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sessão lógica: extrair o tempo de sua duração1 Resumo: Neste texto Jésus Santiago desenvolve uma reflexão sobre os fundamentos da questão temporal e suas implicações clínicas. A estrutura significante, da qual o tempo é efeito, determina a posição subjetiva da espera e o gozo da procrastinação do saber; isso exige, do lado do analista, a modulação temporal da urgência, que intervém como suspensão do gozo e leva o sujeito a dar uma nova resposta a pulsão. Palavras-chave: Tempo lógico; sessão clínica; gozo e saber. Abstract: In this paper Jésus Santiago develops some reflections on the fundaments of temporal issue and their clinical implications. The signifying structure, which has effects on time, determines the subjective position of expectation and the jouissance of procrastinating the instance of knowing. That process requires from the analyst the time modulation of the urge, which intervenes as suspension of the jouissance and compels the analysand to produce a new reply to the drive. Keywords: Logic time; clinical session; jouissance and knowledge Basta citar o exemplo da sessão analítica, para que se evidencie a aplicabilidade clínica da estrutura ideal do sofisma lacaniano, sobretudo a lógica que impera na solução, qualificada como perfeita, do problema proposto aos três prisioneiros. Se “O tempo lógico e a asserção da certeza subjetiva”3 apresenta uma reflexão, de cunho especulativo, sobre os fundamentos da questão temporal, pode-se afirmar que esta se coloca inteiramente a serviço de suas implicações clínicas. É o que demonstra a apropriação que a orientação lacaniana fez desse escrito, transformando-o em uma espécie de novelo, confeccionado com uma variedade de fios que, se desembaraçados, revelam o âmago do princípio que faz da sessão analítica uma sessão lógica4. Destaco alguns desses fios: o caráter heterogêneo e múltiplo do tempo, a interferência da variável-tempo na resolução de um problema lógico, o estatuto do sujeito do significante como sujeito de pura lógica, as relações entre a espera e a pressa, entre saber, asserção e ato e, finalmente, a duração como fator de cálculo e não como estado de consciência. Lógica versus
estados de consciência O debate de Lacan com o método intuitivo de Henri Bergson exalta a distinção fundamental entre o tempo que encontra sua homogeneidade no espaço, e o tempo puro. Segundo o filósofo, é o fluir perpétuo do tempo, depurado de toda mistura com o espaço, que define a duração. Insiste-se, portanto, na necessidade de captar a diferença entre o “tempo abstrato” – que se restringe ao número, ou seja, ao tempo do relógio, ao tempo mensurado pela física –, e o “tempo concreto”, que passa a ser chamado de duração. A duração é concebida como uma totalidade móvel que secreta as intensidades próprias dos estados de consciência5. Uma célebre passagem de Bergson – inúmeras vezes referida em “Os usos do lapso” – expõe essa intimidade da duração enquanto experiência dos dados imediatos da consciência: “(…) Por que devo esperar que o açúcar dissolva no meu café? Se a duração do fenômeno é relativa para o físico, enquanto ela se reduz a um certo número de unidades de tempo e essas unidades são quantas se queira, esta duração é um absoluto para minha consciência, visto que coincide com um certo grau de impaciência”6. Depreende-se dessa formulação
a idéia de que a quantificação matemática suprime o tempo e o escoamento
que se ambiciona medir ocasiona, em última instância, apenas o restabelecimento
do espaço. Por conseqüência, os números utilizados como medida do tempo
são relativos à unidade de medida escolhida, e relativos entre si. O tempo
da duração, ou seja, o que faz com que uma coisa seja esperada com impaciência
e ansiedade, não é verdadeiramente avaliável pelo transcurso simultâneo
dos minutos da espera que se observa no mostrador do relógio. Esse tempo
é por sua própria natureza uma realidade absoluta e se apresenta para
além de toda medida quantificável. O tempo numerável ou geométrico está
longe de ser captado pela sua realidade temporal efetiva, pois além de
estar orientado por um futuro desconhecido, coloca-se no interior do espaço,
diante de nós, como passado e futuro, simultaneamente, presentes à consciência.
Para Bergson, o caráter de simultaneidade próprio desse tempo quantificável
deixa de ser o tempo. Em definitivo, o único tempo que existe para ele
é a duração, o tempo que experimento, de modo concreto e real, como pura
sucessão, por meio da consciência aguda de que o presente não é idêntico
ao passado e o futuro nunca será igual ao presente. À primeira vista, poder-se-ia
supor que Lacan estaria de acordo com Bergson, a propósito dessa crítica
da apreensão do tempo por intermédio da simultaneidade. Não há dúvida
de que Lacan se insurge contra toda perspectiva que toma o tempo como
um fator homogêneo à realidade espacial. Se a sucessão é a resposta para
a simultaneidade, se o tempo emerge como sucessão, não se trata de forma
alguma, para Lacan, de uma sucessão concernente a um tempo, nomeado como
“concreto”, apenas porque se confunde com uma realidade suscetível
de assumir diferentes qualidades psicológicas. Para Lacan, se o tempo
é sucessão, trata-se de uma “sucessão real”, capaz de desvelar
diferenças que estão para além das intensidades e qualidades psicológicas,
diferenças que remontam às estruturas lógicas e subjetivas do tempo, heterogêneas
e distintas entre si. Com o intuito de se atingir
o elemento real da sucessão é preciso circunscrever o valor sofístico
da experiência com o tempo, valor que se exprime pela transformação da
“insolubilidade” do problema em um fator de cálculo lógico que
viabiliza a sua “solubilidade”. Em suma, a sucessão real apenas
aparece quando o problema insolúvel, presente na experiência, torna-se
solúvel, porque o sujeito autorizou a introduzir nos dados do problema
a própria insolubilidade. Importa reafirmar que
a sessão lógica se impõe como um lapso de tempo que se extrai da sua própria
duração, seja ela relativa ao tempo do relógio ou ao tempo psicológico7.
Por meio dessa extração, assiste-se a emergência de uma nova identidade
do tempo - um tempo que, naturalizado pela lógica, precipita a passagem
de uma etapa em que um problema insolúvel torna-se, numa segunda etapa,
um dado para a solubilidade do mesmo problema. Não é de forma alguma a
idéia da concretude do tempo, marcada pela intensidade da angústia e da
palpitação e expressa na experiência da espera do açúcar, que se dissolve
na xícara de Bergson. É na medida que o valor sofístico do tempo se introduz
ao fazer valer a materialidade do significante e não dos estados de consciência,
que a sessão analítica se torna unidades temporais com durações variáveis,
unidades que em seu conjunto se caracterizam pela brevidade. A duração enquanto
sentido Conclui-se, assim, que
a sucessão real com a qual o analista lida é o tempo tomado como efeito
da estrutura significante8. Em outras palavras, as distintas
estruturas temporais que têm lugar durante a sessão analítica – como
é o caso do olhar, próprio do instante de ver, da espera, no tempo de
compreender e da urgência em concluir –, são elas próprias efeitos do
significante. Isso permite afirmar, por um lado, que a estrutura significante
determina a posição subjetiva da espera, essencial na erótica do tempo
da sessão e por outro, do lado do analista, ela exige a modulação temporal
da urgência. É a urgência que abre a possibilidade do sujeito se deparar
com a procrastinação do saber: é ela que intervém como suspensão do gozo,
sem que com isso haja anulação do mesmo. Na erótica da procrastinação,
reforçada pela sessão de duração fixa, concebida, portanto, como acumulação
do tempo de compreender, não há intervenção sobre o gozo obtido com a
espera. Isto quer dizer que importa ao analista lacaniano mais a suspensão
do que a duração da sessão. Mesmo porque a duração, concebida como elaboração
de saber, como espera do ato conclusivo é, nesse instante, um mero equivalente
do sentido. Lacan estabeleceu uma leitura inovadora dessa erótica da procrastinação, introduzindo a dimensão da demanda do Outro de obter o objeto anal. O que mais chama atenção nesta interpretação da experiência anal como estratégia de transformar a demanda do Outro em objeto, é a prevalência de uma manobra com o tempo que se vale da espera. Por meio da espera, o Outro demanda ao sujeito o objeto anal, ao mesmo tempo em que o sujeito obtém dele o objeto da demanda. Se a espera é uma categoria temporal, crucial para a erótica do tempo na procrastinação do saber é porque ela mantém o Outro em suspenso, para fazer com que este lhe dê seu objeto9. Posto isso, pode-se perguntar: de que modo a unidade temporal da sessão lacaniana se contrapõe a essa limitação da experiência analítica que é a satisfação com a procrastinação do saber? Diante da proliferação
do significante contábil. Qual o uso da sessão nos
tempos em que a face obscurantista do Estado ocidental se revela pela
perda de seu poder providencial sobre os cidadãos? As formas reguladas
e legítimas de poder exibem visivelmente novas configurações, oriundas
das antigas técnicas de poder nascidas da religião cristã: o poder pastoral.
Com os recursos do saber da ciência, esse poder pastoral do Estado contemporâneo
se exerce, ao submeter a vida e seus mecanismos aos cálculos que favorecem
a fabricação de indivíduos úteis para a sociedade disciplinar. Responde-se
a essa exigência ilimitada de cálculo do pastor com a proliferação do
contrato e sua contrapartida necessária, a saber, as técnicas de controle
e avaliação para garantir seu bom desempenho. A difusão em massa do contrato
é o indício de que há um fundamentalismo que impregna o próprio funcionamento
do laço social e, sobretudo, o modo pelo qual o mestre contemporâneo se
apodera do saber da ciência. No lugar de favorecer o formalismo causal
que torna possível alojar um saber no real, assiste-se hoje ao culto da
vontade de sutura da ciência, expresso no imperativo de que tudo na vida
deve ser regulamentado e, portanto, quantificado. Com base em A ciência e a verdade, postulo que a preponderância dos usos do aspecto formal da causa, nos dias de hoje, não se opõe à intromissão, pelas portas dos fundos, da causa final própria do discurso religioso. É o que explica, segundo os próprios termos de Lacan, o “ranço obscurantista”10 do cientificismo atual, pois o cientista abandona o uso do saber que forclui a verdade, em proveito de um uso pretensamente científico da finalidade. No que concerne a sessão analítica, o psicanalista deve estar atento a essa mudança de rota no terreno das práticas da ciência. Diante do retraimento da margem imprevisível da vida e da redução do sujeito a uma cifra contábil e comparável, pode a sessão analítica sobreviver? Em que condições é possível o manejo do tempo da análise, na época do contratualismo e dos métodos de avaliação? A indagação é pertinente porque as transformações que fazem do sujeito uma unidade-contábil é, como explicita Miller, “a tradução efetiva da dominação contemporânea do significante-mestre, sob sua forma mais pura que é a cifra Um11.” Em conformidade com essa lógica do Um, em que a quantificação assume posto de comando do saber científico, surge a vontade escondida do mestre de colocar as mãos sobre o gozo singular do sujeito. Essa manobra própria ao fundamentalismo da ciência só é eficaz com o consentimento do sujeito em questão. A oferta identificatória, nesse caso, faz do sujeito um dado estatístico, subjugando-o à abjeção dos padrões comparáveis e quantificados do homem mediano. A extração
a-semântica do tempo O argumento da psicanálise que se contrapõe a essa estratégia neo-higienista da ciência inspira-se no que constitui o cerne da sessão lacaniana. A emergência da temporalidade própria à sessão supõe um certo uso do Um que nada tem a ver com esse Um que faz do sujeito uma cifra contábil. Sob esse ponto de vista, a sessão analítica é mais um fator que torna a prática lacaniana avessa aos cálculos próprios dos métodos da avaliação. Porém, para captar o alcance dessa dimensão inovadora da prática lacaniana é preciso resgatar o princípio de que o tempo da sessão analítica não se confunde com sua duração. Isto quer dizer que a sessão analítica se diferencia do uso que habitualmente se faz dela em outras orientações e, sobretudo, em práticas que não pertencem ao terreno da psicanálise. O uso habitual da sessão supõe a quantificação da sua duração como uma unidade objetivável no domínio dos cálculos coletivos, portanto, como uma unidade contábil que se isola e se distingue pela possibilidade de torná-la um bem capaz de circular como mais um valor de troca no seio do mercado. Instaura-se, assim, uma equivalência entre a quantificação e a duração que é sancionada pelo equivalente geral do dinheiro12. Segundo esta orientação, explicitamente anti-bergsoniana, tomar a sessão como uma unidade contábil implica admitir a equivalência entre duração e quantificação. A experiência do inconsciente, por sua vez, leva o psicanalista a tomar a sessão sob o prisma de um outro tipo de unidade: a unidade semântica. O semântico resulta do término da sessão, quando o efeito de retroação da cadeia significante age sobre si mesma. Vale dizer que o significante apenas obtém a significação por meio de um segundo significante. A prática da sessão entendida como a extração semântica do tempo coloca o problema da responsabilidade do analista em relação ao último significante capaz de produzir essa unidade temporal. A esse respeito Lacan é bastante claro, ao considerar que não é a duração cronológica e sim o Outro, que confere significação às palavras do sujeito. Ao pontuar o sentido, o término da sessão institui uma temporalidade epistêmica, ou seja, um tempo de saber produzido pela própria ação do significante. Indicações do último ensino de Lacan esclarecem que o tratamento analítico não deve se restringir ao emprego da pontuação da significação. Como se viu, a sessão de tempo variável é também uma unidade contábil, ainda que essa contabilidade não se faça pela via da duração cronológica, mas pela significação. É a sessão curta que subverte o teor contábil da unidade temporal da sessão, ao reintroduzir a descontinuidade própria do inconsciente freudiano, na medida em que se mostra homogênea com o corte necessário para fazê-lo existir enquanto sintoma do real. Portanto, o valor lógico da sessão apenas se institui com a extração a-semântica do tempo, com a interrupção da contabilidade da significação que, em última instância, reconduz o sujeito para a “opacidade do gozo13” própria da satisfação da pulsão. Essa recondução acontece precisamente no momento em que a duração encerraria sobre si mesma. O uso da unidade a-semântica carrega a hipótese de que a instantaneidade é mais apropriada a levar o sujeito a dar uma nova resposta à pulsão14. Esse uso distinto da unidade temporal da sessão, além de ofuscar o tempo epistêmico, provoca o surgimento do tempo libidinal, do tempo da pulsão, no curso do qual o sujeito faz a experiência do que antes se referia como a opacidade do gozo. Quando o Um da sessão visa o real da pulsão, o tempo de compreender ou a satisfação da espera tende a confluir para os intervalos de tempo que se interpõem entre as sessões, ou seja, para os intervalos de tempo que, de fato, não são exteriores à própria sessão analítica. Observa-se, então, que
há dois usos radicalmente distintos da unidade da sessão – um uso semântico
e outro a-semântico –, a partir dos quais a clínica introduz o
questionamento sobre as bases lógicas que dão sustentação a esses dois
usos do Um. No fundo, esses dois usos equivalem ao tensionamento
entre o universal da lógica fálica e o caráter eminentemente particular
da exceção feminina. Como unidade semântica, a sessão analítica se fecha
entre dois momentos precisos. Se, pelo contrário, ela é tomada pela brevidade
própria do instante libidinal, há sempre a possibilidade de abertura de
um novo intervalo, a partir do momento em que o corte ocorreu. Contrapondo-se
à lógica binária do significante, à lógica do intervalo fechado entre
S1 e S2, surge o funcionamento da sessão que se
efetua segundo a pulsação de intervalos abertos – designados, por Lacan,
a propósito do gozo feminino que se situa para-além do Um que agrupa
via falo. Se a sessão curta é uma das respostas à quantificação neo-higienista
é porque ela se orienta pela inclusão da topologia dos intervalos abertos
que excluem as fronteiras estipuladas pela marcação significante de S1
e S2 – tal como a excepcionalidade do gozo feminino que se
apresenta com limites fugidios, pois se vê envolvido, como nos diz Lacan,
pela sua própria contigüidade. |