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Leitura
crítica dos “Complexos familiares”, de Jacques Lacan
1
Jacques-Alain Miller2
navarin@easyconnect.fr
Resumo: Em seu curso “Respostas
do real”, de 8 de fevereiro de 1984, Jacques-Alain Miller evoca
o texto Complexos familiares, de Jacques Lacan, referindo-se a ele como
“a primeira teoria do desenvolvimento de Lacan”, na qual ele
escande os três tempos essenciais (os complexos) do desenvolvimento
da criança. Ele o comenta brevemente dizendo que “a referência
sociológica de Lacan mascara o alcance de seu trabalho”.
Lacan enfatiza que “a família não é natural,
não é um fato biológico, mas um fato social”,
objetivando assim poder formular que “os instintos nada têm
a fazer ali”. Ele fala de “economia paradoxal dos instintos
no homem”. Qualquer idéia de dependência vital camufla
essa dimensão, prossegue Jacques-Alain Miller. A tese de Lacan
é que “a dependência é a sujeição
ao Outro, é uma organização significante da fala”.
Naquele ano, Jacques-Alain Miller publicou, pela Navarin, o texto dos
Complexos, republicando-o em 2001, pela Seuil, e o incluindo nos Outros
escritos. Encontraremos aqui apenas uma leitura da primeira parte; Jacques-Alain
Miller não voltará a esse texto em seu curso semanal. O
título Leitura crítica retoma uma frase de Jacques-Alain
Miller da lição de 14 de março de 1984. Catherine
Bonningue
Palavras chave: Nome-do-pai; cultura; complexos familiares.
Abstract: In his course “Des réponses du
réel” of February 8, 1984, Jacques-Alain Miller evokes the
text on “Family Complexes” by Jacques Lacan, speaking of it
as “the first theory of development of Lacan” where he punctuates
three essential moments (the complexes) in the development of the child.
He briefly comments on it there, saying that “the sociological reference
of Lacan hides the starting point of his work.” The accent is put
by Lacan on the fact that “the family is not natural, is not a biological
fact, but a social fact,” the finality of the thing being for him
to be able to establish that “instincts have nothing to do inside
it [the family]”—“he “speaks of the paradoxical
economy of instincts in man.” Any idea of vital dependence
camouflages this dimension, J.-A. Miller continues. The thesis of Lacan
is that “dependence is the subjection to the Other, this is the
putting into form of the signifying of speech.” That year, J.-A.
Miller published this text “Family complexes” with the publisher
Navarin, republishing it with the publisher Éditions du Seuil in
2001, including it in Autres Écrits. One only finds here
a reading of the first part of “Family Complexes”; J.-A. Miller
did not return to it in his course. The title of “Critical Reading”
takes up a phrase of J.-A. Miller from the lesson of March 14, 1984. Catherine
Bonningue.
Key words: Family; culture; Name-of-the-father.
I – Um texto precursor.
Dedicaremos nosso interesse ao primeiro
grande escrito e posicionamento de Lacan na psicanálise. Pena que
ele não se encontre nos Escritos, precisamente por ser
grande. O editor considerou que se poderia prescindir dele nesse volume,
que tem quase 1000 páginas, e Lacan consentiu. Por isso, no parecer
de Lacan, esse texto não tem uma existência inteiramente
oficial.3
De todo modo, cabe dizer que ele não recebeu toda a atenção
que merece. O fato de ele ter sido um tanto pirateado aqui e ali –
o que é curioso -, não fez com que ele tivesse a consideração
merecida.
Além disso, deram-lhe um título falso: A família.
De modo algum ele se chama A família. Não entenderemos
nada se nos pautarmos nesse título. Ele fazia parte de uma Enciclopédia,
cujas linhas principais foram traçadas pelo psicólogo Henri
Wallon. Graças lhe sejam dadas por ter recorrido a Lacan –
que, na época, não era bem uma persona grata –
para escrever um capítulo. Foi Wallon que organizou os capítulos:
“A família”, “A escola”, “A profissão”.
É abusivo considerar que era com a família que Lacan se
ocupava. O verdadeiro título do texto é completamente diferente:
Os complexos familiares na formação do indivíduo.
Hoje, só podemos lê-lo retrospectivamente. Não há
nenhuma chance de lê-lo como um capítulo de enciclopédia
dizendo: finalmente, chegamos ao capítulo “A escola”!
Não podemos mais lê-lo a não ser de uma única
maneira, e é justamente aqui que sua significação
mudou: como precursor do ensino de Lacan, o que ele não era na
data em que foi escrito. Tratava-se, então, de uma síntese
sensacional da teoria do desenvolvimento psíquico, assim como de
uma clínica freudiana. A segunda parte, “Os complexos familiares
em patologia”, é uma clínica freudiana abreviada,
de uma mestria absolutamente extraordinária. Deve ser lida como
um esforço.
Decerto que, nesse texto, estamos aquém do que será o ensino
de Lacan. Temos inclusive de lidar, é perceptível, com um
jovem psiquiatra, um jovem psiquiatra e um jovem psicanalista. Isso ressalta
melhor ainda qual é o índice que serve de orientação
para Lacan permitindo-lhe, quanto à questão do inconsciente
ou da história do inconsciente, dirigir-se adequadamente. Ao mesmo
tempo, o mais ausente nesse texto é o próprio conceito de
inconsciente, o que é impressionante. Nele, com certeza, não
há nenhuma teoria do inconsciente. Tampouco há – obrigatoriamente
– qualquer teoria da prática psicanalítica.
O texto que o precedeu, “Para-além do princípio de
realidade”4
, apresenta o começo de uma fenomenologia da relação
analítica. Nesse texto, não há nada semelhante, e
é preciso dizer que esse não é seu objetivo essencial.
Não se trata da fala, da linguagem e menos ainda do discurso analítico,
percebe-se, porém já haver uma distinção absolutamente
rigorosa entre o eu (moi) e o sujeito, ponto umbilical do ensino
de Lacan.
Nesse texto, falta a Lacan o que lhe virá depois por parte do estruturalismo,
de Jakobson e de Lévi-Strauss. Tudo isso está ausente, não
sem razão. O surpreendente, é que, ao mesmo tempo, é
como se estivesse escavado – o próprio tema da família,
por exemplo. Tem-se visivelmente uma boa orientação que
se mantém independente em relação à obra de
Freud, o que permitirá a Lacan, afinal, ter nela o ponto de apoio
do inconsciente estruturado como uma linguagem que, como já foi
bastante repetido, não está em Freud.
A boa orientação também não está nisso.
Ao se pôr em voga esse tema, de saída, o que é que
se enfatiza? Com certeza, como se trata de um fenômeno de geração
e concerne à vida, enfatiza-se que tanto o animal quanto o homem
têm família. Se é possível isolar a família
a partir da própria geração, da procriação
e da necessidade de manutenção de um meio ambiente para
o desenvolvimento dos jovens, por parte dos indivíduos adultos,
mesmo no animal – isto está desde o início do texto
– o social é diferente do estritamente familiar, do estritamente
natural. E, para passar ao homem, ele o caracteriza, desde o começo,
pelo desenvolvimento das relações sociais.5
Eis aqui alguém que não dispõe nem da metáfora,
nem da metonímia, mas, no entanto, põe fora do jogo, e de
saída, o puro instinto natural no homem, considerando simplesmente
a observação, a experiência, a psicologia e a antropologia
de seu tempo. Isso lhe basta para, excluir, desde o princípio,
o instinto puro do que concerne ao homem, valorizando, em contrapartida,
a instância constitutiva da dimensão chamada por ele a
cultura, em tudo o que diz respeito ao homem.
