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O Inconsciente Real
Jacques-Alain Miller1
Resumo: Nesta primeira aula de seu Curso de 2006-2007, Jacques-Alain
Miller apresenta duas facetas do conceito freudiano de inconsciente destacadas
e trabalhadas por Lacan: o inconsciente transferencial e o real. O primeiro
é o inconsciente mobilizado e lido a partir da transferência que o causa
e da articulação ao sujeito suposto saber; é sustentado pela ligação entre
S1 e S2. O segundo nega o primeiro pois se está nele quando o espaço de
um lapso não produz sentido ou interpretação. Este inconsciente real é
exterior ao sujeito suposto saber, homólogo ao traumatismo e formulado
como um limite.
Palavras-chave: Inconsciente transferencial; inconsciente real;
sinthoma.
Abstract: In the first class of his Course in 2006-2007, Jacques-Alain
Miller presents two aspects of the Freudian unconscious assigned and developed
by Lacan: the transferencial unconscious and the real one. The former
is the unconscious produced and read by the transference as long as it
is articulated to the subject supposed to know; it relies on the connection
between S1 and S2. The latter denies the former since one is in it when
the space of a lapse does not produce meaning or interpretation. This
real unconscious is external to the subject supposed to know, homologue
to the traumatism and formulated as a limit.
Key words: transferencial unconscious; real unconscious; sinthome.
1. O traumatismo Freud
Dicência2
(disance) lacaniana
A perspectiva que lhes trago, hoje, tem seu ponto de partida a posteriori3.
Inopinadamente, o que não quer dizer de modo inoportuno, ainda que isto
os tenha importunado, eu me vi marcando no ano passado, por três vezes
e de maneira não dissimulada, a distância que eu tomava, ou melhor, que
se tomava, entre este eu (je) que lhes fala e a dicência
lacaniana4;.
distância & dicência
Eu disse dicência. Essa não é uma palavra que eu tenha forjado,
mas sim um termo introduzido por Damourette e Édouard Pichon em seu Essai
de grammaire de la langue française5,
do qual Lacan o tomou. Aliás, ele teve um relacionamento pessoal com Édouard
Pichon que, além de gramático, era psicanalista e acolheu favoravelmente
o jovem Lacan nesse meio, dedicando-lhe um artigo em que deplorava, já
naquela época, seu caráter incompreensível6.
A dicência é “a língua tal como falada pelas pessoas de um dado
ofício”. Quanto aos hábitos profissionais, nossos autores fazem esta sensata
observação: “Os termos técnicos que designam atos, ferramentas, produtos
de um modo de atividade humana são freqüentemente ignorados pela maioria
das pessoas”7.
Digo dicência lacaniana porque essa língua me parece, hoje,
ter uma extensão suficiente para que lhe poupemos o nome de jargão,
mais pejorativo. Um jargão é a língua falada por um destes meios “que
recorrem, seja por interesse, fantasia, ou tradições particulares, a certas
construções frasais ou a vocábulos incompreensíveis para os não-iniciados8”.
A distância da dicência lacaniana na qual eu me encontrava
num certo momento foi suturada no ano passado, uma vez que - vocês são
testemunhas - retomei meu ramerrame que nos levou, até o final do ano,
através do Seminário: de um Outro ao outro9.
Se relembro essa distância da dicência em que eu me encontrava
é porque, definitivamente, ela me é preciosa e gostaria agora de fixar
nela minha posição para este ano.
A propósito, digo a mim mesmo: talvez eu tenha estado desde sempre, sem
o saber, nessa distância da dicência e talvez esse seja o segredo
do que chamam minha clareza –é o que me chega de fora –, que seria devida,
em última instância, ao fato de eu me esforçar para não me deixar levar
pela dicência dos psicanalistas e também porque, à distância da
dicência, deixo a Lacan a responsabilidade de seu dizer, o traço singular
de seu dizer que é sempre amortecido na dicência.
Reação e resposta Lacan formulou, assumiu sua singularidade de
maneira evidentemente enigmática quando disse, em seu Seminário: o
sinthoma: “É pelo fato de Freud ter verdadeiramente feito uma descoberta”
– supondo essa descoberta como verdadeira - “que se pode dizer que o real”,
a categoria do real da qual trata o Seminário, “é minha resposta
sintomática”10.
