O objeto causa do desejo e o pai

Esthela Solano-Suárez2

SOLANO-SUAREZ@wanadoo.fr

Resumo: A partir do Seminário 10: A angústia, Lacan faz uma virada em seu ensino: a pluralização dos nomes do pai. Neste ensaio teórico, a autora articula isso ao conceito de objeto a. Ela acompanha detalhadamente a evolução da noção de objeto desde o lugar de alvo do desejo, presente na fantasia do neurótico, até o de objeto causa do desejo, do qual Lacan se aproxima pela via da perversão, que lhe permite subverter o lugar do pai e sua relação com o objeto.
Palavras-chave: Nomes do pai; angústia; objeto causa do desejo; perversão.

Abstract: In Seminar 10: the anxiety, Lacan produces a turn in his teaching: the names of the father becomes plural. In this theoretical essay, the author articulates that to the concept of object a. She details the evolution in the conception of the object a first considered as the object aimed by the desire, in the neurotic fantasy, and later as the object that causes the desire, which Lacan addresses as perversion as long as that allows him to subvert the place of the father and his relation to the object.
Key words: Names of the father; anxiety; object cause of the desire; perversion.

Na primeira e única lição do Seminário Nomes-do-Pai – publicada no ano passado na pequena coleção Os paradoxos de Lacan, sob os cuidados de J.-Alain Miller – assistimos a uma virada fundamental no ensino de Lacan, pois é no decorrer dessa única lição que Jacques Lacan anuncia a passagem do singular do nome do pai à pluralidade dos nomes do pai. Anuncia que falará dos nomes do pai e, como vocês podem ler no pequeno opúsculo, ele diz aos seus alunos: “vocês verão abrir-se, no decorrer deste seminário que se inicia, o que eu pretendia introduzir como um progresso em uma noção, a noção de nome do pai, que esbocei desde o terceiro ano do meu Seminário, quando tratei do caso Schreber e da função do Nome-do-Pai”. A partir do que ele avançou no Seminário, livro 3: as psicoses sobre a função do Nome-do-Pai e que formalizou, em seguida, sob a forma da metáfora paterna, no Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, Lacan se propõe a dar um passo que nada mais é do que a passagem do Nome-do-Pai único em direção aos nomes do pai múltiplos. Para avançar nesse percurso, e com o objetivo de assegurar “o passo seguinte”, ele se apóia sobre o que elaborou, no ano precedente, no Seminário, livro 10: a angústia.

Então, qual a ligação entre o que ele elaborou no Seminário do ano precedente sobre a angústia e esse novo passo avançado por ele, o da pluralização dos nomes do pai?

Para seguir esse encadeamento devemos retornar ao Seminário 10: a angústia, particularmente ao capítulo VIII intitulado por Jacques-Alain Miller “A causa do desejo”. Ao longo do capítulo assistimos à virada fundamental do ensino de Lacan, que nos permite compreender porque a elaboração concluída no Seminário: a angústia conduz Lacan, em seguida, a desejar ir mais longe, com a finalidade de retirar a psicanálise do reino do Nome- do-pai único. É preciso dizer que esse caminho nos foi traçado por Jacques-Alain Miller quando ele apresentou, em seu curso A orientação lacaniana, o que eu chamaria de  esqueleto do Seminário sobre a angústia. Vocês encontrarão os desenvolvimentos sucessivos de J.-A.Miller no n.59 da Cause freudienne. No capítulo VIII do Seminário: a angústia, Lacan reúne em uma pequena fórmula a relação entre a angústia e o objeto: “Dizemos que a angústia não é sem objeto e que o objeto que se encontra no centro quando tratamos da questão da angústia não é outro senão o objeto a, do qual a angústia - diz ele - é sua única tradução subjetiva”. Isto quer dizer que o afeto da angústia traduz na subjetividade a relação do sujeito com o objeto a.

O que é esse objeto a cuja elaboração encontra-se no centro do Seminário: a angústia?

Lacan lembra que o objeto a não data de hoje, que a partir de um momento em seu ensino ele já o introduzira sob as espécies da fórmula da fantasia, uma vez que a fantasia é o suporte do desejo. Portanto, segundo a fórmula da fantasia ($ <> a), tal como Lacan a concebeu, trata-se da relação entre o $ e o objeto do desejo como a. Ora, neste ponto, Lacan vai produzir uma reviravolta fundamental ao longo desse Seminário, precisamente na lição VIII. Diz que o objeto do desejo foi tradicionalmente concebido como um objeto visado por uma intencionalidade desejante. Quer dizer que, até esse Seminário, o objeto do desejo aparece sendo alguma coisa visada pelo sujeito. Um sujeito desejante, conforme diz J.-A.Miller, que teria diante dele um objeto. Lacan propõe retificar o engodo segundo o qual o desejo correria atrás de um objeto e que se trataria de ir ao encontro do objeto visado pelo desejo.

