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As
seitas e o nome-do-pai2
Romildo do Rêgo Barros2
romildorbarros@terra.com.br
Resumo: O autor pontua
a divergência etimológica da palavra “seita”:
o verbo secare, cortar ou o verbo sequi, seguir. Na primeira privilegia-se
a separação de um todo do qual a seita teria sido uma parte;
na segunda, é a própria relação do sectário
com o líder e com sua doutrina que está em questão.
Conforme o autor, vista como adesão – ou como alienação
-, a seita é um retorno do Um, sob a forma de uma mestria.
Palavras-chave: Alienação; separação;
significantes mestres; seita.
Abstract: The author points out the ethimological divergence
in the word ‘sect’ : the verb secare, to cut or the verb sequi,
to follow. In the former, separation - from a whole from which the sect
would have been a part - is privileged; in the latter, what comes to question
is the relation the sect follower has with the leader and his doctrine.
According to the author, seen as addiction – or as alienation-,
the sect is a return of the One in its master’s aspect.
Key words: Alienation; separation; master signifiers;
sect.
“Où le dommage pourtant ? quand pas plus loin ne va-t-il
que n’en souffre le personnage vaporeux de l’histoire, qui
pour avoir, des barreaux d’une grille tâtés pas à
pas, retrouvé l’unmarqué d’abord, concluait
: “Les salauds, ils m’ont enfermé”. C’était
la grille de l’Obélisque, et il avait à lui la place
de la Concorde” 3.
Há, como se sabe, uma divergência
quanto à etimologia da palavra “seita”. Uns afirmam
que a sua origem remonta ao verbo latino secare, cortar, e outros contrapõem
o verbo sequi, seguir. Na primeira explicação dá-se
ênfase à separação de um todo do qual a seita
teria sido uma parte, e na segunda é a própria relação
do sectário com o líder e com sua doutrina que está
em questão.
Imaginemos, apenas como ficção, que não se trata
de uma disputa de eruditos, a ser resolvida quando um deles produzir uma
prova cabal em favor de um dos dois verbos. Imaginemos, mesmo se parecer
absurdo, que a dupla etimologia se deve ao fato de que a própria
significação do termo é vacilante, tornando necessária
mais de uma fonte latina para dar conta do seu sentido, que nunca será
unânime. Secare e sequi serão, portanto, necessários
um ao outro, e a escolha por um deles deixará de lado uma parte
do sentido.
Secare
Vista deste lado, a definição de “seita”
obedece ao padrão das relações entre o todo e a parte.
Ou seja, seita e igreja se implicam mutuamente, a tal ponto que o surgimento
da primeira é com freqüência o indício de alguma
crise de legitimidade ou de funcionamento no seio da última. As
seitas mantêm uma referência à ortodoxia da qual se
separaram, muitas vezes em nome de uma fidelidade aos objetivos originários
da doutrina.
Vai nesse sentido a definição proposta pelo teólogo
Ernst Troeltsch, amigo e colaborador de Max Weber, que condenso com minhas
palavras:
- A igreja é uma organização eminentemente
conservadora e bem adaptada à estrutura do poder secular, enquanto
a seita se caracteriza pelo seu “separatismo” e laicismo;
- A igreja considera a ordem secular como uma preparação
para a vida sobrenatural, enquanto a prática sectária,
de certa forma, já faz parte dos objetivos sobrenaturais da vida.
Se o trabalho da igreja no mundo é o de preparar os seus membros
para a eternidade, a seita pretende antecipá-la.
Max Weber4
acrescentou às observações de Troeltsch uma outra,
que, considerada do nosso ponto de vista de hoje, quando as denúncias
de opressão psíquica por parte de certos dirigentes de seitas
mobilizam governos, famílias e educadores, pode parecer surpreendente:
a adesão à seita se dá como livre escolha de cada
candidato, assim como a aceitação das regras e normas.