A descoberta suposta verdadeira, no caso, é o inconsciente. Lacan diz
também: “Digamos que é pelo fato de Freud ter articulado o inconsciente
que reajo a ele”11.
O real seria assim uma reação de um, de um só, à articulação freudiana
do inconsciente.
As duas palavras são ditas: reação e resposta. A resposta é sem dúvida
de uma ordem mais complexa do que a da reação. Mas talvez este seja o
termo menos significativo pelo fato de que Lacan ali está, se supõe estando,
num traumatismo.
Como entendê-lo? Da seguinte maneira, é simples: a descoberta de Freud
faz furo no discurso universal. Pelo menos essa foi a perspectiva adotada
por Lacan, de saída, no que concerne a Freud.
E o que convencionalmente chamamos o ensino de Lacan constitui,
em seu conjunto, uma resposta a esse furo. Sob modos variados, Lacan não
cessa de demonstrar que essa descoberta não tem alojamento em nenhum outro
discurso que a precedeu. Foi esse furo no universal - perspectiva tomada
por Lacan em relação a Freud – que o precipitou na elaboração múltipla
do discurso analítico, suplementar, a fim de dar moradia à descoberta
de Freud.
Lacan falou do acontecimento Freud, assinalando com esse
termo o corte introduzido por Freud, o que dele pôde se expandir. Eu,
porém, falaria de bom grado do: traumatismo Freud.
O acontecimento Freud foi - Lacan a ele retorna muitas vezes, a cada uma
de suas viradas e reviradas -, de saída, desconhecido, tamponado, a ponto
de Lacan poder dizer que a famosa peste, na verdade, se revelara “anódina.
Ali aonde ele [Freud] supunha levá-la” – os Estados Unidos – “o público
se arranjou com ela”12.
O que nos resta como ensino de Lacan provém de alguém que não se
arranjou com ela. A ambição desse ensino, aqui presente entre nós, é a
de repercutir o traumatismo-Freud. Nessa perspectiva, o que de fato podemos
pegar nas malhas de uma dialética são as repercussões de um traumatismo.
Lacan o disse a propósito do enunciado do real, sob a forma de uma escritura,
a dos nós: o enunciado do real sob essa forma “tem o valor de um traumatismo”.
Ele o tempera ou explica falando do “forçamento de uma nova escrita”13.
2. Inconsciente transferencial
Inconsciente // interpretação
Aqui está o que dá aos nossos sensatos estudos um dramatismo no qual não
conto instalá-los. Prefiro instalá-los na dificuldade visando, tanto quanto
me seja possível – em relação a mim, é claro -, balizar o que não passou
para a dicência. Para instalá-los, para nos instalar na dificuldade,
tomarei o último texto, bem curto, dos Outros escritos14.
Lacan o escreveu imediatamente depois de o Sinthoma - ele é datado
de 17 de maio de 1976, ao passo que o Seminário do Sinthoma
foi concluído em 11 de maio – e merece ser lido de perto. Eu o apresentarei
cuidadosamente a vocês, abrevio quando necessário. Vejam como ecoa a primeira
frase desse texto, feita de modo a ir direto ao cerne da questão: “Quando
[...] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação),
só então temos certeza de estar no inconsciente”15.
Isso pode nos parecer conhecido, pois o valor dos sem-sentido foi, desde
sempre, enfatizado e posto em função por Lacan. Todavia, o que essa frase
surpreendente comporta - se a observarmos de perto - é a disjunção entre
o inconsciente e a interpretação, uma exclusão entre essas duas funções.
Digo função no que concerne ao inconsciente, porquanto, nesse mesmo texto,
Lacan fala da “função inconsciente”16
Isso é próprio para fazer vacilar o que acreditamos saber da articulação
do inconsciente, visto tratar-se exatamente do avesso, por exemplo, da
tese desenvolvida no Seminário 6: o desejo e sua interpretação,
segundo a qual “o desejo inconsciente é sua interpretação”.
No citado texto, pelo contrário, temos de colocar uma dupla barra indicando
o corte, a desconexão entre o significante do lapso e o significante da
interpretação.