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No decorrer dessa lição do Seminário, Lacan justamente derrubará o engodo da intencionalidade, mostrando que o objeto a deve ser concebido não como a visada do desejo, mas como causa do desejo, ou seja, que o verdadeiro objeto de que se trata não está à frente do desejo, porém atrás dele, visto que vem causar o desejo.

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Lacan refere-se a Freud. Ele foi buscar na 32ª Conferência de Introdução à psicanálise uma distinção operada por Freud entre o Ziel, o alvo da pulsão, e seu objekt. Lacan indica que o que é visado pela pulsão, enquanto alvo pulsional, não se encontra no mesmo lugar que o objeto da pulsão. Assim, teríamos ali a disjunção entre o objeto visado, o alvo, e o que é causal a título de objeto. O verdadeiro objeto da angústia é o objeto que se encontra no lugar da causa, e não da visada.

Conforme relembra Jacques-Alain Miller, o objeto visado pela intencionalidade desejante é mais o objeto posto em cena no laço amoroso. A fantasia faz crer que o objeto do desejo é um objeto visado pelo desejo e que ele escapa ao sujeito. A operação de Lacan comporta justamente a extração do objeto causa do desejo do engodo da fantasia, engodo solidário à metonímia do desejo e ao objeto. O deslizamento metonímico próprio à fala faz crer que o objeto se encontraria sempre alhures, sempre mais longínquo, estando sempre visado e sempre inalcançável. Ora, se na experiência analítica cedermos à tentação de interpretar o desejo e a causa do desejo segundo o deslizamento metonímico, certamente reforçamos no sujeito esta espécie de paixão da falta-a-ser, que, em certos casos, pode permitir o caminho que conduz em direção à análise sem fim.

Vemos que a operação de Lacan consiste em curto-circuitar o deslizamento metonímico, em cortar radicalmente o engodo, o véu induzido pela metonímia, pelo qual a metonímia é responsável. Parece-me que a operação de Lacan, nesse Seminário, é completamente fundamental, pois ela não visa conciliar o tratamento com o deslizamento metonímico, mas fazer passar o que é vivido como ilusão de uma visada para o lado do que se encontra ao nível da causa do desejo. Isto é, não podemos cingir  verdadeiramente o que está em jogo no desejo se o objeto que o causa não for mais ou menos cingido. Isso quer dizer que existe alguma coisa da ordem da lógica da causa, da lógica da causa do desejo, que se trata de expor no tratamento analítico.

Por qual viés Lacan vai alcançar esse objeto em seu Seminário?

É interessante porque, primeiramente, ele vai relembrar que o objeto é, antes, um objeto exterior a toda interiorização. O objeto causa não é um objeto que se encontre ao alcance do sujeito, ele já se encontra ali antes, disse ele, que o sujeito o apreenda em sua forma especular chegando, desse modo, à distinção entre o eu (moi) e o não-eu (non-moi). Nessas condições seria preciso conceber um objeto que é mais exterior porque ele ali está antes de toda interiorização, antes de toda distinção entre o eu (moi) e o não-eu (non-moi), é no nível desse objeto que Lacan identifica a função da causa.

Para qual clínica ele apela a fim de ilustrar precisamente o que deseja demonstrar?

Ele apela para a clínica do fetichismo. Para tornar sensível a função do objeto causa do desejo e não um objeto visado pelo desejo, Lacan recorre ao que nos demonstra e ensina a clínica do fetichismo, porquanto é no fetiche que se desvela a verdadeira dimensão do objeto causa do desejo. Por que? Porque não é o fetiche em si que é desejado, ao contrário, o fetiche é a condição para que o sujeito sustente seu desejo. É preciso que o fetiche esteja lá. É a condição para que haja desejo, mesmo que ele não se encontre sobre o corpo do parceiro sexual, diz Lacan, mesmo se o fetiche estiver absolutamente separado do corpo de seja qual for o parceiro. Portanto, o objeto fetiche é a causa do desejo e o desejo, diz Lacan, vai em seguida se enganchar onde puder.

Aonde vai se enganchar o desejo?