Mesmo entre os animais há um elemento social que não é
estritamente natural, porém, entre os homens, o social toma a forma
de cultura. Antes da introdução das Estruturas elementares
de parentesco,6
por Lévi-Strauss, a referência essencial formulada por Lacan
é a seguinte: onde quer que busquemos na espécie humana
– isto não vale apenas para a psicanálise –,
não há natureza que não seja remanejada pela cultura,
de tal maneira que o fator cultural domina.
Isso o leva imediatamente a falar da economia paradoxal dos instintos.
A tal ponto que não é através dos meandros da psicanálise
que Lacan, desde o início, em seu índice de orientação
pré-psicanalítica, isola a função paterna
como o exemplo mesmo de uma função não dedutível
da natureza.
Antes de Lévi-Strauss, ele alude à complexidade das formas
de parentesco: “os modos de organização desta autoridade
familiar, as leis de sua transmissão, os conceitos de descendência
e de parentesco que lhe são adjuntos, as leis da herança
e da sucessão que ali se combinam, enfim, suas relações
íntimas com as leis do casamento [...]. Sua interpretação
deverá então esclarecer-se com os dados comparados da etnografia,
da história, do direito e da estatística social”7
. Tudo isso, diz ele, estabelece a família como uma instituição.
Ora, do que se trata? Em primeiro lugar, de relativizar a forma familiar
existente. Aqui já se tem, inclusive, um apanhado do que serão
as pesquisas contemporâneas sobre a história da família.
Porém, o que aqui é chamado cultural é, definitivamente,
um ersatz do simbólico. O conceito do simbólico
falta, mas da boa maneira, ou seja, percebe-se que ele é evocado
de todas as formas possíveis. Nesse texto, é essencial a
idéia de que no homem não achemos naturais a necessidade
e o instinto, mas sim que, em uma dimensão outra, a da cultura,
eles sejam remanejados. Evidentemente, isso ainda não é
formulado a partir do Outro, ainda não está dito que toda
mensagem dessa comunicação suposta mental se forma no lugar
do Outro, embora já esteja articulada, de modo perfeitamente claro,
uma dominação do fator cultural.
Constata-se também a aspiração, que será a
de Lacan em seus matemas, a um ensino de simplicidade, contrariamente
ao que se imagina. É o que encontramos, aqui, porquanto o que é
dado como chave da teoria do desenvolvimento e da psicopatologia é
um conceito, e apenas um: o do complexo. Um só conceito que, justamente,
não é apresentado a partir da psicanálise, mas em
uma fórmula generalizada, como ele se expressa, um conceito antitético
ao do instinto. Vocês vêem aqui o que apóia minha demonstração,
o ponto de apoio de Lacan nesse fechamento do inconsciente, um ponto de
apoio externo, exterior à própria psicanálise. Ele
define o complexo essencialmente como um fator de cultura, o oposto do
instinto, e, nesse sentido, ele substitui Freud.8
É repudiando Freud, de saída, que ele formula esse conceito
operatório.
O que é esse complexo? É uma pré-estrutura. O conceito
de estrutura lhe falta. No entanto, é o que ele procura definir,
de maneira contornada, é claro. Ele tenta defini-lo ao mesmo tempo
como uma forma e como uma atividade. Como uma forma que se impõe
no desenvolvimento, fixando uma realidade datada, representando assim
sob uma forma fixada, uma certa realidade do desenvolvimento – isso,
do ponto de vista da gênese; por outro lado, como uma atividade,
ou seja, como incitando a repetições de comportamentos,
de emoções vividas, quando um certo número de experiências
se apresenta.
Ele nos dá uma definição que não implica de
modo algum se tratar apenas de complexo inconsciente. “O que define
o complexo é que ele reproduz certa realidade do ambiente, e duplamente.
1) Sua forma representa essa realidade no que ela tem de objetivamente
distinto em uma dada etapa do desenvolvimento psíquico; essa etapa
especifica sua gênese. 2) Sua atividade repete no vivido a realidade
assim fixada, cada vez que se produzem algumas experiências que
exigiriam uma objetivação superior dessa realidade; essas
experiências especificam o condicionamento do complexo”9
O que é que Lacan chama objetivação pelo conceito,
a ponto de dizer que todo complexo se refere a um objeto? Só podemos
apreendê-lo no conjunto do texto.
É a idéia de que o real não intervém como
tal naquilo de que se trata. Ele só intervém através
de diferentes formas de objetivação. Em outras palavras,
ele emprega o termo objetivação utilizando-se da noção
de que formas de objetivação se sucedem, e que se passa
de uma forma de objetivação antiga para uma forma nova através
de uma crise, através de um conflito de uma forma de objetivação,
eventualmente com a referência ao real.
O que ele chama objetivação – com base em A fenomenologia
do espírito, de Hegel, é o que é desenvolvido
nessas formas de objetivação que se sucedem através
de conflitos, resolvendo-se, depois, através das crises –
vem, definitivamente, no lugar da palavra simbolização.
O que caracteriza o complexo pela repetição da realidade
fixada no lugar de uma objetivação superior da realidade,
tanto mais que ele realça, em seguida, o fato de que toda identificação
objetiva exige ser comunicada. Vemos aqui, com clareza, o que evoca o
conceito de simbolização. Isso nos parece de difícil
compreensão e só perceberemos seu valor a partir do que
virá depois.
O que dá o ponto de apoio para a recoberta do inconsciente é
a antítese aqui formulada entre o instinto e o complexo, permitindo
opor, de um lado, o complexo como conhecimento – complexo que tem
evidentemente o status do significante; deveríamos pôr o
termo saber no lugar de complexo –, e, do outro, o conhecimento
à co-naturalidade do instinto, assim como opor o caráter
típico social do complexo à tipicidade na espécie
do instinto; por fim, opor a estagnação própria do
que ele chama um complexo à rigidez do instinto. Esse conjunto
assinala que, de todo modo, no que concerne à definição
do homem, nada se pode definir de seu psiquismo a partir da adaptação
vital.
É o que, já em 1938, preparava Lacan para se opor à
egopsychology, na qual, precisamente, a adaptação
é uma palavra chave. O surpreendente é que, servindo-se
com vantagem da razão, tem-se, como se escavado, desde antes da
guerra, todos os elementos que convergirão para a segunda pulsação
do inconsciente.
Foi somente num segundo movimento que Lacan situou o complexo como inconsciente,
ou seja, propôs que Freud tivesse feito do complexo como inconsciente
“a causa de efeitos psíquicos não dirigidos pela consciência:
atos falhos, sonhos, sintomas”. Temos aqui, como se já estivesse
preparado, o que Lacan chamará mais tarde formações
do inconsciente isoladas em sua seqüência, assim como
o complexo radicalmente não instintivo, cultural, baseado em um
nível de objetivação, objetivação esta
assentada na comunicação e situada por Freud como causa
desses efeitos não dirigidos pela consciência. Temos, assim,
como se estivesse preparado, aquilo que, num sobressalto, permitirá
tanto o estruturalismo quanto o inconsciente estruturado como uma
linguagem.
Para entender esse inconsciente estruturado como uma linguagem no lugar
que lhe cabe, é preciso entendê-lo como a fórmula
que permitiu a segunda pulsação do inconsciente, cujas coordenadas
são dadas, aqui, inteiramente fora da experiência analítica,
em sentido estrito.
II – O pré-estruturalismo
de Lacan.
Recorri ao texto “Complexos familiares”
para introduzir a posição da psicanálise entre a
matemática e a literatura, o que apenas esbocei, e que me levou
a fazer alguns desenvolvimentos a respeito da história
da psicanálise.10
Se hoje eu tivesse de justificar a aproximação dessas duas
partes, eu o faria tomando o viés de um termo que não foi
recebido entre nós – é estrangeiro –, a fim
de situar Lacan e alguns outros, a saber: o termo pós-estruturalismo.