Significante do lapso // significante da interpretação
Alcançamos, aqui, em sua junção, o elo entre o famoso S1 e o famoso S2,
que são de nossa dicência - significante primeiro, significante
segundo –, o mínimo inscritível da cadeia significante acarretando, quando
S1 se engancha em S2, que o significante 1 venha a representar o sujeito
para o outro significante, o S2. Ora, nessa frase pode ficar imperceptível,
por ser colocado na abertura – na abertura desse texto, mas no fechamento
do Seminário sobre Joyce -, o fato de ela admitir, se a lermos
tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante
representativo. Isso ataca o que consideramos como o próprio princípio
da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise tem seu ponto de
partida no estabelecimento mínimo S1-S2 da transferência.
Uma transferência-causa
Aqui, S1-S2 tem uma outra escrita, homóloga, introduzida por Lacan em
sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”17.
Para que não nos enganemos, S1 é o significante da transferência em seu
laço com S2, um significante qualquer. A fim de fixá-lo, Lacan o escrevia
com um q. Isso implica traduzir em termos de significante a relação
que se estabelece, que condiciona a operação analítica.
Desse laço se produz, em posição de significado, sob a barra colocada
abaixo do significante da transferência, o famoso sujeito suposto saber.
S...........Sq
s (S1, S2, … Sn)
Disso resulta um sujeito. O sujeito resulta do estabelecimento dessa conexão.
Sobre esse modo de significado, dizia eu, doravante estará “presente”
o saber suposto, o conjunto informando sobre “os significantes no inconsciente” 18.
A engrenagem de um significante com o outro deve ser estabelecida para
daí resultar um efeito de sentido especial que, desta feita, diga alguma
coisa para todo mundo, mesmo sem ser uma expressão especializada. De um
jeito ou de outro, todos chegam a lhe dar um sentido sem passar pela dicência
lacaniana. E assim são então mobilizados, como dizemos, os significantes
no inconsciente.
Ao longo da análise, o inconsciente toma seu status dessa posição
suposta. Sabe-se que Freud conservou para o inconsciente, até o fim, o
status de uma hipótese, de todo modo não verificável pelos meios
aos quais ele cogitava apelar, a saber, as ciências da natureza. A partir
daí, reconhecemos o status do inconsciente como sendo transferencial.
Aliás, foi o que me levou a falar, previamente, de inconsciente transferencial19.
A transferência, então, longe de ser efeito do inconsciente, tem, pelo
contrário, em tudo o que de Lacan passou para a dicência, muito
mais um lugar de causa. É pela transferência que tornamos presente, mobilizamos
e lemos o inconsciente. Quando Lacan articula a transferência a partir
do sujeito suposto saber, ele a liga estreitamente ao inconsciente, nós
o observamos quando o vemos escrever, em “Televisão” : «a relação
com o sujeito suposto saber é uma manifestação sintomática do inconsciente
”20.
Conforme essa ótica, podemos dizer que o inconsciente freudiano é o inconsciente
transferencial e supõe a ligação entre S1 e S2. Disso decorre a distinção
a ser feita, a fim de sabermos onde estamos, entre o sujeito que consiste
no saber dos significantes e o sujeito a quem esse saber é suposto. No
estado de consistência tem-se, para retomar um termo sartreano, um em-si
(en soi), e se poderia imaginar, pelo fato de esse sujeito
vir a ser a quem esse saber é suposto, que ele teria o status de
para-si (pour soi).
Saber do si/consigo(soi) sozinho
Encontraremos novamente esse si/consigo (soi) precisamente porque
esta pequena frase do início nega o inconsciente transferencial: temos
certeza de estar no inconsciente quando o espaço de um lapso não tem mais
nenhum impacto de sentido ou de interpretação. Isso quer dizer: tem-se
certeza de estar no inconsciente quando não opera a conexão transferencial.
E, assim, Lacan acrescenta à sua abertura – o que é muito pouco lacaniano!
Mas ele pode se permitir isso, embora precise ainda de um forçamento para
conseguir incluí-lo - um pedaço de frase que incide sobre o “tem-se certeza”:
“ sabe-se, consigo (on le sait, soi)”21.
