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Chomsky
com Joyce1
Éric Laurent2
ericlaurent@lacanian.net
Resumo: O texto aborda
a concepção de Chomsky da linguagem-órgão,
à luz das elaborações de Lacan sobre Joyce e o sinthoma
no Seminário 23. Demonstra que, para Lacan, a linguagem será
definida como uma espécie de órgão-sinthoma que vem
fazer obstáculo a toda concepção totalizante da imagem,
em oposição às terapias cognitivas que se baseiam
na identificação com uma imagem ideal.
Palavras-chave: sinthoma; linguagem-órgão;
terapias cognitivas.
Abstract: The author presents
Chomsky’s conception of the language-organ at the light of Lacan’s
elaborations about Joyce and the sinthome in Seminar XXIII. He
demonstrates that, for Lacan, language will be defined as a kind of sinthome-organ
that becomes an obstacle to any concept of global image, in opposition
to the cognitive therapies, which are based on the identification of an
ideal image.
Key words: sinthome; organ-language; cognitive
therapies.
Quando vemos o admirável Seminário na forma que ele atingiu
agora com seus soberbos e plácidos nós, as duas conferências
de Jacques Lacan – acompanhadas da surpreendente nota de leitura
de Jacques Aubert – e enfim o “Notice de fil em aiguille”
de J.-A. Miller, não podemos imaginar o terror com que assistimos
ao seminário de Lacan.
A partir de novembro de 1975, podíamos apenas avaliar a insondável
ignorância que era a nossa. Havia inicialmente Joyce, que acreditávamos
ter lido quando mais jovens. Sabíamos que se tratava de uma primeira
tentativa de leitura, mas pensávamos ter, desse texto, algum domínio.
Brutalmente nos vimos expulsos. Isso não havia absolutamente acontecido,
era preciso refazer tudo. Azáfama para adquirir a edição
da Viking Press, que não era fácil de encontrar. Era preciso
ler a biografia de referência de Richard Ellmann e muitas outras
coisas. A primeira impressão é de que era coisa demais.
E os nós! Os desenhos! Como aprender a se aproximar deles?3
Entramos em grupos, em cartéis. O cego conduzindo o paralítico,
consumíamos alguns livros disponíveis sobre os nós
– eles eram pouco numerosos na época. Vivíamos em
uma espécie de burrice e cada sessão do Seminário
produzia o sentimento de não haver meios de entrar no Seminário
propriamente dito.
Bruscamente, em dezembro de 1975, uma luz se faz. Lacan retorna dos Estados
Unidos e fala de Chomsky. Conhecíamos Chomsky. Pudemos aproveitar
os cursos de Jean-Claude Milner, que era e permaneceu por muito tempo
o chomskyano francês de referência. Pensávamos então
encontrar talvez ali alguma coisa, um ponto de apoio. Em seguida, em fevereiro
de 1976, uma lição do Seminário começa com
a seguinte declaração: “Louco... isso não é
um privilégio... na maioria, o simbólico, o imaginário
e o real estão embaralhados” .
Começamos a compreender. Para alguns dos ouvintes, uma porta se
abria: assistíamos ao avesso da “Questão preliminar
a todo tratamento possível da psicose”. O que havia sido
estabelecido, acreditávamos, como uma distinção radical
entre a loucura decorrente da forclusão e a que dela não
decorria, foi deslocado. Entre a neurose e a psicose, até então
separadas como dois continentes distintos, se descobria uma passagem pela
generalização. Não compreendíamos tudo, mas
para nós se descortinava um mundo totalmente diferente, apenas
entrevisto. Da mesma forma, os nós podiam aparecer como um instrumento
teórico muito abstrato, distante e ao mesmo tempo como um instrumento
clínico e pragmático. As numerosas indicações
sobre a correção do “lapso do nó” pelo
sintoma iam nesse sentido.
Entre essas indicações, a discussão que segue a conferência
sobre o catolicismo de Joyce que você, Jacques Aubert, pronunciou
em março de 1976, ocupa um lugar importante.
Vocês mesmos, Jacques-Alain Miller e Philippe Sollers, intervêm
e como resposta Lacan dá indicações clínicas
muito inovadoras. É o instante de ver. A fabricação
do eu, do ego de Joyce retoma o que figurava na “Questão
preliminar” como “prótese imaginária”.