Trata-se de uma invenção de um anglo-saxão, que lhe
permitiu fazer um parêntese onde inseriu alguns luminares do estruturalismo
francês, ali colocando Lacan em companhia de certo número
de nomes dos quais o seu se viu aproximado ao longo dos anos sessenta.
Se me detenho no termo pós-estruturalismo, é porque
é sob essa insígnia que irei ao Canadá, em maio,
a convite de um departamento literário, para falar sobre um pretenso
“Lacan no pós-estruturalismo”. Eu os preveni que não
aceitava essa categoria, mas isso não os desencorajou.
Aproximarei, hoje, o pré-estruturalismo de Lacan – o que
é certamente bem mais verificável do que o pós-estruturalismo
– e sua posição quanto à ideologia estruturalista,
o que se poderia de fato qualificar de pós-estruturalismo, no qual,
justamente, ele não tem muitas companhias. Isso possibilitará
marcar aquilo ao qual Lacan se oporia, conforme os departamentos literários
da América freqüentemente acreditam, a saber, a superioridade
da análise gramatológica ou desconstrutiva. Se,
no que concerne à fabricação de teses, essa análise
gramatológica é fundamentada – ela certamente o é
–, no que concerne ao status atribuído à literatura
ela não é tão evidente assim.
O texto Complexos familiares deve ser inscrito na história
da psicanálise, porquanto ele é apresentado como escandido
em momentos que se pode numerar: 1) A descoberta do inconsciente; 2) A
interrogação técnica; 3) A virada dos anos vinte;
4) O abandono de Freud; 5) Do retorno a Freud.
Essa periodização sumária é a que Lacan, por
mais desconfiado que fosse a respeito da história, apresenta em
seus Escritos. Eu lhes ressaltei que se podia ordenar essa história
da psicanálise, o mais sucintamente possível, como o faz
Lacan mais tarde, como a história do inconsciente cujo momento
de descoberta acaba no recalque e que necessita, dá sentido e situação
ao retorno a Freud.11 É em relação a essa periodização
que nos interessa o ponto de partida de Lacan, ou seja, o ponto de partida
do retorno a Freud. Propus, e isso me parece admissível, que seu
ponto de partida foi a diferença entre o eu (moi) e o
sujeito.12
É desse modo que a seqüência de seu ensino nos obriga
a situar “O estádio do espelho” como sua porta de entrada
na psicanálise. Nesse sentido, ele foi ao encontro do esforço
de Freud de situar o eu (moi) referido ao narcisismo, no segundo
decênio do século, marcado, por excelência, pelo texto
“Sobre o narcisismo: uma introdução” .13
Sejam quais forem as correções de Freud eventualmente trazidas
por Lacan sobre alguns pontos, e ele tende a fazê-lo desde “Complexos
familiares” – o retorno a Freud não significa a devoção
ao menor de seus ditos –, a definição do eu a partir
do narcisismo, caso nos detivéssemos nisso, era suficiente para
negar que se tivesse ali o ponto próprio para ser o pivô
do processo analítico. Disso decorreu a insurreição
de Lacan contra a egopsychology, quando, sob o pretexto de apoiar-se
no texto de Freud “O Ego e o Id”14
, ela relegou essa definição narcísica do eu.
Nesse sentido, a porta de entrada de Lacan via “Estádio do
espelho” que, de algum modo, representa através de uma imagem
– cabe dizer – o status narcísico do eu, era como se
já estivesse preparada, por antecipação, para servir
de testemunho contra a psicanálise relida como uma psicologia do
eu. Quando Lacan começou seu ensino nos anos cinqüenta –
em 1936 ele escreveu a comunicação “O estádio
do espelho” –, ele não acreditava em seus olhos ao
ler sobre o que estava acontecendo nos Estados Unidos a partir de 1945-46:
lá, o eu era tomado como o pivô do processo analítico.
Há, aqui, uma correspondência entre o que figura em “Complexos
familiares” e o que fora para Lacan o tema de sua primeira comunicação
diante da comunidade analítica em Marienbad, em 1936. Ele não
redigira essa comunicação para publicá-la, parece,
devido ao desdém ou à raiva por ter sido cortado pelo presidente
da mesa. Naquela época, as comunicações não
duravam vinte minutos, como acontece nos dias de hoje, mas apenas doze
e, como não foram condescendentes com ele, não se tem essa
comunicação. O texto mais próximo de “O estádio
do espelho” não é o que consta dos Escritos,
redigido bem mais tarde15
– que já é um remanejamento –, mas o texto que
figura em “Os complexos familiares”.
O eu não é o sujeito. Não é que Lacan defina
o sujeito em “Os complexos familiares”, mas é preciso
que ele os distinga. Ele o faz, antes de tudo, mantendo o status do sujeito
dividido, opondo-se a qualquer concepção unificadora. Para
ele, não se trata de uma divisão superável. Isso
basta para se apreender por quê ele, mais tarde, fará da
castração, e sem muita dificuldade, um conceito chave já
que, em primeiro lugar, a castração escreve, nomeia a divisão
do sujeito como não sendo superável.
Quando apreendemos a construção do conceito de castração
no começo de sua elaboração lacaniana – em
“Os complexos familiares” ele ainda o chama uma fantasia por
não dispor, naquele momento, do conceito de simbólico –,
esse ponto de partida nos ajuda a reconhecer o aspecto bífido,
o caráter duplo desse conceito que, de um lado, aponta para o sujeito,
re-nomeia sua divisão, ao passo que, do outro, aponta para o objeto
dando lugar à sua perda. Mais tarde, Lacan introduzirá o
símbolo (–) para escrever, do modo mais simples possível,
a castração. Esse símbolo é tratado, posto
em série, de um lado, com $, a divisão do sujeito; do outro,
com o pequeno a, o objeto como perdido.
Desde o ponto de partida de Lacan, vemos em quê a castração
poderá se tornar para ele um conceito chave o que, na época,
ainda não era. O que obstaculiza admitir a castração
como um conceito chave da obra de Freud, é o fato de não
se querer admitir a divisão do sujeito como definitiva, estatutária,
não admitindo, evidentemente, nenhuma reconciliação
e não permitindo pregar este esquecimento benévolo, esta
negligência benigna chamada sabedoria. Portanto, em primeiro lugar,
essa divisão profunda e, digo eu – encontramos a passagem
nesse texto –, uma divisão pelo sintoma. Em segundo, encontramos
ali uma estrutura anterior ao estruturalismo, pelo menos uma evocação
ao conceito de estrutura, que é uma grade a partir da qual se pode
decifrar – o que parecerá absolutamente opaco para a maioria
– sua definição do complexo nessa época.
Com efeito, nem uma gata encontraria seus filhotes nesse complexo –
aliás, Lacan abandonou sua promoção –, se não
nos déssemos conta de que há nele uma antecipação
do conceito de estrutura. Essa antecipação está presente,
em primeiro lugar, na referência obrigatória ao social encontrada
nesse texto. Dizemos que ela é obrigatória porque ela vem
do próprio tema: a família. Ela vem daquele que promove
a Enciclopédia, Henri Wallon, e da série em que
o texto está inscrito, antes da escola e da profissão. Mas
Lacan faz alguma coisa com essas obrigações de render homenagem
a quem o acolhe, o que, afinal, é o destino dos acolhidos.
A ênfase posta sobre o social – obrigatória nessa Enciclopédia
– e sobre o cultural como sendo o que especifica o social no homem,
um cultural que é feito de sedimentações da comunicação,
já anuncia a noção de simbólico pela afirmação,
chocante em todos os sentidos para o leitor da época, de que o
que a psicanálise verifica é a dominância dos fatores
culturais. Isso o leva a uma definição da ordem humana como
tal, ou seja, diferenciada daquilo que ordena as relações
das espécies animais, “subversiva a toda fixidez do instinto”.16
Aqui se justifica o apelo à antropologia, e mesmo à história,
feito nesse primeiro texto. Essas referências, assim como as tomadas
na idade das Luzes, têm a vantagem de levar os estranhos ou os fanfarrões
ao debate. Isso tem sempre o mesmo valor de manifestar o artifício
– que, afinal, é um outro nome do significante como semblante
–, de fazer ver o artifício naquilo que regra, regulamenta,
coage a existência humana. Se há um ponto maciço nesse
texto e também inteiramente decisivo, depois do da divisão
do sujeito, é a denúncia da concepção instintiva
em se tratando do homem, sendo o instinto, como tal, rígido, invariável,
ao qual se opõem precisamente pela investigação cultural
mais elementar, as variações infinitas da existência
humana e de seus modos de organização.
Um bom ponto de partida é que a pesquisa concernindo ao psiquismo
não pode nunca objetivar os instintos, mas apenas as formas dominadas,
de saída, pelos fatores culturais que Lacan, nesse texto, chama
complexos. Precedentemente, enfatizei sua expressão “economia
paradoxal dos instintos”.17
Vocês encontrarão essa intuição, com certeza
enriquecida, nas passagens agora célebres dos Escritos,
quando ele retoma a inexistência da necessidade pura ou do instinto
no ser falante, uma vez que, caso pudéssemos isolar essa necessidade,
ela seria de todo modo remanejada pela demanda, pelo fato de que o sujeito
fala e se endereça ao Outro. Evidentemente, no texto “Os
complexos...” não encontramos essa circunscrição
do Outro da demanda, mas já encontramos nele a resposta que permitia
essa elaboração, a saber, o caráter profundamente
não instintivo dos apetites humanos. Isso está presente
até mesmo em sua análise do desmame, breve, sumária,
criticável, mas surpreendente, marcando, em primeiro lugar, que,
embora uma função de aparência natural ali esteja
concernida, isso não permite, todavia, dar conta daquilo de que
se trata nessa regulação que é o desmame.
III – O complexo-estrutura.
Não nos surpreendamos com o fato
de Lacan dar uma fórmula do complexo que ele chama generalizada,
em relação à qual o complexo, no sentido analítico,
aparece como um caso derivado. Dar uma fórmula generalizada do
complexo quer dizer, na realidade, tratar o complexo como uma estrutura,
do mesmo modo que, mais tarde, ele considerará que não há
apenas estrutura analítica. Essa introdução de uma
fórmula generalizada do complexo, que não é senão
uma parte secundária ao complexo inconsciente, como se aqui se
tratasse de uma paralisação do conceito, antecipa, de fato,
aqui também, o que ainda falta a Lacan, a saber, o conceito de
estrutura.
Isso é mais surpreendente pelo fato de que, mais tarde, o Lacan
estruturalista atribuirá algumas incertezas freudianas a essa falta
do conceito de estrutura, mas também encontrará, em Freud,
algo como a antecipação da estrutura saussureana. Podemos
dizer o mesmo sobre Lacan, exceto que, evidentemente, ele não tem
a desculpa de Freud, porém, mesmo em torno dessa falta central
de sua exposição, o mais surpreendente é tudo aquilo
que ali já evoca e conduz a esse conceito de estrutura.
Só é possível orientar-se nessa noção
de complexo a partir do conceito de estrutura. Lacan o chama uma representação,
embora esse complexo tenha, de fato, dois traços; fixação
e repetição. Fixação de uma etapa do desenvolvimento
psíquico e repetição promovida por esse complexo,
fazendo com que Lacan fale, aqui, da atividade desse complexo –
há algum tempo expus o conceito de estrutura em Lacan falando de
“ação da estrutura”18
–, que o faz começar a funcionar, eventualmente de modo despropositado
– inclusive, é neste momento que ele é perceptível
–, quando um engate, um certo tipo de experiência se apresenta.
Como se pode dar conta dessa fixação e dessa repetição
sem o conceito de estrutura? O que também evoca esse conceito de
estrutura é a conexão de todo complexo com um objeto e,
sem dúvida, seria preciso apreender esse objeto a partir do que
ele chama formas de objetivação, que, decididamente, são
formas de subjetivação, porquanto se trata de saber em qual
nível o real se encontra objetivado por um sujeito, em um momento
dado, ou seja, de fato comunicado. Para falar com propriedade, não
há outra definição do objeto, da “identificação
objetiva”19
, da identificação de um objeto como tal, fora da possibilidade
de comunicá-lo. É sem dúvida o que faz desse objeto
uma objetivação, remetendo assim aos avatares, à
posição de sujeito.
O que surpreende igualmente é que o objeto do qual se trata também
é, afinal, uma antecipação do objeto que conheceremos
em seguida como perdido. Nesse texto, há muitas falsas janelas,
uma espécie de lista, de instalação simétrica,
de contabilidade, que decorre certamente do estilo psiquiátrico
e enciclopédico, mas, ao lê-lo no a posteriori,
é preciso desarticulá-lo para percebermos que a manifestação
essencial do complexo é a “carência objetiva no que
diz respeito a uma situação atual”20
. Dessa frase, podemos manter apenas o termo carência.
O que Lacan nos apresenta sob o aspecto fixo e ativo do complexo se refere
cada vez a uma carência. Apesar das aparências, é essa
carência que ordena o que vem a seguir: a seqüência escandida
do desenvolvimento psíquico proposta por ele. Isso permite ver
com clareza o que esse texto antecipa, ao valorizar, em se tratando da
estrutura no sentido analítico, sua correlação com
o objeto como carente. Não temos aqui sua lógica apurada
que Lacan dará mais tarde, mas sim seu ponto de evocação.
Não se tem essa mesma evocação no texto redigido
pouco tempo antes “Para além do princípio de realidade”,
embora todo o parêntese relativo à fenomenologia da experiência
analítica – que aqui não figura de modo algum –
deixe evidentemente pressentir elementos do ensino posterior.
Uma quarta antecipação, ainda que não desenvolvida,
é, mesmo assim, explícita, caso saibamos ler o texto sem
nos ocuparmos demais com as dificuldades de sua exposição.
Nele, Lacan dá um triplo aspecto a essa carência: em primeiro
lugar, ela é uma relação de conhecimento; em segundo,
é uma forma de organização afetiva; em terceiro,
é uma prova do choque do real.
Assim conduzido, mesmo que isso se justifique para os leitores da época
e também para os de hoje que não dispõem da orientação
proposta por mim, a aproximação parece um tanto heteróclita.
Caso se trate do objeto, para situá-lo e identificá-lo,
para compreender que o conhecimento também está em jogo,
que não se trata de pura percepção, mas também
de atividade no nível superior, como se imagina, e que é
preciso a integração dessas percepções, ao
mesmo tempo em que um emprego de mecanismos gnosiológicos –
por que não complicar? –, podemos admitir também que,
quanto a esse objeto, têm-se sentimentos e palpitações.
Se falamos de complexo, é porque temos sentimentos fixados em relação
a esse objeto – prova do choque do real – e porque, afinal,
mesmo que esse objeto seja uma forma de objetivação do real,
ele pode, todavia, nos surpreender. Podemos então compreendê-lo
em um nível decomposto, mas espero não ter escapado para
ninguém aqui o fato de que, uma vez retirados esses três
aspectos do que Lacan chama carência objetiva através da
qual se manifesta o complexo, essa tripartição já
é a do simbólico, do imaginário e do real.
Uma vez que a relação de conhecimento só se concretiza
na comunicação ela é impensável sem a dimensão
simbólica. Essa forma de organização afetiva já
supõe a posição do objeto como imaginária.
Quanto à prova do choque do real, já encontramos antecipado
o status propriamente lacaniano do real na palavra choque, que
encontrará sua expressão propriamente re-fundada em seu
ensino, por exemplo, em pedaços de real. Choque do real
é também o que antecipa o real como impossível. Em
termos precisos: é impossível reabsorver seu choque. Evidentemente,
o que não marca o real como impossível é que ele
não faz sistema, e temos de algum modo seu ponto de evocação
nessa prova de choque do real.
Isso é o que constitui o pré-estruturalismo de Lacan ao
qual falta a estrutura, ao qual falta a precisão que o simbólico,
quando referido à estrutura saussureana, dá a esse vago
conceito de cultural. O que falta a esse pré-estruturalismo é
o conceito de significante. Em seu lugar está o conceito –
aqui, apenas aproximado – que não permite fazer a diferença
em relação ao objeto, a saber, o conceito de imago,
tratado de maneira original por Lacan e que lhe permitirá nomear
de maneira indiferenciada o objeto e o significante.
Para fazer um rápido curto-circuito: o que é que faz passar
do pré ao pós-estruturalismo? O pré-estruturalismo
é o aquém do significante e o pós-estruturalismo,
o bom, ou seja, o único, o de Lacan, é o para além
do significante, é a consideração do para além
do significante.
IV – Uma seqüência
escandida.
Antes de abordá-la, gostaria de
lhes dizer algumas palavras sobre esta seqüência instaurada
por Lacan. É muito simples. Há três escansões:
o desmame, a intrusão e o Édipo.
Todo mundo sabe o que é o desmame.
Quanto à intrusão, é sob esse nome, sob esse título
e no nível da família que Lacan re-situa seu “Estádio
do espelho”. Aqui, trata-se essencialmente de uma análise
do complexo fraterno. Este é o intruso.
No que diz respeito ao Édipo, há efetivamente uma tentativa
para dar a esse complexo suas referências: em primeiro lugar, narrá-lo,
explicá-lo e tirar as conseqüências de sua triangulação
fundamental, situando assim o complexo de Édipo entre o pai e a
mãe, dispondo apenas da fantasia de castração.
O mais surpreendente dessa seqüência é que, em se tratando
de estádio, não encontramos nela o estádio anal.
É muito singular, surpreendente, constatar essa ausência
da referência freudiana. Em compensação, nela encontramos,
de saída, a idéia de que as escansões desse desenvolvimento
só encontram seu sentido a partir do Édipo. Lacan, em seu
texto sobre a psicose, escreverá que o desenvolvimento, uma vez
que ele tem seu lugar na psicanálise, só toma sua significação
por retroação do complexo de Édipo, ou seja, as perdas
anteriores não devem ser tratadas como puras feridas narcísicas,
mas se ordenam a partir da castração, tomam seu valor analítico
a partir da castração21.
Já temos aqui essa boa orientação, visto que Lacan
– muito rapidamente, é verdade – só articula
esse desenvolvimento sob reserva de seu remanejamento –
o termo é seu – pelo complexo de Édipo. Temos então
o começo, de modo surpreendente, do que deve ser pensado nesse
desenvolvimento, a saber, que ele se ordena retroativamente a partir do
Édipo, que, nessa concepção, vem concluí-lo.
Quanto ao desmame, tem-se uma deslumbrante demonstração,
da qual não mais necessitamos agora, porque passamos a ter o hábito
– o mau hábito – de não mais repensar os fundamentos
mesmos de nossas articulações. Aqui, temos uma demonstração
de que a regulação representada pelo desmame não
é uma regulação natural, mas cultural. Tal como é
praticado nos dias de hoje, o desmame poderia parecer mais próximo
das exigências da natureza. Justamente aqui, as referências
à antropologia e à história vêm, como peça
de apoio, justificar, testemunhar que, na espécie humana, fez-se
todo tipo de coisa com o desmame, que não se encontra nele uma
fixidez comparável à do instinto e que, pelo contrário,
é preciso dizer claramente que se inventou diversas formas de desmame.
Podemos ver para que servem essas referências à antropologia
e à história. Aqui, servem sempre para demonstrar que não
há relação com esse objeto, no sentido em que Lacan
dirá mais tarde: não há relação
sexual. Isso significa que não está escrito no instinto
e, desde então, há lugar para a invenção humana,
para a invenção do mundo simbólico, precisamente
porque nesse lugar nada está escrito.
Quando se diz: não há relação sexual,
imagina-se que isso se encarne, sobretudo – é verdade –,
na relação entre o homem e a mulher. Aqui, não há
nada escrito, razão pela qual se inventa. Mas isso também
vale para qualquer relação do homem com seus objetos, porquanto
eles vêm neste lugar que Lacan começa a circunscrever nesse
momento, objetos que se pode dizer aproximativamente de gozo, para os
quais ele também inventou a maneira de se comportar com eles.
Podemos lamentar, pela beleza da coisa, que ele não trate do suposto
estádio anal, pois o que nele prevalece por excelência é
esta invenção humana, ou seja, a cloaca, o esgoto ou a lixeira
e outras tantas formas de lidar, testemunhos da cultura como tal. Lacan
propunha definir não a cultura, mas a civilização
como esgoto, não os gostos, mas o esgoto. A civilização
é o que caminha nas profundezas do esgoto, o que, aliás,
vemos reaparecer na questão da literatura. Ao tomá-lo desse
modo, talvez surja uma idéia diferente daquela, sumária,
sustentada pelos partidários desse pós-estruturalismo.
O que é divertido nesse texto, é a demonstração
do que hoje consideramos como recebido, havendo nisso uma radical diferença
com o instinto. Reler a passagem: “Não há nada instintivo
entre a mãe e a criança na espécie humana”,
talvez ajude a desprender-se das elucubrações de um Bowlby
que, longe de restringir a nada a parte do instinto no comportamento humano,
sonha, pelo contrário, estendê-lo até uma idade tão
avançada que se poderia muito bem comparar ou regular esse movimento
– por que não? – a partir dos hábitos das abelhas.
O significante que falta a Lacan é também o significado,
uma vez que ele tenta marcar que o que conta não é tanto
o fato do desmame quanto “a maneira como ele será vivido”
pelo sujeito e segundo a significação que este lhe dará.
Como Lacan fala apenas de tempos em tempo e fugidiamente sobre sentido
e significação, ele recorre a um termo que é precário
para nós, a saber, o de intenção mental do sujeito
incidindo sobre o desmame. Assim, pela intenção mental,
o sujeito pode aceitá-lo ou recusá-lo, traço que
marcará a seqüência de seu desenvolvimento. De certo
modo, ele não o aceita nem o recusa completamente, nenhuma das
duas vertentes é predominante: uma intenção mental,
aquém da escolha porque “o eu não está constituído”.22
Isso é um marco em sua expressão, até mesmo seu mental,
mas nos entenderíamos melhor se ali houvesse a intenção
de significação que, aliás, vocês encontrarão
na própria representação do grafo de Lacan, como
estando na origem do vetor do significado: trata-se da intenção
mental tornada intenção de significação. Isso
faz com que, para nós, a significação nos fale mais
do que o mental, o que não impede que o mental, definitivamente,
se reduza a isso.
Observo ainda que, de maneira surpreendente e en passant, Lacan
assinala o fato de que, para a criança, desde os primeiros dias
e antes mesmo da coordenação do olhar, o rosto humano não
lhe é indiferente. Basta essa anotação para excluir
qualquer idéia, fundamentada na observação da criança,
de um narcisismo primário que a faria ocupar-se apenas com a realidade
de seu corpo. O que levou tanto tempo para ser adquirido – parece
que hoje isso se faz fugidiamente –, ou seja, aperceber-se da abertura
do mundo primário da criança, aqui, já se tem, en
passant, a notação. Para o recém nascido, o
rosto humano já tem valor. Nesse sentido, Lacan já tomara
o partido de que não há narcisismo primário. O único
narcisismo concebível é o secundário, a saber, o
que supõe o eu e sua relação com a imagem.