Certamente, a liberdade de que trata Weber – ele, aliás,
se referia a movimentos religiosos em boa parte diferentes das atuais
seitas - diz respeito à ausência de estruturas complexas
de poder, cujo exemplo mais acabado se acha na Igreja Católica;
e, sobretudo, ao fato de que, para Weber – num acordo antecipado
com o que vão apontar Jacques-Alain Miller e Jean-Claude Milner,
segundo os quais o contrato é uma alternativa contemporânea
à lei5
-, a comunidade sectária é fruto de um compromisso voluntário
de tipo contratual. A adesão à seita se dá como um
ato individual, ao contrário do que ocorre nas igrejas, cuja transmissão
se dá de geração em geração, pela via
da tradição, e em sintonia com a cultura local.
Essas definições, como se pode ver, exigem que se mantenha
uma relação entre o todo e a parte: só há
seita em relação a uma igreja. Para usar o exemplo da talvez
mais célebre heresia do ocidente medieval cristão, há
sempre um católico (universal, em grego), como pano de
fundo do qual se destaca um cátaro (puro, também
em grego). A seita é seita se considerada como uma extração
da igreja, mesmo quando pretende ser a realização mais rigorosa
e integral dos objetivos originários.
A seita, entendida como separação,
pretende em muitos casos representar em ato o mais íntimo e essencial
da mensagem originária do fundador. É uma parte que justifica
a sua existência presente com a esperança, em alguns casos,
de que no futuro será ela o todo: um dia, seremos o gênero
humano. O que constitui hoje uma heresia, será amanhã a
ortodoxia, com a diferença de que, quando isto ocorrer, se manterá
a pureza da doutrina, cuja literalidade não será perdida
ao se exprimir através de dispositivos.
Temos aqui montada uma máquina infalível:
o funcionamento eclesiástico – ou político, ou intelectual
-, que é uma síntese entre a mensagem do fundador e o inevitável
automaton dos dispositivos institucionais, é visto pelos
sectários como traição, enquanto estes são
considerados pelo aparato da igreja como heréticos. Esta rejeição
mútua é provavelmente o que dá consistência
à relação entre as duas.
Mas, onde se encontra a fronteira? Como
saber quando, em que ponto, uma seita se torna igreja, ou, pelo contrário,
renuncia a ser a expressão do todo e se mantém como um grupo
singular? Ou, no outro extremo, como distinguir a particularização
sectária da tendência comunitarista, igualmente ligada à
crise da lei? São talvez fronteiras móveis, impossíveis
de precisar.
Sequi
Entendida como uma derivação do verbo sequi, a definição de seita
é menos simples. Já não se sabe muito bem a que grupo se atribuir o adjetivo
“sectário”. A “dérive sectaire”6,
considerada com razão como um grave problema da nossa época, indica igualmente
uma dispersão de sentido. No último debate entre
os candidatos à presidência dos EUA o debatedor pergunta
a cada um dos oponentes se eles realmente consideram a homossexualidade
uma “escolha sexual”. Mais adiante o mesmo debatedor quer
saber de cada um sobre o papel desempenhado pela mulher em suas vidas
e sobre o que eles pensam a respeito das experiências com as células-tronco.
As seitas contemporâneas parecem ser marcadas bem mais pela adesão a um
guia do que pela oposição a um universal do qual se teriam separado. Isto
se deve em parte ao fato de que algumas delas não reivindicam nenhum fundamento
propriamente religioso. Algumas sequer se reclamam de alguma cisão fundadora,
mas simplesmente de uma nova doutrina ou uma nova iluminação, encarnada
em um chefe ou profeta cuja legitimidade Max Weber chamaria de “carismática”,
uma vez que não provém nem da tradição e nem das prerrogativas da função.
É normal, portanto, que a discussão atual se dê mais em torno do risco
de uma entrega irrestrita aos caprichos do líder, do que em torno da verdade
ou falsidade doutrinária - inclusive por não se saber de onde viria a
decisão sobre a ortodoxia6.