A partir do sintoma, ela permite retomar a escrita do “lapso do
nó’.
O que vocês trouxeram esta noite desenvolve a questão da
fabricação do ego, e permite compreender melhor
a indicação de Lacan sobre o “imaginário duplicado”
de Joyce.
A indicação clínica dada por essa conferência
é na época crucial. As indicações do Seminário
sobre a duplicação do simbólico e do sintoma estavam
abertas para mais leituras. A indicação de um imaginário
“duplicado” produzindo um imaginário de segurança
era uma tradução pragmática disso. A partir do instante
de ver se abriu um longo tempo para compreender no qual, trinta anos após,
ainda nos encontramos. Mas foi evidentemente ali que os olhos se abriram.
Em novembro de 1976 começava a Seção Clínica.
A aventura da Seção Clínica foi o tempo para compreender
as indicações que procediam desse ponto, desse avesso da
“Questão preliminar”.
Clínica incandescente
Essa investigação clínica
permitiu a Jacques-Alain Miller delimitar com precisão a primeira
e a segunda clínica de Lacan. A que está centrada no Nome-do-Pai
e suas modalidades, e a que passa não somente pela pluralização,
mas pelo fato da própria língua se encarregar do gozo. Os
nomes comuns da língua dele se encarregam. O que vocês trouxeram
esta noite especifica nessa direção perspectivas clínicas
que devem ser utilizadas para mostrar a passagem do nome próprio
ao nome comum pela pluralização dos nomes próprios.
Retomo sua formulação sobre o uso neológico de Nego:
“Chamo a atenção de vocês para o fato de que
a passagem de nego com minúscula a Nego com maiúscula
é muito claramente não somente a passagem do espaço
da letra ao espaço do nome, não somente ao espaço
do nome próprio, mas especificamente a um espaço que é
o do ato de nomeação. Esse ato que aqui, associado
à escrita, ao mesmo tempo duplica e desloca de maneira decisiva
o valor e o peso do ego, que no fundo é um pronome, ou
seja, aquilo que, por definição, vem no lugar do nome. Há
“pro-nomeação duplicada”4.
Uma duplicação é introduzida entre ego e
seu novo nome sintomático Nego. Essa duplicação
é a matriz da pluralização dos novos nomes que poderão
ser introduzidos na língua comum, a língua do mestre. “O
fato de existirem dois nomes que sejam próprios ao sujeito foi
evidentemente uma invenção difundida ao longo da história.
O fato de Joyce também se chamar James só tem continuidade
no uso do sobrenome, James Joyce sobrenomeado Dedalus. O fato de podermos
introduzir-lhe assim uma porção de nomes leva apenas a uma
coisa, a inserir o nome próprio no que lhe é da ordem do
nome comum”5.
Nego é.
Jacques Aubert: O primeiro neologismo de
Joyce...
Eric Laurent: Podemos abordar aquilo que a clínica psiquiátrica
chamou de neologismo como um uso particular dos nomes e fazer do neologismo
uma palavra da língua sintomática que o psicótico
inventa para si. A substituição de ego por Nego
faz aparecer uma negação no lugar do eu. Mais precisamente,
ela faz furo. Esse modo de abertura da linguagem, essa introdução
de um lugar vazio é distinta da maneira com que Aristóteles
introduziu a função do lugar em seus argumentos lógicos,
introduzindo letras. É a partir do silogismo aristotélico
que se introduz na língua filosófica a possibilidade do
lugar. Podemos então deduzir que, se todo homem é mortal
e Sócrates é um homem, então Sócrates é
mortal. Sócrates pode ser substituído por uma letra e faltar
em seu lugar. Jacques Aubert nos mostra como a significação
comum da língua pode ser encontrada de uma outra maneira. Ela pode
mesmo se tornar inteiramente feita de furos, de palavras novas ou de novos
usos das palavras comuns. É possível dizer que, no final
de Finnegans Wake, cada palavra é uma letra que está
presa em tramas extremamente singularizadas. Os joyceanos devem mobilizar
todo seu saber para reconstruí-las e partilhá-las conosco.
Por isso não deixamos de ler as suas edições de Joyce.
