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O
analista ligado1
Ram Mandil 2
rmandil.bhe@terra.com.br
Resumo: As novas formas
do amor e a incitação à exposição do
saber, próprias dos novos tempos, nos incita a repensar o estatuto
do inconsciente e as novas formas da transferência. Este trabalho
procura avaliar as conseqüências de um deslocamento para o
primeiro plano da noção de “saber fazer”, operada
por Lacan a partir do Seminário 20. Desde aí o
inconsciente e a transferência podem ser considerados como modos
de lidar com a não-relação. Uma distinção
entre o valor de uso e o valor de troca do saber, neste mesmo Seminário,
abre novas perspectivas nesta direção. As exigências
colocadas para a prática da psicanálise com os jovens, confluem,
nesse aspecto, com uma demanda implícita em seu discurso, da qual
podemos inferir a necessidade que nos posicionemos como analistas ligados.
Palavras-chave: inconsciente; transferência; “saber-fazer”.
Abstract: The new modalities of love and the urge to
an exposed knowledge, both typical in our present times, invite us to
reconsider the status of the unconscious and new forms of transference.
This paper aims at evaluating the consequences of replacing to an outstanding
position the notion of ‘know-how’ developed by Lacan in his
Seminar XX. Since then, the unconscious and the transference can be considered
as ways to deal with the no-relation. In the same Seminar, a
distinction between the value of knowledge usage and the value of knowledge
exchange opens new perspectives in the same trend. In that aspect, the
demands psychoanalysis faces in its practice among youngsters converge
to a demand implicit in its discourse. Thus, we can deduce there is an
urge we take the position of joined psychoanalysts.
Key words: Unconscious; transference; ‘know-how’.
No último debate entre os candidatos à presidência
dos EUA o debatedor pergunta a cada um dos oponentes se eles realmente
consideram a homossexualidade uma “escolha sexual”. Mais adiante
o mesmo debatedor quer saber de cada um sobre o papel desempenhado pela
mulher em suas vidas e sobre o que eles pensam a respeito das experiências
com as células-tronco.
Se havia alguma desconfiança sobre o fato de estarmos vivendo novos
tempos, estas perguntas não deixam dúvidas, ao revelar o
embaraço do discurso do mestre diante das novas questões
que emanam da ciência e de suas incidências sobre o sexual.
Não podemos esquecer que a prática da psicanálise
participa da configuração desses novos tempos, ao introduzir
uma nova erótica no discurso universal, com o isolamento do fenômeno
da transferência. Freud se dá conta da necessidade, para
a prática da psicanálise, da invenção de “um
quarto destino” para o amor, diferente daqueles até então
à disposição na civilização, a saber,
o da “união legal e permanente”, o da “separação”,
e o da “relação ilícita e temporária”.
Nenhum deles irá interessar à relação entre
analisante e analista. A psicanálise deverá escavar uma
nova trilha no amor, um caminho “para o qual não existe modelo
na vida real”, um modo pelo qual a demanda de amor não seja
satisfeita, mas que também não seja suprimida.
Sabemos que Lacan irá levar adiante a elaboração
a respeito da transferência. Sua teoria do sujeito-suposto-saber
é um modo de considerá-la a partir da relação
entre o amor e o saber, uma vez que o sujeito do inconsciente é
produto de um “não querer saber”. Na “Proposição
de 9 de outubro”, Lacan busca demonstrar como o efeito de significação
derivado da remissão do significante da transferência, que
representa o analisante, ao significante qualquer, encarnado pelo analista,
torna-se o eixo em torno do qual gira a transferência. O analista
aqui é pensado em sua vertente significante. Se há lugar
para pensá-lo como objeto, este se acha ainda latente, como referencial
deste efeito de significação enquadrado pelo “saber,
supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente.”3
Podemos afirmar que a teoria do sujeito-suposto-saber não será
a palavra final de Lacan a respeito da transferência. No Seminário
“Mais, ainda” dirá que uma transferência motivada
pelo sujeito-suposto-saber é “uma aplicação
particular, especificada”4
do que a experiência revela.
Uma das características desses novos tempos é o questionamento
de todo saber suposto e um estímulo à exposição
do saber. A medicina baseada em evidências, a superioridade dos
exames complementares em relação à confiança
na palavra do médico, as exigências de demonstração
estatística da eficácia de uma prática, indicam uma
relação com o saber que coloca sob suspeita toda suposição.
