Por Uma Epistemologia Clínica1

Marcus André Vieira2

mav@gbl.com.br

Resumo: O autor discute o texto freudiano “O homem dos Lobos” trazendo a questão de sua atualidade, assinalando que o cerne de um relato clínico não se refere aos dados históricos, mas ao real do caso, seu umbigo, seu ponto vital, que deve estar inscrito no mesmo. A epistemologia da psicanálise só pode ser, portanto, clínica.
Palavras-chave: O homem dos lobos; epistemologia; psicose.

Abstract: The author discusses Freudian text “The wolf man” bringing up the question to its current importance. He points out that the nucleus of a clinical report is not referred to historical data, but to the real of the case, its umbilical vital point, which must be inscribed in it. Therefore, an epistemology of psychoanalysis can only be clinical.
Key words: The wolf man; epistemology; psychosis.

Por que ler, hoje, o “Homem dos lobos”? Qual seria o sentido - para um analista às voltas com as tão concretas demandas do campo da saúde mental, das instituições carcerais, jurídicas, universitárias e tantas outras - dessa leitura? Ainda encerraria ele alguma orientação clínica válida?

Versões do lobisomem
A "História de uma neurose infantil" pertence à galeria dos casos com que Freud instituiu os marcos fundamentais da clínica psicanalítica. É o relato do tratamento de Serguei Pankejeff, cuja identidade só se tornou conhecida após sua morte, em 1979. Para todos os que ali puderam apreender algo da psicanálise, Serguei foi conhecido unicamente através do epíteto que lhe deu Freud, o de "Homem dos lobos".
Apesar de referido a alguém de carne e osso, o caso foi sempre, essencialmente, um texto. Como tal, presta-se a inúmeras leituras. Pode, primeiramente, ser tomado como um clássico da literatura universal, patrimônio da humanidade. Ora, “clássico”, como define J. A. Miller, é o que se presta à classe, bom para a sala de aula. Os clássicos são os classificados, postos na gaveta ou no balcão de venda, compondo o acervo de citações de um homem culto.
Se assim fosse, afora a deferência para com seu mais ilustre precursor, o psicanalista teria poucos motivos para debruçar-se sobre o Homem dos lobos. Um caso só será clínico se seu valor de apreensão do fazer psicanalítico se mantiver preservado a cada novo leitor. Neste sentido, que seja o Homem dos lobos um clássico, mas em sintonia com a definição de Millôr Fernandes para quem um clássico é “alguém que não se contentou em chatear apenas seus contemporâneos”.3
Bom clássico é o que se mantém vivo em seus efeitos sobre leitores de várias gerações como texto-que-perturba. Isso talvez nos dê uma idéia mais aproximada do efeito causado pela convivência com Pankejeff à época em que entra em contato com Freud: ex-nobre esnobe, subserviente, virulento e hipocondríaco, racional e enlouquecido. Millôr não deixa de destacar, assim, o valor clínico da literatura, ou ao menos da boa literatura. Ela, tal como a psicanálise, verifica o poder da palavra sobre o corpo ou, em termos mais lacanianos, toca no real a partir do significante.
Ainda estamos distantes da psicanálise, apesar deste ser um dos departamentos insistentemente oferecidos a ela, nos Estados Unidos por exemplo. Lacan está bastante presente na América desde que não o procuremos nas clínicas psicanalíticas ou mesmo na psicologia, mas nas faculdades de letras. Prova um filme recente de Alan Parker, A vida de David Gale. Kevin Spacey, no papel principal desta produção de grande orçamento e distribuição, é um professor de filosofia que dedica bom tempo a ensinar Lacan a seus alunos e que demonstra em sua própria vida e de modo radical o lugar do desejo. Tudo isto sem que nenhuma referência seja feita à psicanálise.
É uma maneira tentadora de lidar com os casos de Freud, basta tomar seus protagonistas como personagens. O próprio Freud reconhecia que seus relatos se liam como romances e não faltaram filmes que tomaram os pacientes de Freud como seres de ficção.4 O tratamento do Homem dos lobos poderia, inclusive, ser lido sob o ângulo de uma epopéia iniciática em que, tal como o Sidarta de Herman Hesse ou o Alquimista de Paulo Coelho, atravessaríamos, juntamente com o protagonista, uma edificante ascese rumo à elevação terapêutico-espiritual.
O uso clínico da literatura distingue-se, no entanto, de um relato clínico. No primeiro, os efeitos, eventualmente concretos, da leitura, serão considerados a partir de um plano dual entre autor e leitor. No segundo, algo do personagem em questão, irredutível à identificação do leitor com seu herói-personagem, deve necessariamente ser levado em conta. O relato, por parte do analista, de um tratamento, não visa provocar por si mesmo o efeito obtido com o paciente, mas sim a demonstração do modo como se operou para obtê-lo.
Talvez isso explique porque nós, psicanalistas, costumamos valorizar dados da história do paciente. Buscamos compensar o efeito ficcional de nossos casos clínicos com o maior número possível de elementos, senão objetivos ao menos concretos. Tentamos dar corpo ao homem através de sua história, trazer seu contexto para lhe dar um lugar no real.