O corpo sem furos e os órgãos
modulares
Antes de voltar a esse ponto, gostaria
inicialmente de fazer um desvio pelo que Lacan traz em dezembro de 1975,
quando diz, a respeito de Chomsky: “Ao ocupar-se da lingüística,
eu poderia esperar ver nele uma ponta de apreensão com o que mostro
concernente ao simbólico. Isto é, que ele guarda alguma
coisa do furo... É impossível, por exemplo, não qualificar
de falso furo todo o conjunto constituído pelo sintoma e pelo simbólico.
Mas é como agarrado à linguagem que o sintoma subsiste...
Que Chomsky assimile ao real alguma coisa que ao meu ver é da ordem
do sintoma, ou seja, que confunda o sintoma e o real, é precisamente
o que me deixou boquiaberto”6.
Estamos em 1975. O programa chomskyano estava ainda vigente. Chomsky ainda
pensava conseguir sustentar seu programa ao custo de alguns remanejamentos.
Confundir sintoma e real era na época, para Chomsky, declarar que
a linguagem é um órgão. É a maneira com que
o próprio Chomsky veio reparar o fracasso do programa da inteligência
artificial. Esse programa cognitivo, escolhamos fazê-lo começar
arbitrariamente pelo teorema de Gödel. Em 1932, Gödel responde,
cinqüenta anos depois, a um problema que Hilbert havia proposto na
matemática. O problema colocado por Hilbert é o seguinte:
é possível encontrar para toda proposição
matemática uma maneira de decidir se ela é verdadeira ou
falsa? – o chamado problema da decisão. Cinqüenta anos
depois, Gödel demonstra que não.
Basta lidar com um sistema de complexidade não muito grande, como
a aritmética, para se ter proposições tais que não
se possa decidir se elas são verdadeiras ou falsas. Para isso,
ele inventa um método que consiste não somente em tomar
os enunciados da aritmética como tais, a numeração,
mas em reduzir todo enunciado produzido dentro do sistema sob a forma
de uma seqüência de números. Mais tarde, ele faz da
linguagem aritmética um cálculo.
Isto é o que Alan Turing desenvolve quatro anos mais tarde, em
1936. Ele publica o primeiro artigo que ajusta uma máquina lógica
universal que será atrelada ao seu nome. Ela permite definir qualquer
função matemática a partir de sua calculabilidade
por essa máquina. Isso é feito de comum acordo com o lógico
Church e suas funções recursivas.
Daí nasceu uma corrente que pretendeu reduzir toda linguagem, até
as línguas naturais, a um modo de cálculo. Deveria ser possível
mostrar como falar é uma forma de cálculo e como a língua
provém dos sistemas de cálculo em geral. Tratava-se do programa
de pesquisa da “Inteligência artificial”. Aliás,
Albert Simon, que associou seu nome a este programa fez um livro com o
belo título de “Science of the artificial”.
O artificial, o artefato é para ele reduzido a um cálculo
do qual se deve fazer uma ciência. Os resultados obtidos durante
a guerra sobre o deciframento de mensagens criptografadas encorajou essa
perspectiva. Mas a seguir se percebeu que era impossível estabelecer
regularidades na língua tais que fosse possível reduzir
o conjunto das bizarrices das línguas naturais a um cálculo.
O limite do programa começa a aparecer nos anos cinqüenta.
Chomsky propõe então um programa que parte de um outro ponto
de vista. Ele pretende elaborar um modelo transformacional das capacidades
cognitivas da mente, concebido como tratamento de uma informação
e não como um cálculo lógico-matemático. Esse
tratamento da informação decorre em parte somente da lógico-matemática,
das regras de transformação da sintaxe, e deve ser também
articulado às leis do vivente. Trata-se de um tratamento da informação
vindo do vivente ou do vivente tratado como uma informação.
Chomsky reescreve, de forma genial, as gramáticas estruturais existentes
das línguas universais. Ele faz delas casos particulares de regras
de transformação rigorosas, decorrentes da lógico-matemática.
Tenta assim obter uma gramática universal, fundamentada nessas
regras. Inicialmente, ele retoma um número de acontecimentos consideráveis
na vertente dessa gramática ou língua universal do pensamento.