Quem é este si/consigo (soi), este si que
sabe que isso não tem nem pé, nem cabeça, nem sentido, nem interpretação?
Temos aqui um se (on) que não é, como Lacan pôde articulá-lo,
o do inconsciente, mas um se (on) que é si/consigo (soi).
Cabe ressaltar que nesses pedacinhos de frases de Lacan se trata de um
saber do si/consigo (soi) sozinho. Isso não acontece no famoso
registro da intersubjetividade, nem mesmo no da inter-significância entre
S1-S2, mas instala, desde o início, esse estranho ser cortado, sozinho.
É o que se pode verificar na seqüência do texto, permitindo apreender
o que Lacan formula, à sua maneira, nas entrelinhas: “ Mas basta prestar
atenção para que se saia disso”22
Não temos aqui o eu (Je ) ou o eu (moi) como sujeitos do
verbo. Temos um: “prestar atenção”, que se preste atenção para
se sair disso, do inconsciente. A atenção, que nos parece uma propriedade
psicológica, toma aqui um valor oposto ao do inconsciente no qual se tem
certeza de estar. O que se sabe (ce qu’on sait),consigo (soi),
sozinho.
Verdade mentirosa
O que é essa atenção incidindo sobre o lapso, para além do saber imediato
de que isso não tem sentido nem interpretação? Eu só vejo uma forma de
apreender o que é essa atenção, A atenção condiciona a associação. Associamos,
eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o
encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de
fato, nesse momento, há sentido e há interpretação.
O que se tentou apreender no espaço de um lapso já lá estava antes que
a máquina da atenção, cujo funcionamento tem como pivô o sujeito suposto
saber, se pusesse a funcionar. “Restaria, acrescenta Lacan, o fato de
eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu falho”23.
Esta palavra, falha (ratage), que realcei numa outra ocasião24,
designa aqui o que se obtém pela associação e até mesmo pela famosa intervenção
interpretativa do analista. Mas tudo isso falha! Passa ao lado do que
havia surgido, o espaço de um lapso.
Para marcar claramente como é tênue aquilo em que ele se apega - a tenuidade
absoluta, o fugidio, o evasivo -, Lacan trunca a expressão “o espaço de
um lapso” dizendo: “o esp de um laps”, uma assonância e uma forma de truncar
só possíveis em francês, para dizer que ali se tem certeza de estar no
inconsciente. E acrescenta algo que ali está como uma repetição para fixar
as coisas, uma afirmação valendo como tese: “Não há verdade que, ao passar
pela atenção, não minta”25.
Se vocês seguirem o fio que desenrolo a partir desses pequenos fragmentos,
ver-se-á estigmatizada ou interrogada a verdade mentirosa da associação
livre. Aqui, estamos numa perspectiva em que a associação livre, longe
de ser a chave da verdade, libera uma verdade filha da atenção e, desse
modo, uma verdade falhada.
Aqui, considera-se o Um-sozinho como pivô. Nesse texto, há pelo menos
duas alusões de Lacan ordenadas a partir desse sozinho. Diz ele: “Não
há amizade que esse inconsciente suporte”26.
Não há amizade que seja o suporte do inconsciente. O que a palavra amizade
vem fazer aqui? Ela é a expressão genérica com a qual designamos o laço
entre um e outro. Afinal, escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção,
poderia passar por um movimento amical, de ajuda à associação livre.
Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada por Lacan. O mesmo acontece,
um pouco mais adiante, quando vocês verão Lacan se divertir, como bem
o conhecemos - aqui, porém, isso toma um outro valor -, a respeito do
amor ao próximo, uma outra figura do laço de um ao outro.
Do solitário ao par
Essas duas indicações de Lacan mostram que, aqui, devemos convocar a ficção
do Um-sozinho. Dizemos ficção porque estamos na dicência
lacaniana ou psicanalítica. Todavia, a situação analítica não nos parece
fictícia. De modo especialmente ousado, ao mesmo tempo em que velado pela
anedota, Lacan busca a palavra solitário para qualificar a operação
freudiana. “Notemos que a psicanálise, desde que ela ex-siste, mudou”27.