Da história ao homem
O Homem dos lobos é um prato cheio para os adeptos da história. Não morreu cedo como Ernst, o Homem dos ratos, não resistiu a ter seu nome associado à psicanálise como Bertha, a Anna O., nem esqueceu seu tratamento como Max Graff, o pequeno Hans. Colocou-se à disposição da psicanálise e de seus historiadores, deu entrevistas, redigiu suas memórias. Viveu noventa e dois anos e atravessou o século vinte a ponto de sua história se confundir não somente com a da psicanálise, mas com a do próprio século.
Exatamente por isso o Homem dos lobos é o que melhor nos ensina o erro da aposta na história como modo de dar lastro clínico ao caso. O livro de Muriel Gardiner, por exemplo, empenha-se em tornar público quem realmente teria sido Serguei Pankejeff.5 Reúne, ao texto de Freud, os relatos de tratamento de seus dois outros analistas, assim como as lembranças de Serguei sobre sua vida - incluindo as referentes a seu célebre tratamento com Freud - além de um relato de seus últimos anos. Muito se pode, ali, aprender sobre o homem dos lobos ao modo de uma biografia a mais completa possível. Pouco se acrescenta, contudo, ao que o texto de Freud pode nos ensinar sobre a psicanálise.
Aprende-se, por exemplo, que Serguei foi tomado por um delírio claramente configurado no sentido psiquiátrico do termo em seu segundo tratamento, com Ruth Mack Brunswick. Nada nos permite concluir, porém, sobre o papel exato da psicanálise neste quadro: ela havia protegido Serguei do delírio até então ou, ao contrário, o deflagrou? Acrescentar dados ao dossiê do personagem histórico não elimina a necessidade de uma operação de leitura que extraia da biografia um homem. Um personagem histórico terá sua verdade sempre refém do último revisionista que, de posse de novos dados, queira mudar o sentido do que terá sido. Mantendo-nos neste plano, apenas por transferência para com o autor admitiríamos a interpretação de Freud como mais próxima do real que outras.
É neste sentido que se encaminha a leitura do historiador Carlo Ginzburg, um dos grandes nomes da micro-história, ou história dos anais. Após estabelecer toda uma série de analogias entre o caso do Homem dos Lobos e elementos do folclore eslavo, documentos de um inquérito do século XVII sobre um lobisomem e a seita dos Andarilhos do Bem, de Friul, nos séculos XVI a XVIII, Ginzburg situa o sonho como induzido por seu contexto cultural. Serguei, nascido com uma coifa e no dia do Natal, era de uma família aristocrática eslava, tinha sido criado por uma governanta inglesa e por uma “nania” eslava. As lendas eslavas vinculariam as pessoas que nascem com a coifa no Natal poderes excepcionais, entre os quais o de se tornar lobisomem. A partir desta série de indícios históricos, a neurose de Serguei se explicaria pelo fruto do conflito cultural ao qual estava submetido, entre a aristocracia e a cultura popular: “o homem dos lobos não seguiu o caminho que estaria aberto dois ou três séculos atrás. Em vez de se tornar lobisomem, tornou-se neurótico, à beira da psicose”.6
Fica claro, portanto, que um caso psicanalítico deverá realizar a proeza de incluir seu real no próprio texto, sob pena de não se distinguir de uma ficção histórico-biográfica.