Isso o conduz, com seu aluno Jerry Fodor, a precisar o que ele entende
por “módulos” de tratamento da “linguagem do
pensamento”. A evolução entre a concepção
da linguagem-cálculo, tratada globalmente, e o módulo que
define a tarefa específica de uma parte da mente, é particularmente
clara em Fodor. Após haver escrito, em 1975, “The language
of thought”, ele publica, em 1983, “A modularidade da mente”7.
A publicação de Fodor é decorrente dos trabalhos
de um psicólogo inglês, David Marr , que faz uma publicação
sobre a visão em 1980. Ele se propõe três objetivos
distintos: “é preciso determinar a tarefa realizada pelo
sistema visual, ou seja, a transformação informacional que
ele efetua, o algoritmo que ele aplica para fazê-lo, e enfim a maneira
com que esse algoritmo é materialmente executado no tecido cerebral”
. Isso conduz ao que Jean-Claude Milner chamou de teoria de Chomsky sofisticada.
Ele enfatiza mais precisamente a nova definição do órgão
proposta por essa nova abordagem:
|
“Uma boa ilustração
da teoria sofisticada se encontra em D. Marr (Vision, San
Francisco, 1980): segundo a concepção tradicional,
admitida tanto no senso comum quanto na filosofia ou na ciência,
o órgão da visão não passa do olho e
reciprocamente a melhor definição do olho é
a de ser o órgão da visão.
Ora, na teoria de Marr, o órgão não é
o olho, mas o conjunto de dispositivos anatômicos solidários
que permitem fornecer uma resposta à questão “o
que está aonde?”. Esses dispositivos são numerosos
e heterogêneos; cada um deles contribui de maneira modular
para articular um dos elementos da resposta pertinente. Em outras
palavras, a abordagem somática alcança apenas uma
multiplicidade dispersa; a unidade definidora do órgão
só pode ser obtida em termos funcionais, a questão
“o que está aonde?” – explicitamente retomada
de Aristóteles – constituindo apenas uma maneira indireta
de definir a função visual. É somente em relação
a essa função que se pode especificar o órgão
visual como tal. Não há outra unidade que não
aquela. Podemos considerar que a palavra visão designa
de maneira ambígua tanto o órgão, representado
por um O – e nesse sentido a visão é, estritamente,
um órgão – quanto a função: F.
A partir daí, a unidade material que parece constituir o
olho se reduz a uma pura aparência: ela poderia faltar, sem
que a unidade verdadeira do órgão visual seja colocada
em questão”10. |
O novo paradigma da cognição
define assim uma pluralização dos módulos que são
também novos órgãos alojados em um corpo no qual
eles proliferam. Em 1975, quando Lacan retorna dos Estados-Unidos, Chomsky
pensa ainda estar lidando com um órgão. A partir de 1980,
há uma multiplicação dos órgãos, uma
fusão. Temos então um corpo coberto de órgãos,
coberto de módulos. Esses órgãos funcionam de um
modo quase autístico. Escrevendo recentemente na New York Review
of Books, J. Fodor declara: “o estado atual das coisas é
a modularidade enlouquecida”.
Jean-Claude Milner considera que, apesar desse exagero, o fato de apreender
a linguagem não mais a partir de uma lei de tipo sintáxico
universal, mas a partir de módulos cognitivos correspondentes a
questões precisas do tipo saber o que está aonde,
permite definir saberes precisos.
Esse paradigma permite estabelecer como modelo certos fenômenos
da língua que o sistema transformacional gerativo não chegava
a abordar e especialmente alguma coisa que era para ele muito importante
há bastante tempo, as questões da anáfora. Eis onde
reencontramos Jacques Aubert e a anáfora particular que ele nos
apresentou.
A pronominalização é uma maneira do sujeito fazer
furo na língua em vários lugares graças aos pronomes,
aos nomes próprios, ao seu movimento, à maneira como eles
vêm furar o enunciado.Trata-se da maneira como J.-C. Milner levou
a sério as indicações de Lacan em Le Sinthome.
Tratava-se antes de não reduzir a linguagem a um órgão,
mas de observar como são feitos os furos na língua. J.-C.
Milner, a esse respeito, desenvolveu reflexões de uma precisão,
de uma qualidade à qual posso apenas remeter11.