Isso é bem conhecido. Acompanhamos os remanejamentos de Freud no que concerne
à sua teoria, a primeira e a segunda tópicas, e sabemos que, com Lacan,
os remanejamentos foram constantes - mas não é disso que se trata -, e
a própria pressão da profissão, seu nome, sua inscrição social, mudaram
a análise. O que aqui se visa - é preciso ter o topete de escrevê-lo -
é a psicanálise “inventada por um solitário”28.
Todo mundo sabe, hoje, que Freud tudo fez por sua transferência com Fliess.
A perspectiva trazida aqui por Lacan apaga o bom Fliess29.
É por essa razão que ele o chama o “teorizador incontestável do inconsciente”30.
Esta é uma perspectiva, é claro. Freud prestava atenção – e como! – em
seus pequenos espaços de lapso. Mas isso deve ser evocado num outro momento.
Precisamos primeiro ser cativados por essa nova figura de Freud, a de
um Freud sozinho. Aliás, em seguida, Lacan afasta seus discípulos,
que só o eram “pelo fato de ele não ter sabido o que fazia”31.
Inconsciente, se quisermos. Portanto, mesmo os discípulos são afastados
para deixar apenas o solitário em sua relação com o inconsciente, do qual
temos certeza quando não há sentido.
Desse mesmo modo, Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta
sintomática à descoberta de Freud32.
Isso vale para ele sozinho, a tal ponto que ele não tinha certeza de conseguir
comunicá-lo. Embora o tivesse inserido durante muitos anos em seus Seminários,
distribuídos agora em forma de livros, ele não tinha certeza de seu desdobramento.
Que a “psicanálise inventada por um solitário [...] seja agora praticada
aos pares” é uma inovação33.
Eis o que desordena, faz sair do que há de engrenado na prática, pois
nos pormos a operar em dois aparece como um fato número 2. Nesse sentido,
Lacan marca sua posição dizendo: “Sejamos exatos, o solitário nos deu
o exemplo”34.
Eis as mudanças: da relação solitária e desatenta com o inconsciente à
psicanálise aos pares, operando a partir do sujeito suposto saber, assim
como a que se refere à conexão mínima significante aqui desfeita. Não
nos esqueçamos: é a isso que Lacan se dedica no final de seu trabalhoso
Seminário: o sinthoma. O que valoriza a escolha, entre parênteses,
feita por ele, quando fala de Freud como o teorizador incontestável do
inconsciente: “(que só é o que se crê – digo: que o inconsciente seja
real – caso se acredite em mim)”35.
Eis o que pode nos servir de pequena abertura sobre a presente questão.
O inconsciente aqui delineado em filigrana é o inconsciente como real
e não o inconsciente como transferencial. O que imanta Lacan no
final de seu Seminário é um outro modo, uma outra perspectiva sobre
o inconsciente que faz dele real. De algum modo, é o inconsciente como
exterior ao sujeito suposto saber, exterior à máquina significante produzindo
sentido aos borbotões, por pouco que a deixemos funcionar, conforme acreditamos
que somos obrigados a fazê-lo.
Esse inconsciente como real é análogo, homólogo ao que evocamos inicialmente
do traumatismo. De todo modo, é certamente um inconsciente não transferencial,
formulado como um limite. No entanto, Lacan considera esse real como o
que mais lhe é próprio na acolhida que reserva à descoberta de Freud.
Se quisermos recosturar os pedaços aqui dispersados por mim, em sua “Proposição
sobre o psicanalista da Escola”36
na qual é introduzido o pivô do sujeito suposto saber como condição da
psicanálise, Lacan tem o cuidado de notar que o sujeito suposto saber
não é real. Aqui, podemos então fazer um jogo entre o inconsciente como
real e a operação que o tritura e também o dilui, ou seja, a do sujeito
suposto saber.
3. Urgência
O final do texto, tão curto, não é um final qualquer, pois chama a atenção
para uma palavra de peso cotidiano, aqui, porém, tendo um peso teórico:
a urgência. “Assinalo que, como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam
enquanto eu escrevia isso”37.
O que vale como um testemunho, se quisermos.
Do que se trata senão de um ponto de partida anterior ao estabelecimento
do significante da transferência em sua relação com o significante qualquer?
Lacan chama urgência a modalidade temporal que responde à ocorrência
ou à inserção de um traumatismo. Ele descarta a situação analítica como
sendo feita de um encontro e designa o que chamamos demanda do analisante
em potencial como requerimento de uma urgência. A palavra urgência
é, para Lacan, o nome do que aparece, do que põe em movimento o requerimento
do analisante em potencial.
Essa palavra urgência aparece também quando Lacan evoca a questão
da formação analítica, no texto “Do sujeito enfim em questão”38,
em termos anteriores aos de sua “Proposição”. Não consideremos mero acaso
o fato de ainda encontrarmos, no final desse texto dedicado à noção de
psicanálise didática como condição da formação – Lacan operando remanejamentos
sobre sua concepção -, a evocação da urgência. “Agora, pelo menos, podemos
nos contentar com a idéia de que, enquanto perdurar um vestígio do que
instauramos”- é o momento em que ele está concluindo seus Escritos
– “haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas,
ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse dizer demais,
ou, mais ainda, desejar demais”39
Deixo de lado esse ponto em que ele não diz os psicanalistas, mas
sim psicanalistas, a fim de enfatizar que a palavra urgência, urgências
subjetivas, no caso, é posta como o colofão desse texto para validar
que se trata, de fato, da função psicanalítica essencialmente relacionada,
antes do começo da análise, com a urgência, ou seja, com a emergência
do que faz furo como traumatismo.
Essa urgência foi também celebrada por Lacan em seu “Relatório de Roma”,
no qual a importância desse termo para ele se evidencia, importância que
devemos manter. E nós não deixaremos que ela se perca por termos criado,
hoje, ainda que minimamente, dispositivos bastante inseridos na sociedade
visando tratar a urgência. Esses Centros de urgência devem ser tratados
com a dignidade dada por Lacan a esse termo40.
Em seu “Relatório de Roma”, ele o ressaltou:“Nada há de criado que não
apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na
fala”41.
Temos aqui a ilustração disso, pois essa urgência com a qual devemos fazer
par é precisamente o que solicita, no requerente, naquele que faz o requerimento,
nele e para ele, a ultrapassagem da fala que é também, na perspectiva
desenvolvida aqui, a falha da verdade mentirosa.
Há ainda um pequeno acréscimo feito por Lacan: “Mas nada há, tampouco,
que não se torne contingente nela”42.
Eis um termo mais técnico que deveremos articular um pouco na seqüência
de nossos encontros. Isso já implica em marcar, tal como Lacan se dedicou
a fazê-lo de maneira lógica, o que há de não eliminável na função da pressa,
a urgência sendo de algum modo a versão terapêutica da pressa. Em tudo
aquilo que tem a ver com a verdade há sempre uma precipitação lógica.
E basta acrescentar que nos pusemos atentos também à precipitação na mentira,
possível de ser veiculada pela verdade. Isso por certo requer uma estratégia
da verdade que é, como evoca Lacan em De um Outro ao outro, “a
essência da terapêutica”43
e, do ponto aonde Lacan nos conduz, cabe apenas acrescentar que essa estratégia
da verdade deve dar um lugar à mentira que ela comporta.
A fim de agitar um pouco a coisa, para mostrá-la palpitante, eu os lançarei
na relação que gostaria de estabelecer e os remeterei ao comentário de
Lacan sobre a alucinação do Homem dos lobos, tal como ele a situa no início
de seu ensino, em conexão com o que delineei, a partir de uma leitura
minuciosa, do lugar do real. Com freqüência se lê esse texto relacionando-o
com “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”44,
texto incidindo sobre aquilo que, uma vez cortado de toda manifestação
simbólica, reaparece, diz cuidadosamente Lacan, “erraticamente”45.
Essas manifestações erráticas do que é cortado da simbolização e que serão,
em “O espaço de um lapso”46–
texto que vem no final do Seminário sobre Joyce -, valorizadas
na psicose, já figuram o que Lacan chamou ‘real sem lei’, ou seja, um
real disjunto do simbólico e que o supera.
Essas considerações desembocam, tal como explicitado nesse último texto
de Lacan, no deslocamento ao qual ele submeteu a prova crucial a que chamou
passe. Há um mal-estar no passe e nas instituições que primeiro quiseram
pôr em marcha essa prova. Desde O sinthoma, de Lacan, é a partir
do real que esse mal-estar no passe pode ser a um só tempo situado e superado.