Homus patologicus
Antes, porém, de buscar delimitar este tour de force, é preciso descrever um perigoso modo de contornar o relativismo que o ponto de vista contextual-histórico introduz. Trata-se de tomar o real como diretamente acessível, como entidade a-histórica que determinaria o leque de narrativas. O modo mais comum de incorrer neste realismo ingênuo é definir o homem a partir de uma patologia. O Homem dos lobos teria sido um psicótico e não um neurótico obsessivo. Anna O. era, na verdade, uma epilética, mal diagnosticada por Breuer e Freud e assim por diante.7
Esta patologização do real pode fornecer um lastro sólido à clínica face ao relativismo historicista, mas corre o risco de apenas conferir uma falsa impressão de domínio por simplesmente apor um sentido ao real. De fato, quando desestribada do trabalho clínico, da intervenção e interação direta com o paciente, torna-se o que J. A. Miller e J. C. Milner designam uma “máquina de impostura” que tem engendrado uma reação política sem precedentes na França, liderada por J. A. Miller8. Apoiando-se em uma pseudo-matematização do mundo psíquico, esta impostura se torna o mais bem acabado fruto de nosso tempos obscurantistas, em que o simples uso de números parece garantir a cientificidade do processo e assegurar proteção contra qualquer reflexão crítica.
Tomemos alguns exemplos, retirados da revista ÉPOCA. A inglesa Clio Cresswell, professora de Matemática na Austrália, em seu livro Mathematics and Sex que está na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos, destaca o modo como os psicólogos lidam com os “padrões de comportamento comuns entre amantes”. “Criamos equações a partir desses padrões para conseguir prever o comportamento, otimizando os resultados.” Citemos a revista:
Tome-se, por exemplo, a equação desenvolvida pelo matemático Peter Todd, do Max Planck Institute for Psychological Research, na Alemanha. A complicada equação levou em conta que, ao longo de uma vida, uma pessoa tem chances de ter relacionamentos com algo entre cem e mil pessoas conhecidas. Parece muito, mas esse universo contabiliza colegas de escola e trabalho, conhecidos da academia e de viagens, amigos de amigos etc. Todd também usou dados sobre índice de divórcio e expectativa de vida. Chegou ao seguinte resultado: depois de ter relacionamentos com 12 pessoas pode-se ter uma idéia clara o suficiente para identificar qual é o perfil de parceiro com o qual “vai dar certo”. Daí, entra em cena a sorte - esse pode ser a pessoa número 13 ou 113. Pelos cálculos de Todd, quem fizer essa escolha baseada na experiência adquirida com os 12 primeiros parceiros tem 75% de chance de acertar o par ideal.
O objetivo dessas fórmulas é mostrar como e por que os padrões de comportamento mudam, se esses padrões são permanentes ou transitórios e se é possível prever se outros podem aparecer. Cada variável em uma das fórmulas pode ser resultado de várias contas. Daí ser impossível para quem não está envolvido no estudo decifrá-las - muito menos calcular o resultado. Por exemplo: a primeira equação surge a partir de um sistema que mede e dá notas às interações positivas e negativas registradas durante a conversa de um casal, filmada em vídeo. A variável “I” é o somatório dos fatores de persuasão de um membro do casal sobre o outro (do tom de voz conciliatório a um decote mais ousado) analisados e registrados pelos cientistas. Algumas dessas equações, apenas a título de curiosidade.

Wt+1=a + r1W1+IHW(H1)
Ht+1=b + r2H1+IWH(W1)

John Gottman e James Murray, da Universidade de Washington medem como um casal se comporta e quanto cada um deve ceder para manter a relação saudável. Quando um casal discute, os cientistas geram notas a cada seis segundos. Elas dizem respeito ao tom de voz, ao olhar, à postura e, claro, ao que é dito. Gottman consegue prever com 90% de acerto se um casal vai ou não se separar.

x1(t)=-?1x1(t) + R1(x2(t))+I1(A2)
x2(t)=-?2x2(t) + R2(x1(t))+I2(A1)

O matemático italiano Sergio Rinaldi afirma que quanto mais atraente, maior é a chance de ser amado. 1 representa um amante, 2 o outro e x1 e x2 significam o volume de amor que um sente pelo outro. A paixão de 1 aumenta proporcionalmente ao nível de atração exercido por 2. A atração pode ser física, intelectual, financeira e sexual - cada um tendo um valor específico.9