As novas definições do paradigma cognitivo ou da aventura
cognitiva deixam, aliás, abertas essas questões. A grande
vantagem de Chomsky – que aparece agora em nossos debates e combates
com as terapias cognitivo-comportamentais – é que a idéia
da linguagem-órgão arruinava qualquer idéia behaviorista.
Arruinava a possibilidade da palavra como aprendizagem de um corpo que
teria sido privado da linguagem. O behaviorismo tendia a considerar que
o sujeito só aprendia a falar por imitação assim
como por reforço e aversão. O sujeito do behaviorismo tinha
a ver com um corpo mudo que era em seguida condicionado. A idéia
da linguagem-órgão, da linguagem ao mesmo tempo órgão
e algoritmo, digamos, constitui um obstáculo radical a isso. Esse
órgão é do vivente já tomado em uma linguagem
que já está ali.
O saco e seus órgãos
destacáveis
O Seminário de Lacan Le Sinthome
é a vontade de articular o vivente e a linguagem a partir do furo.
Há de um lado a via de Chomsky, que vai trazer esse pululamento
de órgãos – e do outro lado a de Lacan. Lacan vai
articular o corpo sem órgãos, o corpo conjunto vazio, o
corpo saco – e do outro lado, a consistência das cordas da
linguagem que o atravessam em torno de um furo.
Ele vai propor “uma lógica de saco e de cordas”, como
enfatiza J.-A. Miller12.
As cordas estão ali para amarrar o saco, para articulá-lo
ao furo. Mais do que precisar a consistência do nó sob a
forma do círculo, ele a apresenta sob a forma da reta infinita
para evitar qualquer imaginário do círculo que fecha.
Particularmente, diz ele, o círculo faz pensar em todas as coisas
parasitas, especialmente a delimitação dos centros nervosos.
Os centros nervosos, as localizações neuronais sobre o córtex,
consistem sempre em tentar – inclusive agora com instrumentos cada
vez mais modernos, as tomografias ou a ressonância magnética
– chegar à esperança de reduzir a significação
a um círculo. De fato, o que se descobre, no funcionamento sempre
mais avançado do estudo do sistema nervoso, são interconexões
que não cessam. Cada região está em relação
com muitas outras regiões. Os órgãos são definidos
de preferência a partir de considerações modulares.
Temos então de um lado, a polaridade Joyce-Lacan, e do outro, a
polaridade Chomsky. Para Lacan, o corpo não está atrelado
a esses órgãos estranhos, modularizados – mas atrelado
ao sintoma. É o que tem consistência, embora esteja articulado
ao furo do simbólico. A consistência, Lacan a faz valer a
partir da corda, e acrescenta que o que lhe aparece absolutamente necessário
para definir a própria idéia de linguagem, é que
a linguagem é o que esvazia o real, ela “come o real”.
“Para mim, efetivamente, na falta de admitir esta verdade princeps
de que a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real,
não é simplesmente difícil, mas impossível
considerar seu manejo. O método de observação não
poderia partir da linguagem sem que esta aparecesse fazendo furo no que
é possível situar como real. É dessa função
do furo que a linguagem opera sua captura do real”13.
A relação do corpo com os órgãos é
qualificada por Lacan de destacável. Ele toma o exemplo
de um antropólogo que enfatizou que uma bola não é
o prolongamento do braço, mas algo que se destaca do braço,
a projeção do braço. Para Lacan os órgãos
são detectados: “O falasser adora seu corpo, porque ele acredita
que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é
sua única consistência, consistência mental, certamente,
pois seu corpo foge a todo instante”14.
