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Ken
Park – O desamparo, para além da angústia de castração1 Não tão divertido de se ver, Ken Park, de Larry Clark e Ed Lachman,
como dizia o comentário do Jornal Estado
de Minas de 26 de março de 2004, é dolorosamente didático. Ao comentar
o filme, juntamente com um crítico de cinema, na Associação Mineira de
Psiquiatria, fui surpreendida pela divergência dos demais comentários:
para o referido crítico o filme estava abaixo de zero, era esteticamente
nulo. Para um professor universitário que viera vê-lo pela segunda vez
com seus alunos, o filme era genial. Pois bem, após uma certa dose de
mal-estar, provocada na primeira vez que o vi, pude revê-lo e comentá-lo,
pensando que tinha a ver com o tema das nossas jornadas de fim de ano:
os jovens e a Psicanálise. Assim
como faz uma obra de arte, a dureza da narrativa, feita por um dos personagens
e a crueza das imagens, mostra algo que nos convoca a falar, convidando-nos
a tirar daí algumas lições para a leitura do mundo em que vivemos. O que
o filme mostra, de maneira muito clara e impactante, através de um recorte
feito nos USA – United Symptoms, como dizia um psicanalista francês –
é o efeito, no mundo contemporâneo, do declínio da função paterna e da
degradação da função fálica. Ao ler o comentário de Jacques-Alain Miller
sobre o Seminário da Angústia
de Lacan, recém estabelecido por ele, não pude deixar de pensar no filme,
que mostra um falo mortificado, reduzido à sua função de órgão, e coloca
em evidência um corpo que goza, uma máquina em funcionamento, com seus
objetos e órgãos, muito mais do que uma imagem. Os
personagens, desde os avós idosos, alienados em seu amor, até a garotinha,
que assiste a um vídeo erótico enquanto sua mãe transa com o namorado
da filha mais velha, mostram o declínio dessa função que, nas palavras
de Jacques Lacan, articula o desejo e a lei3 . Comecemos
pelo exemplo mais dramático, cruel, da ausência dessa função que viria
compensar um excesso de amor, encarnado na avó, que tudo faz e permite
ao neto, desculpando suas agressões e grosserias. O rapaz, delirante,
encarna um exemplo do adolescente invadido pelo gozo, sem nenhum limite
colocado pelo Outro. O gozo do Outro, encarnado no avô que trapaceia no
jogo das palavras cruzadas, é para ele insuportável. Ele tem que matar
o avô, por ter trapaceado e a avó, por cuidar dele de maneira invasiva.
Tate encarna, no filme, a figura do personagem delirante, que não dispõe
de nenhum instrumento que limite o gozo invasivo do Outro. Dois
garotos e uma garota, seus amigos, protagonizam os adolescentes que, dispondo
da função fálica para localizar o gozo como gozo sexual, precisam, no
entanto, recorrer a artifícios perversos para escapar à desorientação
de seus pais. A garota, apresentada como submetida a um pai religiosamente
louco, perversamente enlutado de sua mãe, torna-se, na parceria sexual,
a agente de uma cena sado-masoquista onde faz gozar o namorado, enquanto
o pai conversa com a mãe morta no cemitério. Apanhada em flagrante, pois
fazia tudo debaixo do nariz do pai, ela se vê forçada a um “casamento”
bizarro, numa cerimônia incestuosa encenada pelo pai. Tudo para continuar
realizando, com os amigos, suas fantasias de um gozo sem limites. Esta
parceria com seu pai mostra bem que a lei arbitrária de um pai fanático
não é a lei que permite que o gozo condescenda ao desejo. Um
dos garotos, Claude, é um rapaz feminino, filho de um pai alcoólatra,
desempregado e violento, que nutre por ele um desprezo que esconde mal,
igualmente, um desejo incestuoso. Claude se refugia nas drogas para escapar
a esse pai que passa ao ato, ao tentar se aproximar do filho, seja pela
violência, seja pelo erotismo. Claude acaba, como sua amiga, no ménage-à-trois
final, realizando a fantasia do sexo sem limites e sem fim. O
outro garoto é o próprio narrador do filme, jovem que abusa do irmão mais
novo e se faz usar pela mãe da namorada como instrumento de gozo. Shawn
é o protagonista, ao mesmo tempo dócil e trapaceador, mas sempre escravo
do gozo. Ele quer a todo preço fazer gozar o Outro e, na falta de um limite,
tenta contabilizá-lo: “quantas vezes você gozou?”, pergunta ele à mãe
de sua namorada, que o leva para sua cama, incólume em sua beleza de silicone.