Galileu e Freud
Estamos bem distantes da ciência, ao menos tal como situada pela leitura, por Lacan, de Alexandre Koyré. Nem o amor, nem o Homem dos lobos poderiam ser objetivados pela ciência simplesmente porque para ela não existem seres externos à sua operação, a serem definidos a partir de equações. Ela não é o recobrimento do mundo pela matemática, sua colonização pelas fórmulas. Trata-se, na verdade, de “substituir o mundo real da experiência quotidiana por um mundo geométrico hipostasiado”10 Em vez de recobrimento, substituição. A ciência não traduz os seres em fórmulas, mas sim os aborda como se fossem feitos de fórmulas. Em um certo sentido eles deixam de existir como seres, unidades prévias, e passam a ser tomados apenas como entes digitais, em um plano essencialmente literal-simbólico. Opera-se, assim, como se o simbólico real fosse ou, como prefere Lacan, como se houvesse saber no real.11
A ciência considera o universo do vivido como regido por leis matemáticas e busca destacá-las, o que é o oposto de buscar produzir uma mera quantificação da experiência. Assim, “O destino da ciência está vinculado (...) ao número na medida em que o número figura, de forma enigmática, a presença do significante no real”.12
Para fazê-lo, a ciência esvazia, em um procedimento do qual a dúvida hiperbólica de Descartes é o paradigma, tudo o que, em um dado universo, corresponde ao singular. Tudo o que propriamente chamaríamos “temperamental” ou, com Freud, de "estranho". Reduz-se o estranho a um ponto, que é em seguida descartado, ou foracluído segundo Lacan. Nada mais poderá ser dito/escrito do que no Homem dos lobos é seu elemento singular. É isto que recuperamos com o termo “sujeito”.13
Esta verdadeira “ideologia da supressão do sujeito”, como Lacan define a ciência, é, no entanto, essencial à psicanálise. Esta traz a singularidade à tona não mais como um corpo de sentidos atávicos ou mágicos, mas como um ponto cego, exatamente aquele produzido pela ciência no mesmo movimento em que o descarta.14 É este sujeito que permitirá à psicanálise constituir-se como prática original de lida com o sujeito - ponto nevrálgico de uma existência - como vazio de sentido. Em vez de um Homem, situado pelos valores e sentidos da tradição, tal como visa resgatar, em Freud, Ginzburg, encontramos uma “casa vazia”, ponto de convergência dos determinantes estruturais de uma história. Basta conferir o esquema elaborado por Elisa Werlang Couto, que espacializa o trabalho da análise de Serguei Pankejeff, para perceber como tudo converge para os lobos e destes para a construção da cena primitiva.15
Compreende-se porque a psicanálise, à diferença da ciência, não procede por um conhecimento cumulativo. Ela não prolongará as ramificações acima em direção a uma rede cada vez mais vasta de saberes sobre seus pacientes. Ela procederá, para cada caso, tal como Freud, a um delineamento da rede dos conhecimentos de uma vida apenas para chegar a seu umbigo, seu ponto vital. Os conhecimentos sobre o Homem podem variar contextualmente e mesmo evoluir, enquanto os conhecimentos sobre o que faz cada homem ser o que é serão sempre necessariamente limitados a uma existência e deverão ser reconstituídos, caso a caso, de modo muito próximo ao trabalho realizado por Freud com o Homem dos lobos.