Esse é um ponto de vista bastante distinto daquele de Freud em
“O mal-estar da civilização”, que propõe
um corpo cujos órgãos são seu prolongamento. “Graças
a todos os seus instrumentos, o homem aperfeiçoa seus órgãos
– tanto motores quanto sensoriais – ou expande consideravelmente
os limites do seu poder. As máquinas a motor o munem de forças
gigantescas tão fáceis de dirigir de acordo com sua vontade
quanto as dos seus músculos; graças ao navio e ao avião,
nem a água nem o ar podem entravar seus deslocamentos. Com seus
óculos, ele corrige os defeitos das lentes dos seus olhos; o telescópio
lhe permite ver a enormes distâncias, e o microscópio ultrapassar
os limites estritos determinados para a sua visão pela estrutura
de sua retina. Com a câmera fotográfica, ele se conferiu
um instrumento que fixa as aparências fugitivas, o disco do gramofone
lhe presta o mesmo serviço quanto às impressões sonoras
efêmeras; e esses dois aparelhos não passam, no fundo, de
materializações da faculdade que lhe foi dada de se lembrar,
em outras palavras, de sua memória. Com a ajuda do telefone ele
ouve à distância, distâncias que os próprios
contos respeitariam como intransponíveis. Originalmente, a escrita
era a linguagem do ausente, a casa o substituto do corpo materno, essa
primeira morada cuja nostalgia persiste provavelmente para sempre, onde
se estava em segurança e se sentia tão bem”15.
O real é também apresentado com o mesmo sentido do que Lacan
dizia em 1947 à revista italiana Panorama16:
o real substituiu a natureza, o real avança. Esse real é
feito com o discurso científico, ele é constituído
por objetos que nada têm de natural, é constituído
por maneiras de fazer, por procedimentos. O real avança, como Nietzsche
dizia que o deserto avança. Trata-se de um fora-de-sentido radical
ao qual a linguagem permite nos agarrarmos, produzindo jouis sens.
A questão não é de dar um sentido a esse real, a
questão do sujeito moderno não é sua “demanda
de sentido”, como dizia a senhora Clinton.
Operar com a letra
Não se trata de exagerar nessa via,
mas de dar uma chance para que, na linguagem, a letra possa operar. Que
ela possa fazer os furos do equívoco, que chegue a quebrar esses
significantes universalizados que caem sobre nós sem que tudo isso
tenha a menor relação conosco.
Esses objetos nos quais nosso desejo está encerrado, que passam
na condição de “causa de”, ainda é preciso
apropriar-se deles nas entrelinhas. A linguagem é, para Lacan,
o que vai ser definido como uma espécie de órgão,
mas de órgão-sintoma. O objeto a, como a laminazinha,
é um órgão. Como órgão, recobre o corpo
e tapa todos os orifícios. O corpo tapado pelo objeto a
é o verdadeiro corpo sem órgãos. Com a linguagem,
chega-se a fazer orifícios, a ter um orifício oral, anal,
escópico, invocante. Chega-se a fazer uma borda para cada um desses
orifícios.
Nas psicoses precoces, no autismo, é possível observar o
que é um órgão que não tem borda, além
das tentativas heróicas desses sujeitos para criar uma borda. O
objeto a poderia ser representado como uma bola de chicletes.
O objeto a é o que permite criar um espaço de respiração,
que não se dobra sobre a sua boca e que quando estoura não
se espedaça pelo corpo todo. É igual para todas as bordas
do corpo.
A lógica do saco e da corda de Lacan é uma lógica
articulada entre, de um lado, esse saco, que poderia se encontrar completamente
tapado pelo real, e do outro a corda, que permite atravessar e construir
essas bordas e esses orifícios. A verdadeira consistência
do corpo não é então a do saco, mas a da corda. Isso
supõe que o sujeito não construa sua identificação,
sua base no mundo a partir da sua enfatuação, do seu envelope
corporal, do narcisismo da imagem, mas que ele consiga se virar, na constituição
sintomática de circuitos pulsionais, com a deriva pulsional.
Fetichismo da imagem
Joyce é aquele que conseguiu criar
uma deriva pulsional. Ele desliza. Finnegans Wake é um
sonho em que o sonhador não está em nenhum lugar. Ele é
o próprio sonho. Somos confrontados com nomes da língua
que se tornam nomes próprios. São os nomes do próprio
sonhador. Finnegans é consubstancial e esses nomes próprios
se tornam os nomes comuns dessa língua idiossincrásica que
ainda nos resta para decifrar. Lacan diz: “nisso Joyce desliza,
desliza, ele desliza para Jung, para o inconsciente coletivo...”.
A psicanálise, por sua vez, supõe guiá-lo pelas derivas
pulsionais nas quais alguma coisa do sonhador ainda é determinável.
O sonhador é então fixado a um lugar pelos traços
de gozo que animam todo o sonho.