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
1Jacques-Alain
Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise
(Paris VIII).
2NT:
a palavra “dicência”, sozinha, não existe em português.
A fim de mantermos uma proximidade homofônica com o termo disance,
optamos por decompor e substantivar o termo “dicência”
que entra na composição de alguns vocábulos referentes
ao dizer ou à maneira de dizer.
3Texto
e notas da primeira lição da Orientação lacaniana
III, 9 (2006-07)
4J-A
Miller alude aqui ao fato de não ter dado aula, por três vezes,
nos meses de novembro e dezembro de 2005. No entanto, ele veio ao encontro
marcado na sala Paul Painlevé, no CNAM, explicando então que
preferia calar-se, não queria contornar “essa falha”,
essa “dificuldade de falar lacaniano”, preferindo muito mais
confrontar-se com ela; não lhe faltava material, mas sim, acrescentou
ele, “sua escansão” e o “o ponto de basta”
que o tornaria legível.
5Damourette,
Jacques & Pichon, Édouard, Des mots à la pensée.
Essai de grammaire de la langue française (1911-1940), Paris, Edition
d’Arthey, 1968, T.I, p. 45-55.
6Pichon
É., “La famille devant M. Lacan” (1939), Revue française
de Psychanalyse, 11, n. 1-2, Paris, 1939, p. 107-135.
7Damourette,
J. & Pichon, É., Essai de grammaire de la langue française,
op.cit., p. 45.
8Ibid.,
p. 46.
9Cf.,
Miller, J-A, “Introdução à leitura do Seminário:
De um Outro ao outro” (2005-06), La Cause freudienne n. 64, Paris,
Seuil/Navarin, 2006, pp. 137-169, e n/s. 65 & 66, a serem publicados
em 2007.
10Lacan,
J., Le Séminaire, livre XXIII, Le Sinthome (1975-76), Paris, Seuil,
2005, p.132.
11Ibid.
12Cf.
Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa
do Seminário XI” (1972), Outros escritos, Rio de Janeiro, J.
Zahar ed., 2003, p. 567.
13Cf.
Lacan, J., Le Séminaire Le sinthome, op.cit., p 130-131
14Lacan,
J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário
XI”, op.cit, p. 567
15
Ibid., p. 567
16Ibid.,
p. 568
17Lacan,
J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista
da Escola” (1967), Autres écrits, p.cit., p. 248.
18Ibid.
19Miller,
J-A, “Notre sujet suppose savoir. Présentation du theme des
Journées d’études 2007”(2006), La lettre mensuelle
n. 254, janeiro de 2007
20Lacan,
J., “Televisão”, Autres écrits, op.cit., p. 543
21Lacan,
J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário
XI”, op.cit., p. 567
22Ibid.
23Ibid.
24Cf.
Miller, J-A., Orientação lacaniana III, I (1998-99).
25Ibid.
26Ibid.
27Ibid.
28Ibid.
29Aqui,
J-A Miller remete à recente publicação em francês
das Cartas a Wilhem Fliess (edição completa), de S Freud,
Paris, PUF, 2006; ele especifica que “a evocação feita
por Lacan de Freud como solitário vem bem a calhar”.
30Lacan,
J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário
XI”, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567.
31Ibid.
32Cf.
Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris, Seuil,
2005, p. 132
33Ibid.
34Ibid
35Ibid.
36Cf.
Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre
o psicanalista da Escola”, op. cit.
37Lacan,
J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário
XI”, op. cit.
38Laca,
J., “Do sujeito enfim em questão” (1966), Escritos, Rio
de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 229
39Ibid,
p 237
40J-A
Miller fala dos CPCT criados pela Escola da Causa freudiana e por outras
Escolas da Associação Mundial de psicanálise.
41Lacan,
J., “Função e campo da fala e da linguagem”(1953),
Escritos, op.cit., p 242.
42Ibid.
43Lacan,
J., De um Outro ao outro, op.cit., p 19
44Lacan,
J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose” (1958), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998,
p. 537.
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