Sujeito e objeto: neurose e psicose
Vê-se bem como a abordagem freudiana, já ensinava Lacan, é em muitos aspectos estrutural.16 Ela permite destacar, como visto acima com precisão, o sujeito como casa vazia - encruzilhada dos sentidos, sem ser, ela própria, um sentido.17 O Lobo não é um sentido histórico nem patológico para o real de Pankejeff, mas um nome de sujeito, pura abertura aos sentidos de uma vida que não é em si tomada em um sentido específico. A cada passagem por este ponto em uma análise, as versões que para ele convergem interagem, se recombinam, levando a uma redistribuição das cartas de uma história. Pode-se, assim compor um novo cenário, uma nova narrativa egóica com mudanças subjetivas efetivas.
Esta concepção de tratamento, solidária da noção de sujeito tal como o estruturalismo o concebe, não pode, porém, nos bastar. Delimita uma terapia por demais pragmático-relativista. Não nos fornece orientação quanto ao destino do tratamento ou a sua conclusão. Afinal, caso nos mantenhamos no plano das versões, qual seria mais apropriada que outra? A única saída, já que o realismo ingênuo foi descartado, parece estar em uma superação do plano das versões pela realização da essência do sujeito como pura abertura à existência. Nesta "assunção da castração", ou "realização da divisão subjetiva" como às vezes nos referimos a semelhante ilusão em nosso meio, reside o melhor e o pior de uma concepção de tratamento limitada à noção de sujeito como localização ôntica de um dasein. Suas veias heideggerianas situam o analista como um asceta do autêntico, artífice supremo de sua própria divisão, algo bem distante do que o convívio com os analistas demonstra.
Cabe, então, a pergunta: se o sujeito é essa variável presente nas lacunas de cada uma de suas versões, o que condicionaria o leque de versões? Se o sujeito é uma variável, qual a constante? J. A. Miller responde: o objeto.
Para tanto, localiza a decisão freudiana fundamental, que institui a regra fundamental da associação livre, como a autorização de um falar sem referência. Tudo é narrado e nada é questionado em seu valor de verdade com relação à sua adequação aos objetos do mundo. Uma análise inicia-se quando suspende-se o critério clássico de verdade que supunha a adequação entre um dito e seu referente. Esta suspensão da verificação do referente, não elimina, contudo, a dimensão real da referência. Até mesmo a amplifica. Ocorre apenas que o referente passa a ser essencialmente suposto. Ele anuncia-se como aquilo que em uma história dá vida ao homem e lastro a suas narrativas - não mais casa vazia, mas indefinível e estranha presença.
É exatamente isto que, segundo Miller, será conceituado por Lacan como o objeto "a" e localizado por Freud com a construção da cena primitiva.18 Se há, portanto, uma questão que o Homem dos lobos permite localizar com precisão é a da articulação entre sujeito e objeto. De um lado temos o “lobo” como nome de sujeito, de outro, o objeto, ou seja, o sujeito tomado como objeto, na cena primordial, puro olhar assistindo ao coito parental.
Talvez possamos, com base nessa dicotomia evidentemente esquemática, propor uma partilha provisória: na neurose a função-sujeito prima. Na psicose, por outro lado, é como objeto da linguagem, como presa da fala do Outro, que encontramos o falasser.
Na neurose, algo intervém entre a linguagem e o falante. Entre o que é ouvido e o que será escutado.19 A esquize entre ouvido e escuta, ou ainda entre olhar e visão como destaca Lacan em seu Seminário 11, se institui na neurose com a presença, entre estes dois pólos, de um vazio enigmático, lugar do sujeito, ou da famosa caixa preta dos behavioristas. Este ponto de interposição é mantido em seu lugar pela crença em algo mais, em um sentido porvir, a ser obtido junto ao Pai.
Na psicose o que se ouve pode ir diretamente ao ouvido. É a alucinação, definida por Lacan como a apresentação do significante no real, insuportável presença da linguagem fora do sentido, tomando o corpo sem a intermediação da significação fálica (que nada mais é do que a significação de que há um sentido maior para as coisas). Serguei fornece a Lacan o exemplo paradigmático da alucinação do dedo cortado como mostração real da fala “vão te cortar o membro” de sua nania. Lacan nos permite vislumbrar, para além da montagem imaginária que acompanha a alucinação, sua força real de presença, do qual o delírio virá constituir um sentido, intermediando o encontro da linguagem com o vivente.
Até certo momento do lacanismo, o elemento interposto era, por excelência, a significação fálica, solidária do Nome do Pai: ou bem a significação fálica e sua compensação (habitualmente conhecida como "metáfora delirante") ou bem a catástrofe subjetiva. Fomos levados a reconhecer, porém, toda uma série de casos em que esta intermediação parece nada dever ao Nome do Pai, sem deixar, no entanto de se fazer presente, por vezes de modo bastante eficaz. O Campo Freudiano, como comunidade analítica de trabalho, definiu, sob a batuta de J. A. Miller, para estes casos, a noção de psicose corriqueira ou psicose ordinária.20
Não se trata de um diagnóstico a mais para o real. Isso nos levaria de volta ao realismo ingênuo, agora redobrado em astrologia que em apenas quatro tipos (neurose, psicose, perversão e “inclassificável”) definiria todo o leque do real humano. A clínica dos inclassificáveis não é a clínica dos bordeline. Ela é, sobretudo, um modo de colocar a necessidade de remanejar nossos conceitos para trabalhar com o Outro de nosso tempos.