Se isolarmos as duas polaridades, Joyce e Chomsky, nas relações
com a linguagem-órgão, devemos encontrar, ao final, nossa
própria linguagem-órgão, o sintoma, que vem fazer
obstáculo a toda concepção totalizante da imagem.
Ora, o funcionamento da civilização é feito precisamente
para favorecer em tudo a identificação à imagem totalizante:
a indústria da publicidade, o “fetichismo da mercadoria”,
expressão genial que Marx extraiu do choque que foi para ele a
visita à exposição universal de 1850.
A primeira vez que Marx viu em Londres, nos grandes pavilhões do
“Crystal palace”, a exposição universal onde
se alinhavam todos os produtos industriais, ele destacou esse fetichismo
da mercadoria. Hoje em dia estamos bem mais avançados nisso. Não
há uma loja na qual aquele que entra não seja tomado pelos
corpos ideais aos quais ele é instado a se identificar e que estão
cobertos de acessórios fantasmáticos que nos capturam ou
querem nos capturar. Como dizia Lacan a Panorama: “a sexomania
invasora não passa de um fenômeno publicitário”.
A cognição da terapia que se chamou cognitivo-comportamental
nada tem a ver com o programa cognitivo e tem tudo a ver com essa crença
de cada um em sua imagem. A cognição das TCC consiste –
desde o início da invenção dessas terapias entre
1955 e 1960 – em se identificar com uma imagem ideal. A terapia
cognitivo-comportamental da depressão, por Beck, psicanalista em
busca de uma eficácia rápida, consiste em persuadir o sujeito
de que ele tem um viés sistemático de julgamento negativo
a respeito dele mesmo.
É necessário refazer um relato de vida de tal forma permita
estabelecer alguma coisa de positivo. O viés positivo deve se opor
sistematicamente ao viés negativo. É o que se chama re-enquadrar
o pensamento. Trata-se de identificar o sujeito com uma imagem dele que
tenha êxito. Se o fizermos suficientemente – e a expressão
enquadrar é totalmente justa –, o sujeito será fixado
a uma outra imagem dele próprio. Propõe-se uma outra janela
e uma outra imagem. Eis a alavanca da terapia. Trata-se de fazer o sujeito
acreditar que ele acredita nessa imagem positiva dele.
A terapia da criança violenta por Bandura, na origem de um outro
estilo de TCC, consiste em propor a essas crianças modelos de calma.
É preciso separá-los dos modelos violentos e colocá-los
em outros meios. Bandura deduzia disso um projeto político mais
amplo. Desejava fazer desaparecer a violência da televisão
e do cinema. Quarenta anos depois, vemos o quanto isso é um fracasso.
O higienismo parece especialmente impotente nesses casos. A violência
invade tudo. Sua lógica oculta é o gozo dos danos sobre
a imagem ideal em todas as suas formas. Esta paixão é proporcional
ao fetichismo da imagem.
Science fiction
Esta crença do sujeito na alma,
tal como ela é definida em Le Sinthome, é o “inerradicável”
resíduo da imagem corporal. A alma nos leva ao seu modo. Temos
disso um excelente exemplo nessa abordagem terapêutica que consiste
em mergulhar o sujeito em jogos eletrônicos transformados em aprendizagem
cognitiva. Não há mais necessidade de terapeuta: a máquina
por si própria basta para sugestionar seu utilizador. Por um lado
o poder da imagem ideal prescinde de uma referência do outro e da
sua presença. Por outro lado o autismo do corpo é instrumentado
pela máquina.
O corpo-máquina
Um estudo recente, conduzido pelo NICE
(National Institute for Health and Clinical Excellence), equivalente
inglês do INSERM, testa explicitamente o uso maçivo de terapias
sem terapeutas. Ele avalia as CCBT ou Computerised Cognitive Behaviour
Therapy (em francês, TCCO), para o tratamento da angústia,
da depressão, das fobias, pânicos e outros TOC (transtornos
obsessivos compulsivos).
Citarei simplesmente duas recomendações do NICE para futuras
pesquisas: “é preciso fazer pesquisas para comparar as TCCO
com outras terapias que reduzem o tempo do terapeuta, principalmente a
biblioterapia. As pesquisas devem procurar explorar o uso da TCCO pela
Internet”. “Os estudos sobre as TCCO devem ser feitos em amostras
de controle randômicas e devem incluir a intenção
de analisar os dados para levar em conta os pacientes que saem do estudo.
