” que sempre implica a “redução do material”, por exemplo, quando “uma frase é transformada em proposição e substituída por uma letra”, em que “o sentido é esvaziado” retendo-se dela apenas “um valor de verdade”. Ao evocar o discurso sem fala, Lacan se refere a um “discurso escrito que tem conseqüência no real”, o que é a “versão clássica do lacanismo”: há efeito do simbólico, da estrutura, no real. “A estrutura define lugares, funções”, as funções vitais inscrever-se-iam apenas em um segundo tempo. Isso quer dizer que “o lugar e a função do objeto a podem ser determinados antes de se tratar do seio, do objeto anal, etc.” Esse é o “ponto de partida estruturalista de Lacan”.

Já o Lacan “2” define a “estrutura como real e não como simbólico”.

Ressalta também que, a partir do Seminário 16, o gozo se evidencia como “a substância de tudo aquilo de que falamos na psicanálise”. Desde a primeira lição desse Seminário, Lacan constrói o mais-de-gozar servindo-se da noção de mais-valia, de Marx, como “avaliável, cifrável”, isto é, uma “forma avaliável do gozo”. O Seminário 16, ressalta Miller, é um “ensaio de logificação do objeto a como consistência de ordem lógica”, em uma vertente diferente do Seminário: A angústia[5], em que “o objeto a é apreendido pelo significante e também como extração corporal”. Segundo J.-A. Miller, essas duas definições que poderiam ser pensadas como antinômicas se encaixam – “a extração corporal obedece ao que lhe impõe a consistência lógica”.

De acordo com Miller, o termo “estrutura topológica” empregado por Lacan ao se referir ao objeto a permite juntar “extração corporal e consistência lógica”: esta última é uma “função que o corpo deve satisfazer através de diferentes extrações corporais”. O objeto a é a “única consistência lógica que pode ter valor para o sujeito”, ele é “a consistência lógica que o corpo deve satisfazer”, o objeto a está “entre extração corporal e consistência lógica”.

O objeto a é designado em sua “função de furo”, tendo uma “borda que atrai, condensa, captura o gozo”. No Seminário 20[6], Lacan o delineia como o que enforma. Assim, o objeto a é “um furo com uma borda que impõe uma fôrma ao gozo”. Designado como estrutura topológica e como consistência lógica, o objeto a “tem a substância do furo e, em seguida, peças soltas do corpo vêm se moldar a essa ausência”.

Mas J.-A. Miller pontua que, antes de avançar em direção à consistência lógica do objeto a, Lacan se dedica a demonstrar a inconsistência do grande Outro. Lembra que em “A subversão do sujeito”[7], Lacan isola a incompletude do Outro, S de A barrado, isto é, uma falta no Outro e não sua inconsistência. Lembra também que a demonstração da inconsistência lógica do Outro evidencia a consistência da fantasia: “a consistência da fantasia serve de encobrimento para a inconsistência do Outro”. Ele assinala ainda que “em vão se procura a consistência no significante, em vão se procura a verdade, pois só o objeto a está apto a responder por ela”.

Miller enfatiza que o Seminário 16 delineia a “transição em que se abandona a crença na consistência do grande Outro”, em que se “abandona a consistência do significante”, de modo a deslocá-la para o lado do objeto.

O sujeito, na “busca da consistência da verdade”, não a encontra em si mesmo e nem tampouco no Outro, encontrando-a apenas, “nesse único elemento consistente, o objeto a que faz, como diz Lacan, a coerência do sujeito e também seu estofo”.

O aforismo “um sujeito é representado por um significante para um outro significante” percorre o Seminário 16, mas não completamente. J.-A. Miller menciona que “o S1 representa o sujeito, mas como ele o representa ao lado de S2, Lacan pôde dizer que o sujeito aparece ao nível de S2”.  Cita então a página 312 em que Lacan diz: “Esse pequeno a, nós sabemos, é o próprio sujeito, na medida em que ele só pode ser representado por um representante que, no caso, é S1”.  Existe aqui a idéia, a tentativa de “situar o sujeito em uma espécie de expressão primeira, na qual o correlativo a S1 é o objeto a”. Miller enfatiza que Lacan tenta, assim, circunscrever o fato de “que o sujeito não surgiu do significante, mas sim da relação indizível com o gozo”. Trata-se de situar o sujeito “além do recalque, além da sua posição de defesa previsível às construções do recalcamento”. Trata-se, portanto, dos “fundamentos do ser do sujeito”, de perceber, no sujeito, um “representante que seja mais original do que o significante”.

J.-A. Miller lembra que a cada vez que a origem está em questão, Lacan tem os “pudores do estruturalista” de não ir em direção à origem, mas de se haver com o que já está ali, a saber: os quatro objetos, olhar, voz, seio, fezes, abordados por Lacan como quatro substâncias do objeto a que representam o sujeito. Logo em seguida ele pondera que o termo representação não convém, pois aqui a “conexão do sujeito e do objeto não se presta a ser escrita como a fórmula da fantasia”, S barrado à pequeno a.

O sujeito está presente em “sua maneira de ser apagado, antes de estar na representação, na expressão, na identificação”, fazendo “brilhar o objeto a” que é marcado de uma “estranheza particular”.

Esse é o “ponto da inserção da fantasia no gozo do sujeito”, isto é, o ponto no qual “alguma coisa se destaca do fundo de gozo para liberar o objeto a como mais-de-gozar”. É sob a forma do mais-de-gozar que o gozo se torna apreensível.

J.-A. Miller apresenta a perspectiva do mais-de-gozar como uma das chaves do Seminário 16, em que todas “as demonstrações que se sucedem em Lacan têm sempre o mesmo princípio: pôr em destaque o caráter avaliável, quer dizer significante, do gozo”. Ele entende que Lacan toma a aposta de Pascal[8] exatamente por isso, pois nela o gozo, ou os prazeres, como diz Pascal, inscreve-se na partida como um significante, como “significante monetário”. A aposta de Pascal é uma forma de troca na qual se é “levado a jogar-se a si mesmo”, em que “a vida está na aposta como moeda de troca”. É uma troca na qual “se engaja a vida no jogo com a esperança de ganhar o infinito”. Ganhar o infinito em relação ao qual “sua vida, o que ela vale, reduz-se a nada”. “O artifício de Pascal é prometer fazê-los ganhar o infinito, engajando no jogo apenas quantidades, uma quantidade finita”. Mas Pascal sabe muito bem que “quando o infinito está presente se retira toda partida, toda aposta”. Segundo Miller, Lacan se baseia no seguinte: “essa aposta só tem sentido porque aquilo que é colocado em jogo é tido, de antemão, como perdido”. “Não existe concatenação significante sem efeito de perda”. É “da relação entre o gozo e o significante que se libera a função suplementar de mais-de-gozar”.

J.-A. Miller então pergunta: “qual é a relação entre o objeto a e o 1”, que designamos como o “traço mínimo que se escreve”, o traço unário?  A essa “interrogação de estrutura”, Lacan responde que a relação deve ser “igual ao 1 mais o efeito de perda”. Lacan toma, então, a série de Fibonacci como uma “possível matriz”. Recorre a ela para indicar um “fenômeno de repetição”, no qual o que se repete consiste em uma “série de números que obedece a certa regra de formação e vai em direção a um limite calculável, sempre o mesmo”: a raiz de 5 mais 1 sobre 2.  Quanto “mais  prossegue, mais se aproxima do número de ouro”.  Nessa série, seja qual for o número pelo qual se comece, o “termo terceiro será a soma dos dois precedentes. E isso até o infinito”. Com a série de Fibonacci, Lacan dá ao objeto a um valor calculável, repetitivo que se aproxima de um limite. Segundo J.-A. Miller, disso precisamos reter simplesmente que o objeto a, como mais-de-gozar, permanece calculável, logo, tem uma “natureza matemática” e comporta uma “homogeneidade com o campo do significante”. O objeto a se apresenta como a mais.

  Todavia, J.-A. Miller esclarece que, no final do Seminário 16, esse a mais é apresentado por Lacan como a função um-a-mais, que figura como o conjunto vazio e que aparece em toda contabilidade ou subconjunto. Nos três últimos capítulos, a teoria dos conjuntos é o fio condutor de uma equivalência entre o conjunto vazio e o objeto a, porquanto o conjunto vazio é um valor que surge de todo significante colocado dentro de um conjunto.

Aponta então que, num primeiro tempo, temos o 1, o traço unário, a barra primordial, inaugural. No segundo tempo, esse 1 é tomado em um conjunto. No terceiro, forma-se o conjunto dos subconjuntos. Neste momento, ao lado do 1, surge o conjunto vazio. Ele pondera que Lacan toma exatamente esses três tempos para distinguir o significante-mestre, S1, o significante do saber, S2, e o conjunto vazio, objeto a. O gozo entra na “ronda estrutural” e se torna mais-de-gozar. Ele figura como um elemento que funciona em relação a S1, S2.

  Mas J.-A. Miller não deixa de assinalar que, além disso, o gozo é um “fundo informe”, não é precisamente estrutural. E é o transbordamento do gozo que irá desestruturar o discurso de Lacan conduzindo-o aos nós. No Seminário 20, Lacan dirá que o objeto a não é suficiente para falar do gozo: “ele é muito bem educado, é um semblante que não permite atingir o de que se trata no gozo”. E Lacan formula a questão de saber em que medida seria um “artifício falar do gozo a partir do mais-de-gozar”. 

  J.-A. Miller lembra que o Seminário 16 se inicia nos meses seguintes a Maio de 1968, quando as questões não são apenas teóricas, pois o poder de mercado já se fazia presente, poder esse que Lacan chamou de absolutização do mercado que, segundo Miller, seria o verdadeiro nome da globalização. O mercado onde tudo tem um valor, isto é, tudo é “perfurado por um significante”.

Acentua também que o mais-de-gozar é dado por Lacan como “chave do mal-estar na civilização”, em homologia ao que Freud construiu em seus textos sobre a libido, nos quais a retração da libido isola zonas especiais no corpo. J.-A. Miller acha surpreendente que esse raciocínio de Freud, limitado ao corpo individual, tenha sido transportado por Lacan para o nível do “corpo social”. Evidentemente, ele pondera, hoje já não falamos em corpo social, pois “o social está muito fragmentado para que possamos referi-lo à forma do corpo”. Podíamos falar de corpo social quando tínhamos um cosmos que se relacionava com o corpo individual e em que cada um era o “microcosmos do macrocosmos que o circundava, o que era a ordem do mundo, a ordem de um mundo finito”.

.-A. Miller esclarece que é justamente por Lacan, nesse Seminário, manter à distância o fundo informe do gozo, que ele preserva e acentua a ordem do significante, “a armadura significante” é evidenciada já que tenta “domesticar esse fundo informe do gozo com o mais-de-gozar”.  Nesse sentido, segundo J.-A. Miller, no Seminário 16 há uma amplificação e uma espécie de “logificação” do Seminário 7: A ética da psicanálise[9], no qual Lacan outorga, já no primeiro capítulo, primazia ao real. Trata-se de um “real enigmático em relação ao qual o simbólico e o imaginário giram em volta”, o que leva J.-A. Miller a assinalar que, aqui, já se encontraria a noção segundo a qual “tanto o simbólico quanto o imaginário são semblantes”. No Seminário 7, o gozo é um termo “maciço”, abordado pelas ressonâncias que o termo Das Ding provoca em Lacan. J.-A. Miller encontra no Seminário 16, na página 212, uma ressonância que o faz pensar na possibilidade de se ler o Seminário 16 como seqüência do Seminário 7: “o gozo é aqui um absoluto, é o real, tal como eu o defini, como o que retorna sempre ao mesmo lugar”. Ele esclarece então que as considerações de Lacan sobre o gozo têm este mote: “a noção de que o gozo é um absoluto”, ao passo que o “desejo se encontra no nível do sujeito”, inapreensível como ele, inapreensível em sua metonímia. A diferença é que Lacan, em seus desdobramentos no Seminário 16, é conduzido à descoberta da própria metonímia do gozo com o mais-de-gozar. Nesse Seminário, o esforço de Lacan está em transformar o “gozo numa função e dar a essa função estrutura lógica”.

J.-A. Miller entende que a questão gira em torno de duas modalidades de gozo: o gozo auto-erótico do corpo próprio, que se vincula aos diferentes orifícios do corpo, e o gozo que se vincula à relação com a parceria sexual. “Qual é a relação entre o gozo eventual da parceria, a disponibilidade ocasional do corpo do Outro, e o gozo que se desprende do corpo próprio?” J.-A. Miller se diverte com essa questão, que extrai do Seminário 16 como sendo a problemática a ser desenvolvida por Lacan no Seminário 20, pois aqui o empenho de Lacan é “mostrar que a função de borda opera na relação com o parceiro sexual”. Isto é, Lacan tenta fazer do gozo do parceiro sexual um modo especial do “gozo da borda na relação com o Outro sexo”. J.-A. Miller lembra que Lacan, no Seminário 7, deu um grande destaque ao amor cortês, o qual retoma no Seminário 16 evocando a “valorização do retardo trazido à união”, portanto, a “valorização de uma função de borda”. “O amor cortês é uma tentativa que resume o esforço de ultrapassar a ordem narcísica do amor, para constituir a parceria com o Outro, aureolando-a com o absoluto de gozo, mas de forma estritamente simbólica”.

J.-A. Miller aproxima essa discussão do que ele considera um dos agalmas do Seminário 16, circunscrito no capítulo XX e intitulado “Saber gozo”. Segundo ele, ali, Lacan se encontra “nos limites do estruturalismo”, em que o objeto a representaria o sujeito. Na “representação do sujeito bruto pelo objeto a”, Lacan toma como ponto de partida a “dialética elementar do sujeito e do traço” como impressão. Esta difere da concepção do signo tal como Pierce enunciou (o signo é algo que representa alguma coisa para alguém), já que não há necessidade de alguém, pois seria algo como um “traço absolutizado”. Um “sujeito que deixa traços não é igual ao sujeito inapreensível do significante” que não os deixa. Há relação com uma “materialidade”, como “a impressão da mão ou do pé”. É um traço que supõe “um corpo que passou ali”, embora não seja signo, já que não considera qualquer um. O apagamento do traço faz “aparecer o objeto a por substituição”, enquanto as “maneiras como o traço foi apagado” demarca o sujeito. J.-A. Miller esclarece essas duas vias: uma é a do sujeito relacionado ao significante, isto é, o “sujeito evanescente”; a outra é a do sujeito relacionado ao objeto, isto é, o “sujeito como o agente do evanescimento”, “o sujeito é aquele que apaga o traço”.  Como esclarecimento, ele apresenta a maneira como Lacan introduz o objeto voz a partir da matilha de cães ou de lobos, quando, para seguir os traços, a matilha acaba encontrando, pelo faro, uma pista, e então a descoberta do traço é conotada pelo latido. Esse momento, que assinala que alguém passou por ali, encontra um suporte vocal em um “evanescimento do traço e em seu reposicionamento”.

Mas, ele pergunta: “o que se passa quando o traço tem apenas o suporte do objeto a?” Aqui, ao contrário da Aufhebung, há um “apagamento materialização”. O traço é transformado em objeto a, em voz, em olhar. J.-A. Miller considera que essa teoria dos traços poderia abarcar a totalidade da psicanálise, já que se trata de traços mnêmicos, traços de memória, que se “conservam na ignorância do sujeito”, que permanecem “não-apagáveis”, como se estivessem “consignados à sua morada”. Para designar a dimensão dessa morada Lacan forjou a palavra demention, reunindo as palavras dimensão (dimension) e morada (demeure). Essa “articulação que soletramos sobre os quatro objetos a”, como diz J.-A. Miller, está implicada na incidência do gozo, que tem para Lacan “uma exigência de inteligibilidade e supõe uma articulação lógica”.

No mais-de-gozar está implicada a perda do objeto, ele representa também a falta a gozar, portanto, é ao mesmo tempo “o excesso e o representante da falta”. Nisso também se fundamenta o termo troumatisme de Lacan: o “furo do traumatismo que é designação do sujeito do gozo”. A articulação lógica de Lacan comporta que “não se trata de transgressão, não há heroísmo, não há mais a ética da psicanálise concebida como o forçamento dos limites do princípio do prazer, ao contrário, há algo do gozo que faz irrupção no campo do Outro”.

J.-A. Miller se volta então para o termo das Ding trabalhado por Lacan no Seminário 7,  já que ele não pode ser tomado em uma articulação lógica. Ele é impensável, dada sua própria definição, pois na relação com das Ding se trata de uma “relação patética, um pathos, e não um logos”. É algo que não cabe em “circunvoluções, inversões, nem em aproximações da dialética”, ao contrário, é um “elemento invariável qualificado por Lacan de fora-significado”, e do qual “não podemos mais nos desfazer”. O sujeito se constitui em relação a das Ding em um “modo de afeto primário”. J.-A. Miller cita Lacan: “É em relação ao das Ding original que ocorre a primeira orientação do sujeito, a primeira escolha, o primeiro lugar da orientação subjetiva que chamaremos, na ocasião, a escolha da neurose”. É isso que é posto em questão por Lacan no Seminário 16 em um esforço de articulação lógica, como J.-A. Miller ressalta. Lacan busca ir mais longe desse afeto primário ou indizível e alcança, no Seminário 20, a “cristalização de uma articulação lógica com os quatro discursos sob a base de uma relação primitiva do saber ao gozo”.

Na última lição de seu curso, J.-A. Miller deixa formulada a oposição entre “gozo absoluto”, que segundo ele, Lacan não trata no Seminário 16, e o mais-de-gozar.  O gozo absoluto está “além do desejo, é excessivamente intenso”, sendo sua “determinação essencial, a exclusão do simbólico em razão de sua infinitude”.  Já o mais-de-gozar é o modo de Lacan “isolar uma unidade de gozo”. Portanto, o contraste é entre o infinito do gozo e a unidade de gozo. Manejar o gozo como unidade é explorado por Lacan mediante a aposta de Pascal, em que: o “um de uma vida, a unidade de gozo de uma vida, é jogado ante o infinito”. Lacan se serve de Fibonacci para esclarecer a “incomensurabilidade entre 1 e objeto a”  com o número de ouro, o que passa despercebido na aposta de Pascal.  Se tomarmos a proporção entre dois termos da série obteremos como resultado o número de ouro que Lacan faz equivaler ao objeto a.

Com essa argumentação, J.-A. Miller propõe uma referência para a seguinte frase que extrai da página 211, e que considera esclarecer em parte a página 13 do Seminário 16: “as coisas podem ir assim tão longe que interrogam o efeito (l’effet) de pensamento”. J.-A. Miller entende que é essa suspeição do efeito do pensamento que anima a página 13, assim como o conjunto do Seminário 16, e conclui com ela seu curso.


1Membro da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP.
2Miller, J.-A.- Illuminations profanes (2005-2006). Curso de Orientação Lacaniana III, 8. Inédito.
3Lacan, J.- Le Séminaire livre XVI:  D’un Autre à l’autre. (1968-1969). Paris: Seuil, 2006.
4Borges, J.- ‘Tlön, Uqbar, Orbis Tertius’ (1944). In: Ficciones. Buenos Aires: Emece, 1985.
5
Lacan, J.- O seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
6Lacan, J.- O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1985.
7Lacan, J.- “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
8Pascal, B.- Da necessidade da aposta (1670). In: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
9
Lacan. J.- O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.