Resto e rede
Nossa epistemologia será sempre uma epistemologia clínica. Só nos permite lançar algumas idéias provisórias em direção ao Outro, à cultura, sobre a própria cultura, parceiro fundamental dos sujeitos que ouvimos. Em vez de falarmos de novos sintomas ou novo real, estaremos mais em sintonia com nossa clínica se buscarmos, como fazem J. A. Miller desde 1996 (com E. Laurent), delimitar um novo Outro em lugar de um novo real. Afinal, a psicanálise não encontra o real sob o signo do novo, mas sim do antigo, do filogenético, nos termos de Freud, da repetição, do que retorna sempre ao mesmo lugar, nos termos de Lacan.21
Neste sentido, os casos de psicose ordinária, tal como poderíamos diagnosticar Pankejeff, ao exibir diferentes modos de lida com o real distintos da premissa universal do falo, nos fornecem a possibilidade de interrogar o estatuto do Outro contemporâneo. Essencialmente do papel, nele, do Nome do Pai. Tomar o Homem dos lobos a partir do conceito de psicose ordinária nos permite, em uma certa medida, lidar com ele tal como Freud o fez, como ferramenta para interrogar os limites do campo subjetivo e, ao mesmo tempo, do campo psicanalítico.
O sucesso da psicose ordinária em nossos dias é, em muitos aspectos, o fracasso da psicose extraordinária - da paranóia com seu cortejo de delírios megalomaníacos, místicos etc. Ele narra a dificuldade atual de se construir grandes sistemas delirantes espelhando-se no edifício paterno, uma vez que o Pai já não mais sustenta as poderosas instituições verticais de outrora. O sucesso da psicose ordinária, traduz também, dessa forma, o fracasso da neurose clássica, fundada na crença na exceção paterna como modo de conciliação ente desejo e gozo, assim como o surgimento de uma “neurose ordinária”, mais afeita a depressões e pânicos e menos a um trabalho subjetivo ou dimensão fantasística evidentes.
Tanto neurose quanto psicose fracassam quando são incapazes de interpor a distância eficaz entre o ouvido e o escutado. No primeiro caso, ela se traduz por um vazio enigmático, cujo segredo é detido pelo Pai. No segundo, uma invenção singular será um trabalho incessantemente exigido ao sujeito. Para ambos, Lacan destacará o termo sinthoma designando de modo original essa invenção. O sinthoma poderá ser encontrado por extração, como no caso da neurose, ou por construção, bricolagem, como no caso da psicose. Em ambos, ele é a marca de uma articulação contingente entre gozo e significante e inscreve, nessa suprema, contingência a generalização da impossibilidade da relação sexual.22
O Nome do Pai, agora apenas um caso particular de sinthoma, pode então, como invenção em escala industrial (pois é apenas a fé compartilhada de que alguém em algum lugar sabe o sentido da vida), ser colocado em contraposição às soluções artesanais da psicose. A psicose ordinária referenda, assim, a tese, de J. A. Miller, da foraclusão generalizada (na verdade tese do “sinthoma generalizado”, como P. G. Gueguen prefere denominá-la). Ela destaca o quanto estamos em tempos em que os sintomas ocupam o lugar dos sujeitos. A promoção dos grupos monossintomáticos de ajuda mútua é sinal desta onipresença do sintoma como suporte de uma identificação especialmente alienante em que se troca um gozo mortífero por um nome de gozo especialmente alienante (Alcoólico anônimo, por exemplo).
Neste contexto, o analista talvez possa trabalhar em direção ao sinthoma, como ponto de conexão paradoxal com o Outro. Trata-se de uma direção de tratamento que responde ao uso atual do sintoma - descrito acima, como grude grupal - com a promoção de seu uso singular. Em lugar da grupalização sintomática, a singularização pelo sintoma.
Retoma-se assim o valor do “saber-fazer”, destacado do último ensino de Lacan por J. A. Miller, como possibilidade original de conexão à rede. Iríamos do sintoma como nome de gozo e sede de uma identificação alienada ao sintoma como marca de um gozo singular e fora do sentido que, no entanto, se articula em significantes.
É preciso que estejamos nos lugares em que esta aposta pode ser verificada, tanto em consultórios quanto em hospitais e alhures. Nestes verdadeiros campos de testes para o fazer psicanalítico de hoje Serguei Pankejeff pode manter seu lugar de professor de desidentificação, precursor dos extraídos do sistema de hoje, rebeldes aos programas e pesquisas controladas, resistentes à rede de cuidados e alheios à internet. Esperemos que o psicanalista continue com eles aprendendo a produzir um sintoma singular e a fazê-lo valer no Outro.