O que é que faz imago nessa questão? Se Lacan diz,
com toda tranqüilidade, que é o seio materno, se esse complexo
de desmame é articulado à imago do seio materno, é
evidente que ele, em 1938, já se beneficia de Melanie Klein. O
nome de Melanie Klein, salvo erro, só aparece uma vez nesse texto,
o que não impede Lacan de tomar seu partido em um debate que ocupará
o movimento psicanalítico porlongo tempo. Podemos observá-lo
no fato de ele, em seguida, evocar fantasias, prestando homenagem a Melanie
Klein como uma das pesquisadoras que melhor compreenderam a origem materna
das fantasias de desmembramento, de deslocação, de estripação,
de devoração, etc.
A ligação imago-complexo se exprime no fato de que é
a perda do objeto – para nomear esse complexo, é escolhido
o momento em que esse objeto se vai – que imprime o complexo como
tal. Lacan faz desse complexo, classicamente, o mais primitivo, admitindo,
é claro, os remanejamentos dialéticos que ele sofrerá.
Porém, certamente há nesse texto uma primariedade da mãe,
de modo que, mesmo em sua interpretação do complexo de castração,
da fantasia de castração, é ainda a origem materna
que ele valorizará.
A função do pai é de fato repelida como estando inteiramente
afastada, como estando fora da esfera fantasística dominada pela
presença materna desde o desmame. O que virá a seguir, a
posição excepcional do ponto de basta como presença
do Nome-do-pai, já está anunciada nesse texto, uma vez que
toda a fantasística humana, até à castração,
é tomada no parêntese materno. A função do
pai aparece como sendo de uma ordem completamente diferente, embora Lacan
ainda não disponha de outro termo senão o de imago para
qualificá-lo.
Para retomar essa ligação imago-complexo, a estrutura, no
sentido de Lacan, é articulada a um objeto perdido, pelo menos
no que concerne ao desmame e ao Édipo, uma vez que ali a situação
do complexo de intrusão – inventado devido à circunstância
– não responde de maneira estrita. Posteriormente, o complexo
de intrusão será um tampão e Lacan fará dele
uma extrusão. Ele ali está um tanto forçado e motivado
por uma consideração puramente desenvolvimentista.
V – Uma concepção
de conjunto do desenvolvimento psíquico.
Relendo esse texto, fui tomado de entusiasmo.
Foi para mim uma surpresa relê-lo como um escrito de Lacan. O que
é absolutamente surpreendente é essa consistência
e sobretudo o fato de Lacan não ter se detido nessa consistência,
não ter repetido os complexos familiares por toda sua vida. Ele
teria podido fazê-lo, já que é verdadeiramente uma
concepção de conjunto do desenvolvimento psíquico.
Assinalarei apenas dois pontos, pois não quero me deixar levar
pelo comentário.
Em primeiro lugar há aqui, com todas as letras, o conceito de apoio
– cujo mérito da descoberta alguém quis se atribuir
–, a constatação de que é definitivamente nas
funções naturais que a pulsão se apóia.
Decerto que, nessa data, Lacan não dispunha do conceito de pulsão.
Ele só fala de instinto, para recusá-lo, é claro,
mas ressaltará que esse valor não cai do céu, que
devemos estar liberados da consideração do instinto no sentido
estrito quando nos ocupamos de Freud. É um dos efeitos do retorno
a Freud. E ali está articulado de maneira precisa: “Opondo
o complexo ao instinto, não negamos ao complexo qualquer fundamento
biológico, e definindo-o através de algumas relações
ideais” – a falta do termo simbólico se faz também
sentir aqui – “nós, todavia, o religamos à sua
base material”. Essa base é a função assegurada
por ele no grupo social; e o fundamento biológico está na
dependência vital do individuo em relação ao grupo.
Enquanto o instinto tem um suporte orgânico e não
é senão a regulação deste em uma função
vital, o complexo só eventualmente tem uma relação
orgânica, quando suplementa uma insuficiência vital através
da regulação de uma função social. Este é
o caso do complexo de desmame”.23
Em outras palavras, há um fundamento biológico desse complexo,
o que não impede que ele seja articulado e inscrito pelo simbólico.
Observem que, aqui, o termo relação emerge, uma
relação orgânica. Se vocês pensarem no termo
relação sexual, vocês podem também defini-lo
pela suplência não a uma insuficiência vital, mas a
uma insuficiência no simbólico, pela regulação
de uma função que, por isso, se torna social. Nada temos
a objetar. O termo relação, sob a escrita de Lacan,
vem exatamente na posição que terá mais tarde, ou
seja, o de suplência de uma falta, a questão é em
quê essa suplência faz com que haja ou não haja essa
relação. Essa relação com o orgânico,
com o fundamento biológico, é uma primeira notação
que não é negada em seu conjunto.
A segunda notação é a maneira como Lacan adota ou
recusa ao mesmo tempo o instinto de morte no sentido de Freud. Aqui, a
falta do termo pulsão se faz sentir, uma vez que ele presta homenagem
ao instinto de morte como uma deslumbrante invenção de Freud,
considerada por ele como contraditória nos termos: “isso
é tão verdade que o próprio gênio, em Freud,
cede ao preconceito do biólogo o qual exige que toda tendência
se refira a um instinto. Ora, a tendência à morte, que especifica
o psiquismo do homem, se explica de maneira satisfatória pela concepção
que desenvolvemos aqui, a saber, que o complexo, unidade funcional desse
psiquismo, não responde a funções vitais, mas à
insuficiência congênita dessas funções”.24
Temos aqui, ao mesmo tempo, a adoção do instinto de morte,
mas sob o nome de tendência à morte, para lhe tirar todo
fundamento biológico.
Aqui também, é a promoção do conceito do simbólico
que permitirá a Lacan, no relatório de Roma, validar, pela
primeira vez e de modo convincente, a invenção freudiana,
remetendo-a à própria dimensão da cadeia significante.
Não vou me deter no fato de que Lacan fundamentou essas insuficiências
vitais em Bolk, na concepção da pré-maturação
específica da criança humana.
Se eu situei a tendência à morte, validada por Lacan, no
momento em que ele fala do desmame, é porque é nele que
Lacan articula a ligação entre a morte e a mãe. Tudo
o que é fantasia de morte, evocação da morte, tendência
ao suicídio – está fundamentado na clínica
e Lacan não desmentirá mais tarde –, desde que disso
se trate, é a mãe, a imago materna que vem lhe dar razão.
A mãe preside – esta é sua concepção
– a perda primitiva, a do seio. A imago materna é lembrada
ao sujeito, com uma intensidade variável, cada vez – e estes
termos não são os de Lacan, na época – que
uma perda de gozo intervém.
Para os que se interessam pela teoria das toxicomanias – não
encontrando nisso muito apoio de Lacan –, mesmo aqui ele apela à
imago materna para explicar a forma que essa toxicomania pode tomar, ou
seja, de lento envenenamento de amor: “envenenamento lento pela
boca”. São, evidentemente, os anos loucos, o ópio
dos anos vinte.
Com efeito, em todo esse texto vê-se pairar a imago materna, de
maneira kleiniana, sobre todas essas conexões com a morte. Sem
dúvida, isso faz do pai uma função de reparação,
o termo de Lacan era “uma função de sublimação”25
– ele evocará, en passant, o intra-uterino. Ele
chega até a apoiar-se no testemunho de pediatras, segundo os quais
as crianças nascidas antes do termo sofreriam de carência
afetiva, mantendo suas distâncias para com o traumatismo do nascimento.
A mãe é a deusa das carências e o pai é encarregado
de uma função positiva. Ele inclusive relaciona as neuroses
contemporâneas ao declínio da imago paterna.