Isso não é sem conseqüências para a teoria do
sujeito-suposto-saber. Numa civilização em que o objeto
a não se acha mais em estado latente, mas circulando abertamente
no social, renovado, inclusive, pela ciência, que efeitos isso poderá
ter sobre o amor, em geral, e sobre a transferência em particular?
Uma nova erótica para a
transferência?
Essa pergunta nos leva a considerar o modo como o amor circula hoje entre
os jovens. Vamos tomar alguns desses aspectos, pelo menos os mais evidentes.
Um deles diz respeito a essa nova forma de relação entre
os sexos que é o “ficar”.
Correndo o risco de simplificação, podemos dizer que se
trata de um amor sem compromisso, como prazo de validade determinado,
sem a responsabilidade que advém dos vínculos duradouros.
Há aqui uma dimensão contábil, de cifração
do gozo, como nos mostra a propaganda de um refrigerante que faz equivaler
o número de parceiros ao número de latas tomadas.
Outra prática amorosa contemporânea é a do amor virtual.
Se ela é uma demonstração de que o amor pode ser
induzido pelos semblantes, ela também parece acionar alguns elementos
do amor cortês, ao criar, ao menos num primeiro momento, um objeto
inacessível e idealizado, mantido a uma boa distância.
De certo modo, tanto o “ficar” quanto o “amor virtual”
podem ser encarados como modos de abordar a relação sexual
pela redução do Outro a um objeto intercambiável,
passível de ser trocado ou abandonado no contexto de uma legitimidade
social.
Essas novas práticas permitem circunscrever os prazeres advindos
da relação amorosa, ao mesmo tempo em que possibilitam isolar
seus impasses, de modo que seja possível, como observa Roland Barthes,
“‘esquecer’ o ser amado fora dos prazeres que ele lhe
dá.”5
A constatação de que há algo na relação
amorosa do qual o sujeito deve se proteger, é inteiramente compatível
com a idéia do amor como um vírus. O seu aspecto contagiante,
ao mesmo tempo invasor, encontra na internet um meio eficaz de propagação.
Não há muito tempo a rede mundial de computadores se viu
atacada pelo Love Bug, atribuído a um jovem de 15 anos, que, através
de mensagens “I love you”, foi capaz de invadir as caixas
de endereços dos destinatários e enviar cópias para
todos ali listados, com a conseqüente destruição de
seus arquivos.
Não há como ignorar a correlação entre o caráter
“virótico” do amor e o desenvolvimento de jogos, animais
e mesmo namorados virtuais ao estilo “tomagotchi”. Estas práticas
indicam o caráter insuportável da demanda do Outro, criando,
como resposta, meios de torná-la previsível ou passível
de regulação.
Um inconsciente para os novos tempos
Esta redução do Outro a um objeto vai no sentido das manifestações
contemporâneas da transferência, que parecem vir articuladas
muito mais à dimensão pulsional do que à dimensão
amorosa da demanda. Nessa perspectiva, a transferência não
parece visar à falta no Outro, dando a impressão de confundir-se
com as exigências de uma presença absoluta como condição
para o gozo, sem espaço para uma dialética da falha no Outro.
Como pensar o acesso ao inconsciente neste contexto de degradação
do saber suposto e de redução do Outro a um objeto cuja
presença é a garantia de um plus de gozo?
Sabemos que Freud responde a essa questão apostando na capacidade
da psicanálise de induzir um amor pela verdade veiculada pelo sintoma,
pelo saber aí inscrito, um amor que seria superior às exigências
de satisfação amorosa dirigidas ao analista. Esta seria
uma das dimensões éticas da psicanálise.
Com Lacan encontramos algumas indicações que permitem avançar
em relação a estas questões e mesmo nos fornecer
elementos para enfrentar as dificuldades contemporâneas que se colocam
no caminho de uma experiência de análise.
Entre elas, a necessidade de se repensar o estatuto do inconsciente, à
luz do que Lacan pode vislumbrar como sendo os sinais de novos tempos.
Como fator da política, como forma de laço social, o inconsciente
também é afetado pelos modos de vida gerados pela civilização.
Temos aqui uma tese contrária à idéia de um inconsciente
eterno, ao mesmo tempo em que se exclui a nostalgia por um retorno aos
tempos de domínio do discurso do mestre, e a ilusão de esta
seria a saída para se preservar as possibilidades da psicanálise.
A orientação lacaniana indica que devemos buscar, nas forças
que se movem, as melhores condições para que o inconsciente
continue a ser um modo de acesso digno à causa analítica.
