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Introduzindo o Sintoma1 Resumo: Se nossos pacientes contemporâneos não mais se apresentam com sintomas
ou desejo de análise, devemos voltar nossos olhos para as sessões preliminares
a fim de retificar o problema e introduzir um sintoma analítico. A retificação
é portanto o aspecto que Thomas Svolos discute cuidadosamente neste artigo
considerando-a tão importante na prática lacaniana quanto a interpretação
e a construção. Palavras-Chave: Sessões preliminares; sintoma; retificação subjetiva. Abstract: If our contemporary patients no longer present symptoms or desire for analysis, we need to be more concerned with the preliminary sessions to rectify the problem and introduce an analytical symptom. Rectification is, therefore, the aspect Thomas Svolos discusses thoroughly in this paper giving as much importance to it in Lacanian practice as to interpretation and construction. Keywords: Preliminary sessions; symptom;
subject rectification. Eu gostaria de iniciar
tratando da retificação. A retificação – incidentalmente a mesma palavra
em inglês e em francês, com todas as mesmas conotações, é o que melhor
posso dizer – é um conceito brevemente utilizado na obra de Lacan. Certamente
há muitos desses, mas o curioso sobre a retificação é que Lacan dá a ela
um privilégio especial em “A direção do tratamento e os princípios e seu
poder”, um dos seus poucos escritos que lida, de forma mais explícita,
com a técnica psicanalítica. Em “A direção do tratamento”, Lacan oferece
um tratamento psicanalítico esquemático, um esquema traçado a partir de
suas leituras atentas dos casos clínicos de Freud, nos quais a psicanálise
tem três estágios lógicos – retificação da relação do sujeito com a realidade,
desenvolvimento da transferência e, então, a interpretação3.
Eu gostaria de chamar atenção para a retificação no que – em contraste
com as discussões mais freqüentes da teoria do final de análise – a retificação
é um conceito precisamente introduzido por Lacan em relação ao começo
da análise, e que tem, como veremos, uma relação especial com o sintoma
– aqui o sintoma psicanalítico, é claro, e não as simples repetições fenomenológicas
da psiquiatria. O termo retificação refere-se à técnica particular identificada por Lacan no caso Dora e no caso do Homem dos Ratos. Com relação ao primeiro, é a famosa reversão dialética pela qual Freud leva Dora a perceber que ela não era uma inocente vítima lançada em uma terrível posição devido a variadas forças malévolas do mundo (a posição que Lacan caracteriza mais tarde como a “Bela alma” da Fenomenologia de Hegel), mas que, ao contrário, ela de fato orquestrara, através de sua “conivência”, a própria situação sobre a qual sua queixa ressoava4. Com referência ao segundo caso, é a intervenção de Freud numa rápida leitura da realidade psíquica do Homem dos Ratos – baseada numa série de fatos relativos às condições do casamento de seus pais, ao papel crucial do dinheiro e da dívida, o abrir mão de um verdadeiro amor - uma intervenção na qual Freud re-posiciona os vários impasses e dificuldades do Homem dos Ratos e suas obsessões muito floreadas no contexto de sua relação com o seu pai, e de sua crença a respeito da desaprovação por parte do pai do casamento desejado, uma intervenção ainda mais notável, pois – uma vez que funcionava em análise – não era, no entanto, uma inverdade, visto que seu pai não era vivo na época em que essa afirmativa lhe foi imputada5. Em um artigo anterior, apresentado ano passado na Conferência da APW, comuniquei algumas idéias sobre a técnica nas quais afirmei – seguindo uma distinção evocada anteriormente por Jacques-Alain Miller – que enquanto é trabalho do analisando fornecer interpretações – dar sentido às variadas formações inconscientes que evoluem no curso do nosso trabalho –, é nosso trabalho, como analistas, fornecer uma construção da fantasia fundamental6. A esse delineamento sobre a técnica – tanto no nível lógico como no de agenciamento dentro do tratamento – a esse delineamento de duas intervenções diferentes, acredito que devemos acrescentar outra, um terceiro nível de intervenção, que Lacan articula como retificação, e que eu também apontaria claramente como sendo trabalho do analista. Um apontamento que elaborarei aqui, felizmente menos nas bases de um saber prescritivo do que de um saber fazer joyceano, que podemos aplicar em nosso trabalho. Analistas não interpretam, mas fornecem retificação – para iniciar o tratamento – e construção – para iniciar o final do tratamento. A questão sobre a retificação é que ela evoca nada menos do que uma intervenção psicanalítica “selvagem”, o mesmo tipo de intervenção “brusca” com relação à qual Freud expressou suas reservas7. Uma leitura atenta dos textos revela, no entanto, que essas intervenções técnicas particulares de Freud – embora certamente bruscas e decisivas – têm menos a ver com a construção de sentido do que com uma certa quebra de sentido na forma de representações solidificadas do eu e do objeto, inerentes ao analisando, na ocasião, uma forma de intervenção destrutiva e desestabilizadora na qual podemos ver algo da elucidação da subjetividade inerente nos casos – um ponto que modificarei mais adiante. Freqüentemente, isso é compreendido, é claro, nos termos dos meios pelos quais a retificação abre os caminhos nos quais a subjetividade do analisando está implicada – podemos até dizer de forma causal – justamente nas situações que eram apresentadas inicialmente como externas a eles. A referência padrão, aqui, é o esquema L, no qual podemos dizer que o discurso analítico quebra uma certa moldura imaginária de referência com seu foco no eu e no objeto, em direção à referência da moldura simbólica mais ampla, com uma ênfase redirecionada ao desejo inconsciente em jogo no sujeito e o ponto de referência desse desejo, o Grande Outro – a moldura simbólica na qual o sujeito é aprisionado. Lacan, certamente, é bastante explícito em sua teorização com referência ao caso do Homem dos Ratos, no qual sua leitura do caso demonstra como o desejo inconsciente do Homem dos Ratos – leia-se: subjetividade – está conectado cuidadosamente a uma série de eventos relacionados à vida de seus pais, ao noivado, às decisões matrimoniais e às decisões profissionais – todas elas compondo a tela de fundo simbólica, o Outro, com relação ao qual sua vida era consciente e inconscientemente articulada8. Observa-se, aqui, que um aspecto interessante na perspectiva da técnica é a valorização de Lacan de intervenções mais explícitas – que ele descreve como “mânticas” pelo impacto – muito cedo no tratamento, em contraste com as intervenções mais tradicionais e austeras de escansão e pontuação consideradas como críticas nas sessões preliminares, essas sessões iniciais nas quais o analista e o potencial analisando estão explorando a possibilidade de engajamento na análise9. Essas retificações mânticas são valiosas para estabelecer a análise, re-configurando o laço social entre analisando e analista como discurso analítico? Argumento que são, em muitos casos e, de fato, temos evidências de que o próprio Lacan empregou intervenções com essa precisão algumas vezes. Na discussão clínica de Stijin Vanheule do trabalho com analisandos com queixas neurótico depressivas, ele discute vários relatos autobiográficos de analisandos de Lacan10 . Além de enfatizar a escuta atenta de Lacan, os analisandos enfatizaram intervenções da parte de Lacan – esses pronunciamentos mânticos – que, como os de Freud, não representam interpretações em si, mas, ao contrário, uma intervenção – que eu acredito devermos chamar, teorizar, e propriamente ressaltar como retificação – que leva a uma mudança, nesses casos, de saída das queixas vagas, pobremente definidas da depressão – a depressão fácil, ingênua e atualmente ubíqua do DSM – em direção ao que Vanheule descreve como uma relação do sujeito com o Outro. Eu pretendo retornar ao artigo de Vanheule. Essa teorização da retificação contra um pano de fundo imaginário e simbólico – extraindo a dimensão simbólica do sujeito e do Outro das representações imaginárias do eu e do objeto (atentando tanto às queixas em si como à relação, no tratamento, entre analisando e analista) – é, de fato, valiosa para nosso trabalho clínico, mas Lacan acrescenta-lhe uma outra dimensão. Em “A direção do tratamento”, ele afirma, com relação à retificação, que “Freud começa pela introdução do paciente a uma situação inicial de sua posição na realidade, mesmo se essa situação leva a uma precipitação – eu iria ainda mais longe para dizer uma sistematização – dos sintomas”. Portanto, vemos aqui, já em 1958, uma relação – no caso, mais em termos de uma fenomenologia clínica – entre retificação e sintomas, aquela que reconhece talvez a tão mencionada experiência clínica da psicanálise ou mesmo, às vezes, a psicoterapia em que, freqüentemente, os sintomas pioram no estabelecimento do tratamento. Então, vemos aqui uma ligação entre retificação e sintoma, que podemos ler a partir dessa abertura do imaginário ao simbólico. O que gostaríamos de fazer, no entanto, é ler nessa observação inicial os desenvolvimentos posteriores de Lacan e Jacques-Alain Miller e estabelecer que a retificação não é a da relação do Sujeito com a realidade – o real –, como foi traduzido para o inglês em termos do uso que Lacan fez do real nos anos 50 –, mas, ao contrário, afirmar que a retificação diz respeito à relação do sujeito com o real, essa terceira ordem que ganha proeminência na trabalho posterior de Lacan, em contraste com as do simbólico e imaginário. [Assim, se o imaginário refere-se a essas relações entre o eu e o objeto e ao domínio do sentido, e o simbólico – em parte – à estrutura diferencialmente definida da linguagem que, assim como o Outro, fornece o universo significante no qual o sujeito fala, o que é então esse real? Para colocar da forma mais simples, apeíron, o termo pré-socrático usado por Anaximandro e definido de forma variada como sem fronteiras, infinito, complexo, o-que-não-se-pode-lidar, ou incomensurável11. Lacan ilustra o real de forma variada, como o que está fora da linguagem e da ordem simbólica, como “absolutamente resistente à simbolização”, e como “impossível” de saber, dar sentido, alcançar; mas, às vezes, como algo que, a despeito disso, ex-siste (talvez uma forma curiosa de baixar o chapéu para Anaximandro), um tipo de Coisa noumenal kantiana, que deve ser suposta existir, que é o objeto último da angústia e que – através de nossos desencontros – é a própria fonte do trauma12. Neste ponto, a grande descoberta de Lacan, o objeto a, nos é particularmente importante. Esse objeto real – leia-se: inescrutável – difere dos objetos parciais psicanalíticos, uma vez que ele não é um objeto no sentido tradicional – um objeto imaginário, separado, conhecível -, como o seio, as fezes, o olhar, a voz, mas, antes, um objeto real causa de desejo, um resto real, um resíduo deixado quando o sujeito, como ser falante, submete-se, entra no que Lacan define como “o desfiladeiro dos significantes”, a ordem simbólica, um resíduo da castração, poderíamos dizer. É uma elaboração posterior à noção freudiana relativa ao objeto primordialmente perdido, que Lacan transpõe – peço desculpas por resumir bastante esta parte – para uma série de momentos: em primeiro lugar, a perda da vida “imortal” e “indestrutível” que prescinde de órgãos – a própria libido -, que nós, como seres vivos, perdemos ao sermos submetidos à reprodução sexuada: não podemos reproduzir-nos indefinidamente. Isso é o que Lacan evoca em um mito – substituindo o do ser original dividido em busca de sua outra metade, o mito de Aristófanes em O banquete, ainda muito vívido nos dias de hoje -, o mito da lamela, algo como um pedaço de uma fina membrana retirada do ovo, uma tentativa de representar essa perda de pura vida através de um novo mito13 (Curiosamente, gostaria de observar, não foi este mito que recebeu um tratamento mais melodramático pelo conhecido J. R. R. Tolkien em sua grande história, exatamente na passagem da Idade dos Gnomos (imortais) para a Idade do Homem, em que é interessante notar o curioso caráter sem vida e cadavérico – e não sei o quanto isso é intencional – dos Gnomos imortais, captando, de algum modo, a relação da libido com a pulsão de morte?) Bem, de todo modo, essa perda do real, é retomada, por assim dizer, em toda uma série de outras perdas, momentos menos obscuros, do próprio nascimento ao complexo de desmame (a perda do seio, tão importante para os kleinianos), à perda das fezes e à perda mais crucial, a que é assumida pelo ser falante ao suportar e assumir a mortificação do corpo resultante de nossa entrada na linguagem e na ordem simbólica. Todavia, esse processo de simbolização não é completo – o domínio do ego, a linguagem, o corpo, o Outro -, é sempre mal conhecido, e o sintoma oferece o ponto de acesso particularmente psicanalítico para o objeto a, resto ou fracasso desse processo. Assim, a retificação representa – para reler a afirmação de Lacan, acima citada – “situar a posição do analisando” não na “realidade”, mas sim “no real”, através da “precipitação do sintoma”. Situar a posição do analisando no real é a exata razão pela qual escolhi um trabalho de Francis Bacon para o poster dessa Conferência, uma vez que o retrato de Bacon reproduz nada menos do que um retrato sintomático, não se trata do retrato de um indivíduo em relação à sua sintomática tela de fundo ou ao Outro, mas, antes, o sujeito – diante de um Outro, a tela de fundo, que certamente não existe – como real e distorcido através do sintoma, um sujeito no qual a anamorfose não é uma simples trivialidade no retrato, tal como na tela “Os embaixadores”de Hans Holbein o Jovem, mas foi generalizada para o próprio sujeito. Para esboçar aqui uma conclusão lógica posterior: sem a precipitação, ou talvez mesmo a introdução do sintoma, uma análise não se desenvolverá, a transferência não se estabelecerá nem tampouco a possibilidade de interpretação . O sintoma é a real e necessária condição para que a análise prossiga, pois, sem alguma abordagem do real através do próprio tratamento, o real só continuará aparecendo em suas formas disfarçadas – a análise deve tocar o real. Essa distinção feita aqui entre retificação e outras intervenções – tal como a interpretação – redunda, na técnica, em uma importante distinção lógica ou teórica explorada por Miller: a distinção do sintoma de outras formações inconscientes (sonhos, lapsos, atos falhos, e assim por diante). Em “Sigma(X)”—originalmente publicado nos Atos da Escola de 1987, atualmente acessível através da tradução de Dan Collin no jornal eletrônico apropriadamente chamado “The Symptom”–Miller alude a um valiosa distinção rompendo a série de formações inconscientes que usualmente incluem o sintoma14. Enquanto a direção do tratamento orientada pelas formações do inconsciente permite-nos abordar o inconsciente como o Outro simbólico – o locus para o qual as formações se endereçam como lugar de garantia de seu significado, o próprio processo que vemos articulado na interpretação em nosso trabalho clínico – , o sintoma, pelo contrário, não nos permite isso. Através do sintoma, o Outro é posto em questão – talvez como uma estrutura imaginária – e o sujeito é deixado apenas com a existência não do Outro, mas do próprio sintoma. Vemos isso constantemente no trabalho clínico: um paciente – em relação a sonhos ou a atos falhos – associará, interpretará e elaborará um ou outro significado, alguma referência ao passado, à sua história e aos vários determinantes simbólicos de sua realidade, juntando, com freqüência, alguma formulação que parece apoiar alguma suposição do mundo lá fora, passada ou presente, na qual ele se encontra. Esse é o trabalho interpretativo atuando, estabelecendo um significado imaginário para o Outro simbólico, quase sempre uma estrutura razoavelmente estável. Mas, com o sintoma, esse tipo de trabalho associativo e interpretativo do analisando é muito mais hesitante, incerto, intermitente. Alguma formulação pode ser alcançada apenas para ser descartada e substituída por outra. Nunca um significado do sintoma lhe parece estável, e o Outro lá de fora é, de fato, posto em questão, com freqüência naquele exato ponto em que o sujeito sente que seu sintoma é, na realidade, a única coisa “real” ou a única coisa que define sua existência. Esse tipo de afirmação é quase sempre articulado quando o analisando está no divã. E essa sensação sintomática – um significado estabelecido, depois desfeito e reformulado, como um retorno sem limite ( para recapitular Anaximandro) a alguma coisa enigmática – não se limita ao consultório ou a elaborações no contexto clínico, é o que a repetitiva fascinação sintomática e a incessante pesquisa do texto de Hamlet por Freud testemunham, assim como, e em especial, quanto ao Moisés de Michelangelo, indicativo – em seu caso – de um fracasso da mestria na aplicação de seu modelo edípico a essas obras de arte (Freud não prestou atenção no alerta segundo o qual é a obra de arte que interpreta, não o próprio Freud; um outro exemplo do que chamei, em outro momento, um escorregão de Freud, da psicanálise para o freudismo15). Luke Thurston descreve o relacionamento de Freud com a arte de maneira muito elegante, no segundo capítulo de sua nova monografia: James Joyce and the Problem of Psychoanalysis16. Então, não apenas o sintoma deve ser distinguido das outras formações inconscientes, mas também a saída técnica relativa ao sintoma – a retificação - deve ser distinguida daquela relativa a outras formações inconscientes, que necessita, em minha opinião, do abandono de um certo tipo de “timidez inicial”, que Lacan afirma ser uma característica freqüente nos estágios iniciais do tratamento para muitos analistas, e que podemos observar nos dias de hoje – este é outro ponto ao qual quero retornar. Assim, podemos observar que o modo como situamos o sintoma no que concerne ao real – o objeto a –, em contraste com o modo de situar as outras formações inconscientes em relação ao grande Outro, está ligado a um certo tipo de questão técnica. Quero abordar agora, um
outro modo de situar o sintoma, um outro modo de trazer à tona sua importância
psicanalítica e sua posição central na Direção do Tratamento. Tomarei
como referência, aqui, a famosa matriz criada por Lacan no Seminário X,
a fim de esclarecer a relação entre o que podemos descrever inicialmente
como formas de sofrimento psicológico – inibição, sintoma e angústia,
renomadamente reunidos por Freud em um trabalho epônimo -, matriz notável
e que se encontra entre os trabalhos destinados às suas difundidas apresentações17.
Na tentativa de delinear as três formas, Lacan introduz a matriz – uma
grade – com dois vetores que se expandem a partir do canto superior esquerdo.
Lacan designa o eixo x (da esquerda para a direita) como indicativo de
uma crescente dificuldade, e o eixo y (de cima para baixo) como indicativo
de um aumento de movimento. Ele, então, situa nove formas de sofrimento,
tal como indicado abaixo:
Com esse pano de fundo teórico no lugar, podemos então reformular as distinções aparentemente fenomenológicas de maneira mais precisa, na qual cada uma dessas formas de sofrimento articula uma relação do sujeito com o objeto a, o real, e com o Outro. Elas referem diferentes gradações, por assim dizer, da presença do real e do Outro simbólico. Portanto, essa distinção tem enormes conseqüências clínicas. Tal como Lacan faz referência na parte final do Seminário X, e que foi posteriormente elaborado por Stijn Vanheule, essas posições de sofrimento são válidas por nos permitirem conceituar algumas questões técnicas das sessões preliminares do tratamento analítico. Por exemplo, Vanheule comenta, em particular, a importância das três posições: inibição, emoção e comoção nas queixas dos que buscam ajuda, nos dias de hoje, para o que é mais freqüentemente identificado como depressão. Ele observa que, com esse grupo de pacientes (ao qual se refere como neuroticamente deprimidos em contraste com a depressão psicótica, ou com os melancólicos), nossa tarefa mais crucial é revitalizar não apenas o sujeito deprimido, mas também o Outro deprimido. Esse desengajamento entre o sujeito e o Outro simbólico – caracterizado na grade pelo baixo grau de dificuldade ou de integração entre o sujeito e o Outro – requer certas intervenções a fim de que aumente, por assim dizer, o nível de dificuldade, intervenções tais como a escuta cuidadosa e atenta dos significantes do discurso do analisando, e intervenções mânticas que movimentam o sofrimento para o centro da grade – penso valer a pena continuar identificando-as como mânticas, pois elas nomeiam, significam o sofrimento e estão aptas para elevá-lo ao status de sintoma. Esse movimento crucial – que nomeei acima como retificação, e não interpretação (Vanheule usa o último termo, não identificando, aqui, a distinção que me parece capital) – é o que põe a análise em movimento. É importante notar que o próprio Lacan, posteriormente, dá a essa técnica, a retificação, um outro nome: histericização, referindo-se em particular ao trabalho com neuróticos obsessivos (quase sempre propensos, entre os neuróticos, a situar fenomenologicamente seu sofrimento na inibição). A histericização é assim promulgada a ser o ponto essencial no estabelecimento do discurso analítico18. Acho isto incompleto, pois falha em registrar de modo apropriado o fato de que o sofrimento dos histéricos muito freqüentemente não está alinhado em conformidade com os termos do sintoma (o Caso Dora, de Freud, exemplifica bem o fato de que um certo posicionamento técnico é quase sempre necessário no caso da histeria). Em outras palavras, retomando a matriz, um paciente de estrutura neurótica histérica pode também se apresentar com uma forma de sofrimento diferente do sintoma. De fato, o acting out, a angústia, ou mesmo o embaraço não são as formas de sofrimento mais freqüentemente definidas pelo histérico, que conduz o analista, no início do tratamento, a um conjunto diferente de imperativos – o uso de menos simbolização ou de outras intervenções –, e mesmo a escora de estruturas imaginárias e o estabelecimento de algum significado (não é exatamente esse o movimento de Freud no caso Dora?), para temperar um real esmagador ou separar do Outro simbólico. Mais adiante, gostaria de hipotetizar que é exatamente a retificação e a progressão da análise, nas primeiras sessões, que podem formar uma outra tela de fundo, com a qual formular todas as questões associadas ao manejo do que é atualmente chamado Sintomas Contemporâneos: os distúrbios alimentares, a tatuagem, o uso de drogas, a depressão, assim como outros fenômenos que observamos mais amiúde. Muito tem sido feito quanto aos desafios à psicanálise representados por pacientes com essas formas de sofrimento – os pós-freudianos vêem isso como uma necessidade de se afastar da psicanálise “clássica”, tal como Kernberg e seus borderlines19 , ou o curioso trabalho de Fonagy e seus colegas sobre afeto20. Na literatura lacaniana, temos, é claro, a teorização que parece ter evoluído em grande parte do trabalho de Miller em “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, particularmente a noção de declínio das identificações verticais e o aumento das identificações horizontais em estruturas sociais capitais, assim como a substituição do Ideal pelo objeto a como o ponto de estofo do discurso social21. No que concerne à questão dos sintomas contemporâneos, um ponto interessante a ser notado, em algumas dessas discussões teóricas, é a evocação de uma espécie de mundo primitivo da psicanálise quando esses problemas não existiam, quando a psicanálise se confrontava com a histeria e seus sintomas, ou, ocasionalmente, com o desafiante obsessivo. E essa mesma imagem – que penso podermos chamar nostálgica – traz à mente outros tempos nos quais a psicanálise parecia fracassar, tal como nos debates dos anos 20 e 30 sobre as inadequações da psicanálise (digo, em termos de reação terapêutica negativa em contraste com a Idade de Outro); ou os debates dos anos 60, na IPA, sobre o final da histeria, uma vez que não mais existiam pacientes com sintomas de conversão. Essa nostalgia, eu objetaria, dificilmente pode ser considerada como uma reflexão acurada do passado, pois Freud lutou – o que é facilmente esquecido em tais argumentos – para colocar seus analisandos em análise, o que é testemunhado por seus comentários em “Análise terminável e interminável”, e por suas cartas sobre a dificuldade enfrentada quanto ao fato de manter seus pacientes em análise, no início de sua carreira ( e até mesmo sobre a verdadeira proliferação de sintomas aparentemente “contemporâneos”, em alguns dos seus primeiros relatos de caso)22. De fato, ele lutava com o que chamo retificação. E, enquanto a clássica conversão histérica tornou-se muito menos proeminente (tal como Girard Wajcman argumentou de modo tão amplo e elegante, uma vez que o paciente histérico não mais se apresenta aos neurologistas, mas sim aos psiquiatras23), o fato é que a presença do sintoma – essa forma alusiva de sofrimento – não é algo inerente ao próprio sujeito em sofrimento, mas sim algo criado, em certo sentido, através do processo analítico com a contribuição do analista. E, se nossos analisandos contemporâneos não mais se apresentam com sintomas ou desejo de análise, devemos voltar nossos olhos para as sessões preliminares com tais pacientes a fim de retificar o problema. Tradução:
Vera Avellar Ribeiro 1Trabalho preparado para a Sixth Annual
Conference of Affiliated Psychoanalytic Workgroups, “Working with the
Symptom,” 24 a 26 de setembro de 2004, Omaha, Nebraska. |