Felizmente ele não manteve o termo complexo de intrusão,
que faz a segunda escansão depois do desmame. Nessas três
páginas, embora Lacan, diferentemente de Freud, nunca tenha falado
de sua análise, nessa parte do complexo de intrusão em que
são definidas com muita finura as devastações produzidas
num filho mais velho quando da chegada de um caçula, não
podemos nos impedir de pensar em sua própria constelação
familiar, no status de seu jovem irmão. Pautados nesse complexo
de intrusão, não podemos nos impedir de dar sentido ao fato
de que esse jovem irmão tenha se tornado monge.
É nesse complexo de intrusão – cuja leitura, conforme
lhes disse, é divertida – que Lacan retoma seu “Estádio
do espelho”. Quem é, nele, o objeto-imago? É
o semelhante. Por isso, na sociedade humana, o que aparece como traço
essencial é o ciúme – aqui, isso tem um valor especial,
uma vez que será o grande tema da tese de Lagache –, e a
função do ciúme como arquétipo dos sentimentos
sociais, o estádio do espelho, a competição e o acordo
são dados como os vetores, o próprio motor da sociedade
humana: competição com o rival e acordo com o igual.
Se quiséssemos esmiuçar esse complexo de intrusão
veríamos, em primeiro lugar, que ele instaurou, de modo evidente,
algo da relação imaginária com o outro; ao mesmo
tempo, veríamos também evocado, pela falta constatável,
o conceito de Outro visando a fundamentar o acordo para além da
competição. Quando, em seu Seminário, Lacan escreve
no quadro negro seu esquema L, contrapondo o eixo imaginário ao
eixo simbólico, a relação com o outro imaginário
à relação com o Outro simbólico, é
evidente que ele encontra ali a boa fórmula do complexo de intrusão.
VI – Uma retomada do complexo
de Édipo.
Em terceiro lugar, valeria também
a pena falar da maneira como Lacan dá conta do complexo de Édipo
pela fantasia de castração, apoiando-se em Frazer para sondar
a universalidade da proibição do incesto com a mãe,
e tratando o parricídio de Totem e tabu, de saída,
como um mito freudiano, um mito e uma construção destinados
a dar à imago paterna o seu valor.
É preciso ver que o fato de dizer fantasia de castração
evoca imediatamente para ele a dominância da mãe. Nessa castração,
a mãe é o fator desencadeante, a ponto de dizer que não
é a irrupção do desejo genital que motiva o Édipo,
mas, a re-atualização da imago materna primitiva
pela angústia que pode suscitar. Por isso, a castração
é a da defesa do eu narcísico diante da angústia
que re-atualiza a mãe. Isso faz com que a castração
não tenha aqui tanta especificidade quanto o fato de ser uma parcialização
das fantasias globais de corpo despedaçado. É o que está
presente nessa passagem já mencionada por mim: “o exame dessas
fantasias” – as fantasias de origem materna referidas por
Melanie Klein – “que encontramos nos sonhos e em alguns impulsos,
permite afirmar que elas não se referem a nenhum corpo real, mas
a um manequim heteróclito, a uma boneca barroca, a um troféu
de membros em que é preciso reconhecer o objeto narcísico
cuja gênese evocamos mais acima: condicionada pela precessão,
no homem, de formas imaginárias do corpo sobre o domínio
do corpo próprio”.26
O conjunto dessas fantasias é referido a essa pré-maturação
primária instalando também um valor da mãe, fazendo
do corpo, de saída, não uma imagem integrada, mas uma imagem
que se formou, de algum modo, pela sedimentação dessas formas
imaginárias que vieram preencher esse furo sem fundo representado
por essa defasagem inicial.
A castração está referida a esse corpo. A castração
tratada como uma fantasia não é senão a paralisação,
sobre uma parte especial do corpo, dessas fantasias que são fundamentalmente
sempre fantasias de deslocação ou de desmembramento.
O que é que Lacan chama, aqui, fantasia? Ele chama fantasia
o que é de fato a decomposição da boneca narcísica.
O narcisismo é o que cola essa imagem multiforme, essa imagem heterogênea.
A palavra fantasia vem denotar o momento em que, nos sonhos,
nas obsessões, nas alucinações, essa cola se dissolve
e esse corpo fica em pedaços. Por tratar a castração
como uma fantasia, a fantasia de castração é devida
à eleição de uma parte especial do corpo, em que
se concretizam a deslocação e o desmembramento: “A
fantasia de castração se reporta a esse mesmo objeto”,
ou seja, a essa boneca barroca: “sua forma não depende do
sexo do sujeito e determina, mais do que submete, as fórmulas da
tradição educativa. Ela representa a defesa oposta pelo
eu narcísico à renovação da angústia
que tende a abalá-lo: crise que não é tão
causada pela irrupção do desejo genital no sujeito quanto
pelo objeto atualizado por ele, a saber, a mãe”.27
É uma teoria da castração como estritamente imaginária
que, por isso mesmo, aparece como parcial, exceto que ela valoriza mais
a intervenção da imago paterna. Encontramos aqui, de modo
mais convincente do que nessa passagem, esta análise fundamental:
o que o Édipo freudiano valoriza é a oposição
entre a identificação e o desejo. Da identificação
edipiana percebida do lado viril, Lacan mantém que uma clivagem
se introduz entre o objeto desejado e a identificação. Por
isso, o desejo genital não é a angústia. A angústia
vem depois. O desejo genital re-atualiza a mãe como objeto fundamental
do desejo, o objeto como tal, e, em compensação, um outro
processo diferente da eleição do objeto é posto em
cena, a saber, a identificação com o que obstaculiza a realização
desse desejo, ou seja, o pai.
Portanto, aqui, com o Édipo, tal como ele o apresenta – seu
conceito de desejo é ainda um conceito alimentado, formado no imaginário
–, há irrupção de um objeto completamente diferente
que não é o objeto maior, materno, mas sim o objeto de identificação
que intervém como tal, apesar e por causa do obstáculo que
ele representa para o desejo. Introduz-se aqui, bruscamente, a imago
do pai que, em si mesma, é toda sublimação, no que
diz respeito à satisfação do desejo. Em seguida,
Lacan dará ao termo desejo uma definição bem mais
ampla. No fim das contas, poderíamos colocar o gozo, aqui,
no lugar do desejo. Ele dará a essa imago do pai o seu
lugar a partir da sublimação, dizendo justamente que se
verá surgir ali, com o pai, um tipo de objeto completamente diferente
do anterior, um tipo de objeto que não é de satisfação,
mas, para falar com propriedade, de identificação ideal.
Nesse texto, a imago paterna é muito classicamente encarregada
dessa função de idealizar e, é preciso dizê-lo,
idealizante. Aqui se prepara o Nome-do-Pai.
O valor de sua retomada do complexo de Édipo é nos fazer
passar do outro materno, mortífero, do semelhante como outro também
mortífero, ao outro sublimado presidindo o que pode haver de acordo
entre o sujeito e sua existência. Nesse ponto, a falta do conceito
de Outro se faz sentir, embora ele ali esteja evocado. “Este momento,
ao fazer surgir o objeto que sua posição situa como obstáculo
ao desejo, mostra-o aureolado da transgressão sentida como perigosa;
ele aparece ao eu como sendo ao mesmo tempo o apoio de sua defesa e o
exemplo de seu triunfo”. E eis o importante: “Por essa razão,
esse objeto vem normalmente preencher o quadro do duplo onde o eu se identificou
primeiro e através do qual ele pode ainda confundir-se com o outro”.28
Em outras palavras, é como se ele saísse do quadro e, no
lugar do que era antes o outro, o semelhante, viesse se inscrever um objeto,
aureolado, triunfante, obstáculo, sendo, ao mesmo tempo, exemplo
do triunfo. “Ao reforçar esse quadro, ele traz para o eu
uma segurança, mas, do mesmo golpe, ele lhe opõe um ideal
que, alternativamente, o exalta e o deprime. Esse momento do Édipo
dá o protótipo da sublimação, tanto pelo papel
de presença mascarada aí desempenhado pela tendência,
quanto pela forma com a qual ele reveste o objeto. Com efeito, a mesma
forma é sensível a cada crise em que se produz, para a realidade
humana” – um termo heideggeriano, tradução de
Dasein, na época –, “a condensação
cujo enigma formulamos mais acima: é essa luz da surpresa que transfigura
um objeto dissolvendo suas equivalências no sujeito e o propõe
não mais como meio para a satisfação do desejo, mas
como pólo das criações da paixão. [...]. Uma
série de funções antinômicas se constitui assim
no sujeito pelas crises maiores da realidade humana, a fim de conter as
virtualidades indefinidas de seu progresso” – conter no sentido
de continente.