As razões do abandono da amostra devem ser identificadas, pois
elas estão diretamente relacionadas às preferências
do paciente”17.
Jamais se deve esquecer de fato o quanto as estatísticas TCC deixam
de enfatizar a seleção que elas fazem dos sujeitos que as
adotam. Restam apenas nesses protocolos aqueles que os suportam. É
nisso que o legítimo universal dessas terapias encontra o particular.
Como diz Jean Cottraux: “A terapia comportamental está na
origem das melhoras substanciais e duráveis em 50 a 70% dos doentes
que participaram da totalidade das sessões previstas. Apareceram,
entretanto, limites. Segundo as estatísticas mais pessimistas,
25% dos pacientes que apresentam uma indicação de terapia
comportamental se recusam a fazê-la. Dos 75% restantes, 25% não
melhorará. Dos 50% que melhoraram, 20% recairá em um prazo
de três meses a três anos. Esses números incitam à
modéstia terapêutica e levam a buscar novas formas de tratamento
tanto biológicas quanto psicológicas”18.
Quem fala é um conhecedor da matéria e jamais devemos esquecer
o quanto essas terapias autoritárias desagradam uma parte daqueles
que a elas se submetem.
Elas fazem nascer um desejo de des-segregação. Esse desejo
é que nos permite manter aberta a via do sintoma, articulada em
torno da linguagem. Nela, habita o sujeito como resposta do real.
Tradução: Inês
Autran Dourado Barbosa.
Revisão da Tradução: Simone Oliveira Souto.
1Publicado originalmente em Lettre mensuelle,
nº 240, número especial, julho/agosto de 2005, Paris, École
de la Cause freudienne.
2Membro
de l’École da la Cause freudienne.
3Lacan,
J. (2005). Le Séminaire, Livre 23, Le sinthome (p. 87).
Paris: Seuil: “Louco, por que Joyce, afinal, não o teria
sido? Tanto mais que isso não é um privilégio, se
for verdade que, na maioria, o simbólico, o imaginário e
o real estão embaralhados a ponto de continuarem uns nos outros,
na ausência da operação que os distingue como na cadeia
do nó borromeano – do pretenso nó borromeano, eu diria,
pois o nó borromeano não é um nó, é
uma cadeia. Por que não apreender que cada um dos seus anéis
continua no outro de uma maneira estritamente não-distinta? Ao
mesmo tempo, não há outro privilégio além
daquele de ser louco”.
4Aubert,
J. intervenção no curso da Soirée de la Bibliothèque
da ECF de 11 de abril de 2005, cf. infra, p. 52.
5Lacan,
J., op. cit. (p. 89).
6Idem,
ibid. (p.39).
7Fodor,
J. (1983). The modularity of the mind, Cambridge, Mass. (USA):
MIT press, tr. fr.
8Marr,
D. (1980). Vision, San Francisco (USA): Freeman.
9Fodor,
J. (1983). The modularity of the mind, op. cit. (1986). A Gerschenfeld,
La modularité de l’esprit, Paris: Minuit.
10Andler,
D. (2002). Processus cognitifs. Andler D., Fagot-Largeault A., Saint-Sernin
B., Philosophie des sciences 1 (p. 306-307). Paris: Gallimard, Folio Essais.
11Milner, J.-C. (1989). Introduction
à une science du langage (p. 207). Paris: Seuil.
12Miller,
J.-A. Notice de fil en aiguille, Le Séminaire, Livro 23, Le
sinthome, ( p.214). op. cit.
13Lacan,
J. op.cit. (p. 31).
14Idem,
ibid. (p. 66).
15Freud,
S. (1971). Malaise dans la civililzation (pp. 38-39). PUF.
16Lacan,
J. (1974). “Entrevista” com a revista Panorama, registrada
por Emilio Granzotto. Republicada em fevereiro de 2004 no Magazine Littéraire,
428 com o título “Não é possível haver
crise da psicanálise”.
17As
referências se encontram no site do NICE: http://www.nice.org.uk
.
18Cottraux,
J. Les ennemis intérieurs, obsessions et compulsions.
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