Ele visa o falo e, segundo o que Freud nos ensina, ele se interessa pelo falo imaginário da mãe. Essa operação evidencia a disjunção entre o que causa o desejo sob a forma de fetiche e o que é desejado pelo fetichista. Lacan postula de uma forma muita clara a distinção entre esse objeto, condição absoluta do desejo no fetichismo, e a intenção do desejo. Isto quer dizer que é pela via da perversão que Lacan aproxima a função do objeto causa do desejo. E, para ilustrá-la, Lacan apela não somente ao processo que ocorre do lado do fetichista, mas também ao do lado do sádico. Relembra, referindo-se ao que desenvolveu em seu texto “Kant com Sade”, que o desejo sádico demonstra precisamente que este desejo visa introduzir no sujeito, na vítima, uma divisão subjetiva, em síntese, uma hiância no limite entre a vida e a morte. Ao buscar a divisão do outro, o desejo sádico visa a angústia do lado do sujeito, ou seja, o objetivo do desejo sádico consiste em produzir do lado da vítima, segundo a tese de Lacan, uma divisão subjetiva extrema. No lugar da vítima é feita a experiência da pura miséria da existência.

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Essa miséria pura foi identificada por Freud sob a forma de uma angústia mais primitiva, uma das formas de angústia existencial por excelência. Esta forma extrema comprova que a angústia é um afeto que visa o próprio lugar da existência. A partir daí podemos circunscrever que o objetivo do desejo sádico, ao buscar a divisão e a angústia da vítima, é o de fazer o sujeito experimentar a disjunção radical entre seu ser e a dimensão da existência. Assim, ao buscar a divisão e a angústia, como diz Lacan, o sádico desconhece que ele próprio se faz objeto, instrumento, “fetiche macabro” a serviço do gozo. Quer dizer que o sádico encontra-se no lugar do objeto a, visto que é o objeto a  que causa a divisão do sujeito.

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Visando causar a divisão do sujeito, o sádico se coloca no lugar do objeto a, fazendo-se de objeto para o outro, num lugar de subjetividade que comporta uma espécie de petrificação. Aquele que exerce a função de algoz encontra-se em plena empreitada. Percebe-se bem, lendo Sade, que é uma tarefa sem fim executada de uma forma completamente repetitiva. Acaba sendo extremamente fatigante e a única coisa que pode colocar um limite a essa função é a morte da vítima. Se essa ação não encontra como limite a morte da vítima, ela se repete infatigavelmente. Por conseguinte, aquele que está no lugar de infligir sevícias desconhece, conforme diz Lacan, que ele se encontra precisamente no lugar de objeto, visto estar petrificado no lugar de agente do tormento. Não se deve imaginar que esse dispositivo só se encontre nas grandes encenações sadianas. É um dispositivo que está no centro do laço amoroso, podendo estar também no centro do laço mãe-filho. Os vários casos clínicos nos mostram  justamente de que forma a criança pode vir ocupar o lugar de agente do tormento para sua mãe, aquele que a angustia, que causa não apenas o sofrimento,  mas também a divisão da mãe.  E isso precisamente pelo fato de a criança se encontrar no lugar de ser objeto causa de desejo para a mãe, mas não como deve ser. São casos nos quais, do lado do desejo materno, haveria uma redução, uma concentração exclusiva da função da causa do lado da criança.

No rito sadiano há essa realização e, como Lacan o diz, o que o agente do desejo sádico não sabe é justamente o que ele busca, isto é, ao causar a divisão da vítima, ele próprio se faz aparecer como um puro objeto, um fetiche macabro.

O masoquista também encarna o objeto. É um objetivo declarado, diz Lacan, que aparece, de saída, como o masoquista que quer se fazer, por exemplo, de cão, ou mesmo de pura mercadoria. É um ponto interessante porque Lacan diz que, no nível fenomenológico, constatamos no masoquista essa vocação de se fazer semelhante a um objeto comum, um objeto de troca. No capítulo VII, o capítulo precedente, Lacan tomou o cuidado de distinguir o objeto de troca do objeto em questão no desejo. Lembrou que o objeto de troca é indissociável da dialética do espelho, ou seja, existe o eu (moi), minha imagem, você, sua imagem, e entre você e eu uma série de pequenos objetos que são objetos cobiçados pelo eu (moi) justamente porque estão ao alcance de você. É a imagem de duas crianças que brigam pelo mesmo objeto. Isso, diz Lacan, é o objeto no registro imaginário, é o objeto comum, objeto de troca, porém não é o objeto causa de desejo. Por um lado, o masoquista deseja aparecer na cena como um simples objeto de troca, todavia o que ele faz valer é justamente o fato de ele ali estar como objeto dejeto que cai, que tomba. Quer dizer que ele ali está identificado ao objeto causa de desejo. Com efeito, de acordo com o pequeno esquema de J.-A.Miller, observamos que no perverso