Pensar um novo estatuto do inconsciente também mobiliza uma nova
relação com o saber. É assim que vemos surgir uma
nova referência no último ensino de Lacan, com o deslocamento
para o primeiro plano da noção de “saber-fazer”.
Há aqui, a meu ver, um novo enfoque, na medida em que aponta para
uma concepção do inconsciente, e mesmo da transferência,
não mais pela vertente de um saber suposto, como produto de uma
articulação significante, mas como um modo de lidar
com a não-relação, esteja ela ao nível
da língua (“o inconsciente é um saber fazer com alíngua”6
), esteja ela ao nível do encontro entre os sexos (“O saber
do inconsciente designado por Freud é o que o húmus humano
inventa para sua perenidade de uma geração à outra”8
).
É nesta perspectiva que, a meu ver, a resposta do inconsciente
poderá interessar às novas gerações, na medida
em que ele for capaz de “fazer do impossível uma referência”,
tal como nos propõe Simone Souto em trabalho apresentado durante
os Seminários Preparatórios da X Jornada da EBP-MG .
A perspectiva do inconsciente como um “saber fazer” destaca
um aspecto de nossa relação ao saber que merece ser explorada.
Algumas passagens do Seminário 20 vão nessa direção,
especialmente na distinção feita por Lacan entre o valor
de uso do saber de seu valor de troca. Para se ter acesso a este saber,
dirá Lacan, “há um custo, é preciso empenhar
a própria pele, pois ele é difícil, menos de ser
adquirido do que de gozar”9.
Não se trata de um saber adquirido de uma vez por todas, mas um
saber a ser conquistado a cada vez que ele é exercido.
Nesse sentido, se há lugar para uma suposição de
saber numa análise, ela deverá ser medida a partir do valor
de uso do analista por parte do analisante, como parte de um saber fazer
com a não-relação que se constrói através
do sintoma. Podemos afirmar que há um saber no uso do parceiro-sintoma,
um saber que inclui o analista em seu exercício.
Como pensar a dimensão amorosa na experiência de uma análise,
de um amor que possa fazer existir o inconsciente como um saber fazer?
De que modo o amor pode ser um modo de acesso ao real sem lei?
“Basta que, em algum lugar, a relação sexual cesse
de não se escrever, que estabeleça a contingência,
para que se conquiste um esboço do que deverá ser concluído
para demonstrar essa relação como impossível, ou
seja, para instituí-la no real.”10.
É nos termos da contingência que Lacan verá no amor
a possibilidade de colocar à prova o fato do gozo do Outro, como
corpo, ser sempre inadequado, mesmo quando reduzido à dimensão
de um objeto.
Uma expressão comum aos jovens de nossos dias parece traduzir uma
dimensão do laço social que, de certo modo, parece configurar
o que aqui foi exposto. Refiro-me à expressão “ta
ligado?”, de cunho fático, pela qual, à primeira vista,
procura-se saber se o parceiro está acompanhando ou mesmo entendendo
ou dando importância ao que está sendo dito. O contraponto
com o termo “desligado”, próprio à juventude
dos anos 60, não deixa de ser sugestivo. Esta expressão,
no entanto, também poderá ser considerada como uma demanda
dirigida ao analista contemporâneo, de modo que, estando ligado,
possa permitir ao sujeito se situar diante do que, por essência,
é sem ligação.
1Trabalho apresentado na X Jornada da EBP-MG,
“Jovens em análise”, em dezembro de 2004.
2Membro
da Escola Brasileira de Psicanálise.
3Lacan,
J. (2003). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre
o analista da Escola”. In Outros escritos, (p.254).Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
4Lacan,
J. (1985). Seminário, Livro 20, Mais, ainda,(p.197). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
5Barthes,
R. (1981). Fragmentos de um discurso amoroso, (p.44). Rio de Janeiro:
F.Alves.
6Lacan,
J. ibidem, (p.190).
7Lacan,
J. (2004). Nota italiana. In: Outros escritos, (p.315). Op. Cit.
8Souto,
S. O futuro de uma desilusão. In: Jovens Online – Boletim
eletrônico da X Jornada da EBP-MG, n.5.
9Lacan,
J. (1985). Seminário, Livro 20, Mais ainda, (p.129). Op. Cit.
10Lacan,
J. (2004). Televisão. In: Outros escritos, (p.537). Op. Cit.
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