Por todo esse texto, Lacan exalta o papel paterno, de modo que, na ocasião,
ele está prestes a atribuir ao desaparecimento do personagem paterno
na história de um sujeito os próprios limites de sua forma
de objetivação do mundo. E ele suspende a realização
do desenvolvimento psíquico à conclusão desse percurso
até a enigmática sublimação. Com essa condensação
cujo enigma ele formula, essa luz da surpresa que transfigura um objeto
dissolvendo suas equivalências no sujeito, e que ele propõe
como pólo das criações da paixão, na falta
do conceito de significante como transgredindo e reordenando as formas
imaginárias, não se pode dizer que Lacan dissolve o enigma:
ele, antes, o batiza como sublimação.
Por isso, a primeira parte do texto termina com o exame do status do homem
moderno em relação a essa imago, estuda a relatividade
do matriarcado e do patriarcado e, sobretudo, remete a neurose contemporânea
e também a emergência da psicanálise ao declínio
da imago paterna. Isso nos aproxima da literatura.29
Ele formula a evolução da neurose de caráter e faz
dela um tipo especial. É essa carência que, conforme à
nossa concepção do Édipo, vem exaurir o élan
instintivo assim como aferir a dialética das sublimações.
Madrinhas sinistras instaladas no berço do neurótico, a
impotência e a utopia encerram sua ambição, seja por
ele sufocar nele próprio as criações esperadas pelo
mundo onde chega, seja porque, no objeto que propõe à sua
revolta, ele desconheça seu próprio movimento.
Assina: Jacques Marie Lacan, antigo chefe de clínica na Faculdade
de Medicina. Evidentemente, não há muitos antigos chefes
de clínica da Faculdade de Medicina que se expressem assim. Não
vou me deter na parte clínica da coisa.
Não pude tratar hoje do pós-estruturalismo, mas lhes darei
a chave. O único pós-estruturalismo é o do objeto,
aquele que nos leva, “para-além do significante”, a
uma nova forma, inédita, da carência objetiva.
Tradução: Vera Avellar
Ribeiro
1Texto e notas estabelecidos por Catherine Bonningue, a partir
de duas lições de A Orientação lacaniana,
II, 3, “Respostas do real”(7 & 14 de março de 1984),
ensino pronunciado no quadro do departamento de Psicanálise de
Paris VIII. Traduzido de “Lecture critique des “complexes
familiaux” de Jacques Lacan.” La Cause freudienne
Nº 60 (Juin 2005), pp. 33-51. Agradecemos a amável autorização
do autor.
2Jacques-Alain
Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise
(Paris VIII).
3O
texto Complexos familiares, de Jacques Lacan, depois de estar
na L’Encyclopédie française, tomo VII (março
de 1938), foi objeto de uma primeira publicação, em 1984,
pela Navarin, e posteriormente inserido em Autres écrits,
Paris, Le Seuil, 2001, (p. 23-84).
4Lacan,
J. (1998). Para-além do “Princípio de realidade”.
In Escritos (pp. 77-95). Rio de Janeiro: J. Zahar. (Texto de
1936).
5Lacan,
J. (2001). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu.
In Autres écrits (p. 23). Paris: Seuil: “A espécie
humana caracteriza-se por um desenvolvimento singular das relações
sociais, que sustentam capacidades excepcionais de comunicação
mental, e, correlativamente, por uma economia paradoxal dos instintos
que aí se mostram essencialmente suscetíveis de conversão
e de inversão, não tendo mais efeito isolável senão
de modo esporádico”.
6Lévi-Strauss,
C. – Les Structures élémentaires de la parenté,
Paris/ La Haye, Mouton et Cie., 1967 ( 1ª. Dic. 1949)
7Lacan,
J. (2001). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu
(p. 24). Op.cit.
8Idem,
ibid (pp. 28-29). “O conceito de complexo, embora recentemente
introduzido” – por Freud – “demonstra-se melhor
adaptado a objetos mais ricos; por essa razão, repudiando o apoio
que o inventor do complexo acreditava dever buscar no conceito clássico
de instinto, acreditamos que, por uma reversão teórica,
é o instinto que poderia ser esclarecido, atualmente, por sua referência
ao complexo”.
9Idem,
ibid
10Cf.
o início da lição de 7 de março não
reproduzida aqui.
11ibid
12ibid
13Freud,
S. (1969). Pour introduire le narcissisme. La vie sexuelle (pp.
81-105). Paris: PUF. (Texto de 1914).
14Freud,
S. (1981). Le moi et le ça. In Essais de psychanalyse
(pp. 230-275). Paris: Payot, col. Petite bibliothèque. (Texto de1923).
15Lacan,
J. (1998). O estádio do espelho como formador da função
do eu, tal como ela nos é revelada na experiência psicanalítica.
In Escritos (pp. 96 – 103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Texto de1949).
16Lacan,
J. (2001). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu
(p. 28). Op.cit.
17Cf.
a lição de 8 de fevereiro de 1984.
18Miller,
J.-A. (2002). Action de la structure. In Un debut dans la vie
(pp. 57-85). Paris: Gallimard, Le Promeneur.
19Lacan,
J. (2001). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu
(p. 28). Op.cit.
20Idem,
ibid
21Lacan,
J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose.In Escritos (pp. 560-561).Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Texto de 1958).
22Lacan,
J. (2001). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu.
(p p. 30-36). Op.cit.
23Idem,
ibid (pp. 34-35).
24Idem,
ibid (p. 35).
25Idem,
ibid (p. 55).
26Idem,
ibid (pp. 52-53).
27Idem,
ibid (p. 53).
28Idem,
ibid (p. 55).
29Idem,
ibid. (pp. 60-61): “O papel da imago do pai se deixa perceber
de maneira surpreendente na formação da maioria dos grandes
homens. Seu brilho literário e moral na era clássica do
progresso, de Corneille a Proudhon, vale ser notado; e os ideólogos
que, no século XIX, criticaram da maneira mais subversiva a família
paternalista, não são aqueles que portam sua menor marca.
Não somos como os que se afligem por um pretenso afrouxamento do
laço familiar. (...) Mas um grande número de efeitos psicológicos
nos parece decorrer de um declínio social da imago paterna. Declínio
condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos
do progresso social, declínio que se marca sobretudo nos dias de
hoje nas coletividades mais postas à prova por esses efeitos: concentração
econômica, catástrofes políticas. [...] Seja qual
for o seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica.
Talvez se deva referir a essa crise o aparecimento da própria psicanálise.
O sublime acaso do gênio talvez não explique sozinho que
tenha sido em Viena – na época, centro de um estado que era
o melting-pot das formas familiares as mais diversas, das mais
arcaicas às mais evoluídas, dos últimos agrupamentos
agnáticos dos camponeses eslavos às formas mais reduzidas
do lar pequeno burguês e às formas mais decadentes do casal
instável, passando pelos paternalismos feudais e mercantis –
que um filho do patriarca judeu tenha imaginado o complexo de Édipo.
Seja como for, são as formas de neuroses dominantes no final do
século que revelaram que eram intimamente dependentes das condições
da família”.
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