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o objeto vem no lugar do sujeito, ou seja, numa equivalência em relação ao sujeito. Portanto, a atuação perversa demonstra que, tanto no caso do sádico como no do masoquista, o sujeito nada mais é do que um objeto, não um objeto agalmático, não um objeto visado pelo desejo. Ao contrário, o perverso se esfalfa para romper a barreira do objeto agalmático, para transpor a barreira da maravilha, do brilho. A barreira agalmática introduz – de acordo com o que Lacan diz quando fala da beleza de Antígona - algo da ordem do “não toque”, como se diz atualmente. Tudo que é da ordem do agalma produz um círculo intransponível em torno do objeto a, fazendo crer justamente que nesse ponto onde existe o agalma, ali onde existe brilho, onde o objeto a está revestido de todas as suas características agalmáticas, prevalece o interdito de tocar. A barreira introduzida pelas condições agalmáticas, que faz parte do véu que funciona na neurose, valora o objeto agalmático como inatingível. Na histérica, a insatisfação sustenta essa condição do objeto inalcançável como um objeto visado pelo desejo, enquanto que para o obsessivo o objeto agalmático está cercado de algumas barreiras intransponíveis que lhe fazem crer na impossibilidade de acesso ao objeto, o que sustenta seu desejo como impossível. Por esse motivo, sustentar na neurose o desejo impossível ou insatisfeito ocasiona no neurótico o impasse do desejo, a complicação fundamental com o desejo.

O que o perverso demonstra?

Que ele não se enfada com todas essas barreiras, essas fortalezas que o neurótico constrói em torno dos objetos, ele as transpõe, sobretudo quando propõe ultrajar as características agalmáticas do objeto. É preciso que as vítimas de Sade sejam de uma beleza inaudita para melhor massacrá-las, para demonstrar melhor de que forma a beleza não detém o sádico. Ela não inibe seu movimento, a beleza não introduz um Noli me tangere. Muito ao contrário, a operação perversa visa sua destruição, a travessia da barreira da beleza para demonstrar justamente que ela nada mais é do que um engodo, e que o verdadeiro objeto não é a beleza, nem a virtude que tem de ser profanada. É preciso macular a beleza para mostrar que o objeto causa de desejo é diferente da virtude e da beleza. Assim, enquanto o neurótico atrapalha-se em suas discussões intermináveis a respeito  das condições da beleza e da virtude do objeto do desejo, o perverso demonstra que, quando se trata do desejo, estamos completamente num outro registro que não é o da virtude nem da beleza, tampouco o do bem, e que se trata do a causa do desejo.

Lacan tomará do perverso essa demonstração com o objetivo de deduzir sua lógica e escrever seu matema. Escreverá em seu texto “Kant com Sade” que o objeto a é causa do desejo e que o que é buscado no desejo do perverso é justamente a divisão subjetiva no nível do objeto, que Lacan chama de patológico, isto é, o objeto que faz padecer.

O que isso permite inverter, subverter?

Permite subverter o lugar do pai e a relação do pai com o objeto do desejo. Tomemos como ponto de partida o que Lacan pôde enunciar a partir de um momento em seu Seminário, apoiando-se em São Paulo. Quando São Paulo diz que o pecado é a lei, diz também que não haveria pecado se não houvesse a lei, é a lei que faz surgir o campo do pecado, uma vez que Deus emitiu a lei sob a forma dos Dez Mandamentos e tudo o que não se submete a esses Dez nos faz cair no campo do pecado. Portanto, São Paulo diz que o pecado é a lei e Lacan, por seu lado, introduz que o desejo é a lei. Isso quer dizer que desejamos o que está interditado pela lei. Basta que haja um interdito posto pela lei para que alguma coisa se torne justamente tentadora. Isso gira em torno do que Freud elaborou em “Totem e tabu”, como também ao nível do Édipo. É o pai quem traça o caminho do desejo e da lei. Lacan explica que o desejo como desejo pela mãe é idêntico à função da lei. Quem sustenta esse desejo pela mãe? Hipoteticamente é o pai quem deseja a mãe como uma mulher, fazendo-a aparecer como um objeto desejável. Porém, como é o pai quem deseja esse objeto, é preciso supor, depois do que Freud introduziu, que esse objeto cai sob o golpe da interdição para o filho. Portanto, Lacan assinala, no esquema freudiano, que desejamos porque o objeto está interditado. Essa é a questão. É a grande questão porque, nessa perspectiva, nos pomos de acordo com a fantasia do neurótico, ou seja, essa formulação é completamente homogênea com o que é sustentado na fantasia. Para o neurótico, o objeto como objeto desejado encontra-se no campo do Outro, e é por haver em torno do objeto a barreira de uma interdição que ele se torna um objeto desejado. Logo, o objeto interditado pela lei é um objeto visado pelo desejo, é precisamente isso que Lacan vai subverter. Ele vai des-solidarizar o objeto como objeto causa do desejo da interdição, da lei, a  fim de demonstrar que não é a interdição que engendra a operação do desejo, mas sim o objeto a que, como causa, é  responsável pelo desejo.

Ao operar essa torção, Lacan desloca a problemática do desejo e de sua causa do domínio do pai do interdito, do pai do Édipo, demonstrando que ele não será mais o responsável pela função da causa do desejo. A partir de agora, o pai do Édipo, o pai que interdita, começa  a aparecer, no ensino de Lacan, completamente solidário de uma invenção neurótica, de uma fantasia neurótica. Mais tarde, no Seminário: o avesso da psicanálise, Lacan irá justamente qualificar o Édipo como um “sonho de Freud”. Eis porque Lacan se apoiará sobre as perversões, pois o perverso não se incomoda com a crença de que o objeto que desejamos está interditado. O perverso se aperfeiçoa nisso.

Num segundo movimento Lacan apontará, no Seminário: a angústia, quais são as características estruturais do objeto, de onde ele sai, como ele emerge. Bem sabemos que é um objeto causa do desejo. Porém o objeto causa do desejo é causado por alguma coisa? O que causa esta operação do objeto causa do desejo? A partir daí Lacan desenvolverá uma série de articulações que vão ocupá-lo ao longo do seu Seminário, a fim de reformular sua teoria do objeto a.

Pareceu-me importante sublinhar o passo essencial dado por Lacan em seu ensino, a partir do qual isolou o objeto causa do desejo através do viés daquilo que a angústia faz emergir. Em seguida, Lacan se servirá do objeto como uma alavanca fundamental do tratamento, um elemento lógico fundamental sobre o qual assentará o ato analítico, a partir do qual reformulará o final da análise de uma maneira que fornece uma solução ao impasse freudiano da análise finita e infinita. Já nos capítulos VII e VIII do Seminário: a angústia percebe-se bem que Lacan procura fornecer uma solução ao impasse freudiano, visto que ele traz à baila o fracasso do tratamento na análise de Dora. Relembra que, se Freud fracassou no tratamento de Dora, foi porque ele se deixou enganar por Dora, acreditando no que ela se fazia refletir como objeto visado pelo seu desejo. A correção desse erro consiste precisamente, com Lacan, em isolar o objeto a no tratamento para-além desse objeto que aparece visado pelo desejo. Se fizermos concessão na operação analítica ao objeto visado pelo desejo estaremos verdadeiramente no engodo, pois nos solidarizamos com a fantasia do neurótico. A questão é isolar o objeto que se encontra numa posição causal em relação ao desejo. É o motivo pelo qual, diz Lacan, os tratamentos freudianos são concebidos como tratamentos sem fim, e que podem ser retomados, segundo Freud, em  ciclos sucessivos. E Lacan considera que essa impossibilidade de finitude do tratamento freudiano, que encalha sobre o rochedo da castração, encontra sua explicação no nível dessa miragem do objeto tomado como um objeto visado pelo desejo. Em contrapartida, trata-se de inverter essa miragem com o objetivo de circunscrever o objeto causa de desejo, a fim de conduzir o sujeito à solução do impasse do desejo. Vemos bem que, já ao longo do Seminário: a  angústia, Lacan está assentando os fundamentos do que irá elaborar como uma teoria do fim de análise e do passe. Esse caminho implicará abrir a via em direção a uma lógica do tratamento para-além do pai e do Édipo. É precisamente a via que Lacan indicou na primeira e única lição do Seminário: Nomes-do-Pai, desde que desejou dar “o passo seguinte”.


Tradução: Márcia Mello de Lima.



1Texto divulgado inicialmente pelo boletim preparatório para as Jornadas da EBP-Rio em 2006.
2Membro da École de la Cause freudienne – ECF.