Isso não a impede de convidá-lo para o almoço dominical, onde ele se senta
à mesa entre sua namorada e o pai dela, marido de sua amante. Finalmente, falemos de Ken Park,
protagonista que dá nome ao filme. Na cena inicial ele se mata, no meio
do campo de skate, filmado por uma máquina armada por ele, que convoca
assim o olhar do Outro. Esta cena é resignificada pela cena final, na
qual ficamos sabendo que Ken havia engravidado sua namorada. Ao recusar-se
a fazer um aborto, ela lhe pergunta: “você gostaria de ter sido abortado
por sua mãe?” Sua resposta, em ato,
é o suicídio, sob o olhar do Outro: um aborto dele mesmo enquanto pai.
Diante da falta
de recursos para sustentar a função de pai, quando aí convocado, Ken decide
a questão: “ou ele ou eu”. O
filme, uma metonímia do suicídio de Ken Park, convoca o nosso olhar sobre
um mundo onde a desorientação dos pais produz filhos desamparados. No
momento do encontro com o sexo, não há angústia de castração, porque não
há ninguém para encarnar sua ameaça. Ao contrário, o que ameaça e exige
um tratamento é o gozo em excesso, que se apresenta nas mais variadas
figuras. A função fálica, degradada, aparece no falo reduzido a um órgão,
seja na masturbação frenética de Tate, seja na função excretória do pai
alcoólatra. É um filme no qual o imperativo de gozo do supereu está em
todo lugar, e a única maneira de tratá-lo, para os jovens falicamente
orientados, é tentando fazer existir a relação sexual, numa bela cena
onde fazem amor e se falam, com a fantasia de que a vida pudesse se resumir
a uma relação sexual sem fim. O
que vem tratar o desamparo dos personagens é a narrativa e a oferta, ao
Outro que somos nós, das cenas que mostram a morte ou o corpo como uma
máquina de gozo. Assim como, para Sade, foi necessário escrever, para
Shawn foi necessário contar a história de Ken Park. A única saída, na
ausência de uma lei que regule e garanta, é que cada um seja responsável
por seu gozo, para que ele condescenda ao desejo e à vida. No entanto,
diferentemente do personagem do filme Cidade de Deus, que filma a tragédia e com isso consegue ficar fora
dela, Shawn é ao mesmo tempo o narrador e o protagonista, deixando-nos
uma questão: que saída encontrarão esses jovens que se apresentam para-além
da angústia de castração?4 Através
de Shawn, os diretores do filme se endereçam a nós, tornando-nos, de alguma
maneira, responsáveis por tirar conseqüências do que aqui testemunhamos.
Se a civilização hipermoderna, como propõe Jacques-Alain Miller, é aquela
em que o objeto a está no auge, observamos em Ken Park que os jovens são reduzidos
ao estatuto de objetos incestuosos para seus pais, assolados pelo imperativo
de gozar: o tema do incesto se repete em série para Claude, Shawn e sua
amiga, todos objetos de um desejo incestuoso de uma figura paterna ou
materna desregulada. Seria esse o perigo que os jovens enfrentam no mundo
de hoje? Tornarem-se corpos-máquinas, corpos-objetos de gozo para o Outro? Em
que estaria a Psicanálise aí concernida? Ela se apresenta como uma possibilidade,
para os jovens, de encontrar uma outra espécie de desejo, o desejo do
analista, e uma outra espécie de amor, o amor de transferência. 1Apresentado nas Jornadas clínicas “Os jovens e
a psicanálise” da EBP-MG, 2004. |