1Esse trabalho foi publicado no CD do Segundo Encontro Americano do Campo freudiano, Os resultados terapêuticos da psicanálise. Novas formas da transferência, (Buenos Aires, agosto de 2005) para contemplar um dos temas do encontro intitulado: Os fundamentos epistemológicos.
2Membro da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP.
3Miller, J.-A. (2003). Prólogo.In Outros Escritos, (p. 11-13 ). Rio de Janeiro: JZE. e Millor, F. (1998). A bíblia do caos, (p. 98). Porto Alegre: LPM.
4Freud, S. (1986). Estudios sobre la histeria. In Obras completas, vol II, (p.22). Buenos Aires: Amorrortu.
5Gardiner, M. (org.) (1981). L’homme aux loups par ses psychanalystes et par lui-même. Paris: Gallimard.
6Ginzburg, C.(1991). Chaves do mistério: Morelli, Freud e Scherlock Holmes. In O signo de três, (p. 210). São Paulo: Perspectiva. apud Couto, M. E. (2005). Em torno do objeto da psicanálise. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio. Dissertação da qual retiro o essencial do que desenvolvo nessa passagem.
7Por exemplo Webster, R. (1995). “Anna O” e “Mais erros médicos”. In Porque Freud errou (pp. 105-132). Rio de Janeiro: Record.
8Miller J.-A. & Milner J. C. (2004). Voulez-vous être évalué? Paris: Grasset.
Cf. A matemática do amor, veiculada em 31/01/2004 na revista ÉPOCA (http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT901111-1653,00.html). Agradeço a Tatiane Grova pelo achado.
10Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico (2a. ed.) (p. 184). São Paulo: Forense universitária. É o que conduz Lacan a dizer “a ação da fórmula que em todos os pontos submete o elemento massa à atração dos outros” referindo-se às “orbes” no lugar dos corpos [Lacan, J. (2003). Outros Escritos (p. 420, 429). Rio de Janeiro: JZE.
11Lacan, J. (2003). Nota Italiana.In Outros Escritos (pp. 311-315). Rio de Janeiro: Zahar. (cf. também: “Ainda que, este [o saber], não seja o analista que tem de alojá-lo, mas sim o cientista.”, p. 312).
12Miller, J.-A. (1987). Elementos de epistemologia ( p. 44). A própria idéia de medir supõe um protocolo para que se crie a medição. “Com efeito, se uma experiência científica [...] constitui uma pergunta formulada à natureza, é claro que a atividade cujo resultado é a formulação dessa pergunta é função da elaboração da linguagem na qual essa atividade se exprime.” (Koyré, 1953/1991, p. 272). Sobre a matemática e Galileu cf. Koyré, 1991, p. 168-169 e p. 74.
13“O que nos faz dizer imediatamente [...] que a alquimia, afinal, não é uma ciência? Alguma coisa, a meus olhos, é decisiva, que a pureza da alma do operador era, como tal, e de modo determinado, um elemento essencial no negócio.” (Lacan, J (1985).O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (p. 16). Rio de Janeiro: JZE.
14Lacan, J. (2003). Outros Escritos (p. 436). Rio de Janeiro: Zahar.
15Reproduzido de Couto, M. E. op. cit.
16Cf. p. ex. Lacan, J. (2003). Radiofonia, Outros Escritos (p. 429).Op. cit.
17Cf. Deleuze, G.(1979). A quoi recconnaît-on le structuralisme? In Chatelêt, F. Histoire de la philosophie (vol IV, p. 328). Paris: Marabout.
18Miller, J.-A. Cause et consentement. A orientação lacaniana, 1986-1987, lição de 15-05-87.Texto não publicado.
19Miller, J.-A. Pièces detachées, A orientação lacaniana, 2004-2005, lição de 10-11-04 Texto não publicado.
20Gueguen, P. G. (2002). La homestasie symptomatique dans les psychoses, La lettre mensuelle, 211, Paris: ECF. e La psychose ordinaire, (1999).Paris: Agalma/Seuil.
21Miller, J.-A. (1998). O sintoma e o cometa.In O sintoma charlatão. Rio de Janeiro: JZE.
22Miller, J.-A. (2000). Teoria do parceiro. In Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa.