A psicanálise e os modos contemporâneos de identificação

Ram Mandil1

rmandil.bhe@terra.com.br

Resumo: Os métodos de identificação dos sujeitos no mundo contemporâneo, em que o Outro é inconsistente, prescindem cada vez mais da palavra. Decorrente da precariedade constitutiva, a busca de um complemento identificatório para o sujeito poderia ser pensada tanto na vertente simbólica, como complemento significante, quanto referida à materialidade do gozo. Outra vertente poderia estar no nível do traço, anterior à representação do sujeito no nível significante, em que a identificação se daria a partir das pistas, das pegadas, ou até mesmo do que cai de um corpo. O autor utiliza o documentário “Falcão-meninos do tráfico” para ilustrar a dimensão contemporânea de fazer-se um nome.
Palavras-chave: identificação; inconsistência do Outro; “comunidade de gozo”; nome próprio.

Abstract: Due to the Other’s inconsistency, the contemporary subject has methods for identification that progressively do away with words. As a consequence of this constitutive uncertainty, the subject search for an identification complement can be considered as a search for both a symbolic significant complement and jouissance materiality. Another aspect of the identification would still be in the level of the trace, before the subject representation in a significant level, an identification made of clues and tracks, even from what falls out from the body. The author comments a documentary “Falcon- young boys in the drug traffic” to highlight these contemporary strategies to make one’s name.
Key words: Identification; Other inconsistency; “jouissance community”; proper name.

O tema da identificação está na ordem do dia.  Isso corresponde ao que Jacques-Alain Miller indica como sendo uma mudança na forma de presença do Outro, quando este já não se apresenta sob a aparência de unidade e de consistência.

Um aspecto do problema atual da  identificação pode ser percebido a partir dos esforços em estabelecer modos de identificação que correspondam às novas exigências do nosso mundo, tais como as que procuram responder à questão de como identificar pessoas numa situação de emergência.

Um exemplo nessa direção é o desenvolvimento, pela firma Applied Digital Solutions, de um dispositivo que tem o sugestivo nome de VeriChip2, contendo um número referido a um arquivo de informações médicas. Esse dispositivo, a ser injetado sob a pele,  visa  assegurar a identidade e a transmissão de dados médicos de um indivíduo no caso do pior acontecer. Este chip, cuja comercialização já foi autorizada, com restrições,  pelo FDA (Food and Drugs Administration), permite acionar o VeriMed, um sistema de identificação de pacientes capaz de, numa situação de emergência, ‘falar’ em  nome vítima,  informando aos profissionais de saúde sobre a sua identidade e seus dados médicos.

Aparte os aspectos da biopolítica envolvidos na produção desse dispositivo, podemos dizer que  as  soluções apresentadas ao problema da identificação no mundo contemporâneo são aquelas que buscam evitar a palavra como fonte para a identificação. Arriscaríamos a dizer que as soluções para a questão da identificação são hoje  buscadas num contexto que está  aquém da demanda.   Nesse sentido, a identificação se confunde com o  escaneamento (scanning),  tal qual o exemplo  de um número emanando de um chip enxertado sob a pele, e referido a um Outro convertido em inventário de informações.

Considerando as teses apresentadas por Miller no seminário “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, realizado juntamente com Éric Laurent, podemos partir do matema da identificação simbólica de Lacan, I(A), para estudarmos o estatuto atual da identificação. Nesses termos, a identificação pode ser tomada como uma operação de extração significante do Outro, pelo qual o sujeito encontraria seu complemento simbólico. A questão que se coloca é a de saber como se apresentam, como se sustentam, como vacilam os significantes-mestres nos tempos em que o Outro não existe – Miller propõe um novo matema, I (A /), a partir do qual poderemos pensar a identificação contemporânea.  Por outro lado, cabe também “distinguir e articular” essa extração significante de um Outro inconsistente  “com a extração operada sobre o corpo do sujeito, a qual também é possível reconhecer a qualidade adjetiva de Outro3.

Nesse sentido, se tomamos a questão da identificação como modo de responder a uma precariedade constitutiva do sujeito, aquilo que Lacan designa como sendo da ordem da falta-a-ser, ela deve ser pensada tanto no nível de um complemento significante, como também referida a uma materialidade, designando uma margem de gozo.  Estamos assim diante do que Éric Laurent caracteriza como sendo uma “identificação fragmentada”, ou uma “identificação débil”, referida ao caráter social fragmentado do mundo contemporâneo4.

Depreende-se daqui  algumas conseqüências fundamentais, com repercussões sobre o nosso modo de situar a identificação. Se, no mundo contemporâneo, o modo de gozo está situado preferencialmente na vertente do mais-gozar, podemos considerar a repetição como uma busca de um complemento do sujeito articulada ao objeto,  na medida em que a repetição sempre será, como indica Laurent, a repetição do encontro falhado,  o que acaba por evidenciar, no limite, que  “não há  batismo possível do gozo”5.

Por outro lado, a nossa relação com o significante, nesses tempos em que o Outro se mostra inconsistente, faz emergir uma nova modalidade de ponto de basta que deve ser buscada, para Miller, na ordem mesma do discurso, considerado  “como princípio do laço social”, referido a uma prática comum de linguagem numa dada comunidade.

Essa instalação do discurso como ponto de basta contemporâneo não se faz sem dificuldades.

Um elemento ilustrativo dessa substituição do Outro por um discurso referido a uma comunidade é apresentado na reconstrução ficcional do diálogo entre Roy Cohn - conhecido lobbysta da direita norte-americana da década de 50 até a era Reagan - com o seu médico, na versão televisiva da peça  Angels in America, de Tony Kushner.  O momento é de perplexidade, numa América em que o projeto neoconservador começa a se instalar no poder, ao mesmo tempo em que são reconhecidos os primeiros sintomas da AIDS, referidos naquele momento à comunidade homossexual.Em dado momento do diálogo, Roy Cohn  interpela seu médico que acaba de lhe comunicar seu diagnóstico:  “AIDS...sabe qual o seu problema, Henry, é que você fica ligado em palavras. Em rótulos. Você acredita que eles significam o que parecem significar. AIDS. Homossexual. Gay. Lésbica. Você pensa que são nomes que te dizem com quem uma pessoa dorme. Eles não dizem isto (...)”.   Recusando a associação entre o diagnóstico médico e a comunidade de gozo à qual esse diagnóstico o inscreveria, o personagem se debate para que sua  identidade seja referida ao seu modo particular de gozo, derivado do lugar que ocupa na hierarquia do poder, à sua capacidade de influência e não a algo ligado ao seu gosto sexual:  “Agora, para quem não entende isso, “homossexual” é o que eu sou, porque faço sexo com homens. Mas isso está errado. Homossexuais não são homens que dormem com outros homens. Homossexuais são homens que, em 15 anos de tentativas, não conseguem fazer passar uma porcaria de uma lei anti-discriminatória na câmera municipal. Homossexuais são homens que não conhecem ninguém. E que ninguém conhece. Que têm influência zero. Isso parece comigo?... Então, qual é o meu diagnóstico, Henry?”.  Diante da insistência do médico em confirmar o diagnóstico de  AIDS,  Roy Cohn, na voz marcante de Al Pacino, conclui: “Não, AIDS é o que homossexuais têm. Eu tenho câncer de fígado”.

Se esse diálogo pode ser considerado como datado do ponto de vista histórico, ele não deixa de evidenciar alguns dos conflitos que estão presentes no momento em que um diagnóstico médico procura referir o sujeito a uma comunidade  na qual se supõe um sentido comum de gozo.

Disso depreendemos algumas vertentes  das “patologias contemporâneas da identificação”, conforme a expressão que orienta estas Jornadas. 

Uma primeira que evidencia um deslocamento das referências através das quais o sujeito procura buscar o seu complemento identificatório. Se o Outro já não se apresenta de forma consistente e unitária, se já não é possível extrair dele um significante com sentido estável sobre o qual apoiar a identificação, devemos dirigir nossa atenção para a pluralização dos significantes S1, na perspectiva do enxame (essaim), significantes que não necessariamente decorrem da tradição mas que, enquanto semblantes, seriam capazes de operar como um complemento simbólico, ainda que desaparelhados de um Outro consistente.

Uma outra vertente da identificação contemporânea poderia estar se apresentando ao nível do traço, no sentido do que Miller deduz a partir da leitura do Seminário XVI, de Lacan. Em outras palavras, haveríamos de nos interessar também pelos modos de representação do sujeito, que estariam situados num nível elementar , da ordem da pegada, anterior portanto à sua representação significante. Nesse sentido, seria o caso de buscar os elementos que indicariam a presença de um sujeito indeterminado, mas, diferentemente do sujeito do significante, um sujeito que estaria em relação direta  com uma materialidade.

Alguns aspectos dessa materialidade que antecede ao sujeito do significante podem ser pensados a partir do filme Gattaca, de Andrew Niccol, ambientado num futuro “não muito distante”. Nesse filme, o personagens são identificados a partir das pistas, dos rastros, das pegadas deixadas pela sua presença nos mais diversos locais. Não deixa de ser significativa a cena em que o impostor, que deseja alcançar uma colocação num grande projeto espacial, apresenta-se para o que seria “uma entrevista”, que se resume ao convite para depositar um pouco da sua urina num frasco de laboratório. A dimensão subjetiva não passa pela palavra, não está referida a uma cadeia significante, ao seu caráter efêmero, mas é interpretada a partir da detecção dos traços e dejetos deixados pelo sujeito. O roteiro de Andrew Niccol também apresenta a báscula do t