A brutal conclusão Roma locuta, causa finita, que, sob a hegemonia
católica, calava as divergências ao fixar a fonte da autoridade, parece,
pelo menos por um tempo, ter-se pulverizado nas vozes de múltiplas agências
anônimas, localizações fragmentárias do poder burocrático. A discussão
teológica – que, naturalmente, não precisa explicitar nenhum deus como
objeto de estudo, mas exige de qualquer forma um Um consistente - encontra
nesse ponto um obstáculo.
Temos aqui que considerar dois aspectos em aparência contraditórios: por
um lado, as seitas servem como tentativas de recuperação do Um, no sentido
de que a adesão irrestrita dos seus membros circunscreve um espaço coletivo,
e fornece, a cada um e a todos, um significante-mestre no qual se reconhecem:
a si próprios, aos companheiros de seita e aos estranhos.
Por outro, não podemos ignorar que as seitas, tal como se apresentam atualmente,
são uma expressão da fragmentação do Um, e, neste sentido, são a própria
dispersão, e não uma reação contra ela. Podem até dispensar qualquer intenção
ou “estratégia de salvação”, a exemplo daquelas que se instituem como
simples práticas de convivência, terapêuticas, sexuais, alimentares, etc.
Ou seja, na falta de uma resposta universal, os sujeitos se representam
em traços particulares (ou “paroquiais”, segundo a acepção dada certa
vez por Jacques-Alain Miller a este termo), ou através de acordos parcelares,
e não em alguma grande comunhão universal.
I, e depoisa
Secare e sequi marcam, neste
texto, dois momentos dialéticos importantes.
A constituição de uma seita como separação representa um atentado ao Um,
em geral contrabalançado, à maneira histérica, pela exigência de que este
resista, pois é a permanência do Um que dá sentido ao atentado.
Vista como adesão – ou como alienação -, a seita é um retorno do Um, sob
a forma de uma mestria – uma lei, um regulamento. Talvez a separação conduza
inevitavelmente à adesão, mas não se deve esquecer que, entre uma e outra,
há uma passagem pelo objeto, no ponto limite em que os ideais coletivos
se esgotam.
É precisamente este ponto que é hoje em dia motivo de inquietação e de
discussão : nestes tempos de crise dos universais, a auto-suficiência
das seitas, que parecem se bastar, quer como explicação do mundo, quer
como modo de vida, tem chegado em alguns casos a extremos, como foi o
caso, em abril de 1993 nos Estados Unidos, da célebre chacina dos membros
da seita dos davidianos, liderada por David Koresh.
Poderão os psicanalistas, a partir do que aprendem nas suas práticas,
demonstrar que é possível a produção de novos significantes-mestres –
ou de novos contratos -, após a dura experiência de falência dos ideais ?
Esta seria uma alternativa ao pior.
1Texto publicado originalmente em Scilicet dos Nomes do Pai. Textos preparatórios
para o Congresso de Roma, 13 a 17 de julho de 2006. AMP.
2AME
da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP.
3Lacan,
J. Discours à EFP. Scilicet, 2/3, 9-29.
4Weber,
M. (1996). Sociologie des Religions (p. 318). Paris : Éditions
Gallimard.
5Miller,
J.-A., & Milner, J.-C. (2004). Voulez-vous être évalué?
Col. Figure. Paris: Grasset & Fasquelle éditeurs.
6Expressão
criada por Anne Fournier: « La dérive sectaire », in
Le Journal des Psychologues n° 174 - Février 2000 - Dossier
Les sectes : Un danger pour la profession. A autora publicou, em colaboração
com Michel Monroy, um livro com o mesmo título : Paris, PUF, 1999.
7Como
exemplo dessa tendência, cito uma lista divulgada recentemente por
uma organização católica peruana, alertando o leitor
para os perigos graves e diversos das seitas, mas sem se referir a erros
de doutrina : «abuso sexual e corrupção de menores,
obrigação à prostituição, privação
da liberdade e seqüestros, torturas, automutilações,
tráfico e consumo de entorpecentes, suicídios, homicídios
por encargo, tráfico de armas de guerra” (ACI-digital, órgão
da ACI Imprensa). |