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A era do homem sem qualidades 1 Jacques-Alain Miller 2 navarin@easyconnect.fr
Abstract:
Adopting Robert Musil’s expression, Jacques-Alain Miller reviews
Adolphe Quételet’s principles in "The era of the
man without qualities". Quételet believed principles
comparable to the celestial mechanics laws could be found in the moral
universe of individual behavior. According to Jacques-Alain Miller, Quételet
promoted the precept of the present epidemiology in mental health: the
theory of the average man. Key-words: Gauss curve; median; celestial mechanics; repression return.
Invectivas Começarei por uma leitura que me divertiu durante estas férias. É uma carta de Petrarca chamada “Invectivas contra um médico”[3], que começa assim: “Quem és tu, tu que despertaste minha pena adormecida e tiraste o leão do seu sono, ousemos dizê-lo, por teus tediosos urros, vais rapidamente aperceber-te que dilacerar a reputação de alguém, porque tua língua coça, é uma coisa, mas saber defender a tua é outra! [...]. Porém, já que me obrigas ao que eu jamais teria aceitado fazer por minha própria iniciativa, já que é preciso que eu diga algo, responderei então a alguns de teus propósitos, pedindo perdão ao meu leitor se me ocorrer empregar um tom contrário aos meus hábitos. Pois tu despejas um número tão grande de imbecilidades que aquele que as julgasse dignas de serem respondidas poderia passar facilmente por um grande imbecil.” O contexto da carta de Petrarca tem efetivamente todo o interesse: gira em torno do papa. Ocorre que “em setembro de 1351, Clemente VI caiu gravemente doente. O poeta lhe transmite então uma mensagem oral por intermédio de um de seus próximos: ele devia evitar entregar-se aos cuidados de muitos médicos, escolhendo apenas um. O papa pede a Petrarca que lhe escreva suas recomendações, fingindo não tê-las compreendido, provavelmente para suscitar a polêmica e oferecer um divertimento à corte papal. Petrarca enviou-lhe então a Fam., V, 19 na data de 15 de março de 1352, violenta crítica à medicina e àqueles que a praticavam.”[4] Essa carta familiar nos dá uma idéia da relação, no século XIV, entre a medicina e a sociedade pelo testemunho do não somente poeta, mas também pensador que é Petrarca. “Sei que teu leito é assaltado pelos médicos; eis a primeira razão que tenho para estar inquieto. Deliberadamente, eles discordam entre si, pois têm vergonha de parecer seguir os traços de outrem caso não tragam nada de novo. Está fora de dúvida, como afirma Plínio com elegância, que todos esses indivíduos que espreitam a glória por meio de qualquer novidade traficam com desenvoltura nossas existências... que a medicina é a única arte na qual se deposita confiança no primeiro que chega pretendendo-se médico, embora a impostura seja nela mais temida do que em qualquer outro lugar”. Trata-se da época charlatanesca da medicina, que explica, por razões de estrutura extremamente profundas, a emoção que parece apoderar-se atualmente do médico, diante da idéia de que os charlatães cuidam, já que a acusação de charlatanice em relação aos médicos é multissecular. “Os médicos se instruem através dos nossos riscos e perigos, prosseguindo suas experiências graças aos mortos; apenas o médico goza de uma impunidade total se comete homicídio. Considere, Pai muito Clemente, o bando dessas criaturas como um exército de inimigos. Lembra-te, à guisa de advertência, do curto epitáfio que esse célebre infeliz mandou gravar em seu túmulo: “Pereci, vítima de um exército de médicos”. Porém, como não ousamos mais viver sem médicos, sem os quais no entanto inúmeras nações vivem sem dúvida melhor e com melhor saúde, escolha um dentre eles que se distinga não por sua ciência, mas por sua retidão.” A ética, a deontologia... “Atualmente, eles esquecem sua profissão. [...] Para concluir: evita o homem que brilha por sua eloqüência e não por seu diagnóstico, considere-o um homem que quer atentar contra a tua vida, um assassino, um envenenador!”[5] Petrarca assinala esse desejo de originalidade nos médicos que se dedicam a se colocarem em desacordo para fazer valer sua inovação. Trata-se, evidentemente, do contrário que capturou a medicina tornada científica, colocando em primeiro plano o acordo dos médicos entre si. É isto que acabou dominando e anima a movimento atual que ganha o setor dito da saúde mental. Trata-se sem dúvida do núcleo duro do que constitui esta nova disciplina com a qual temos que nos haver: a epidemiologia em saúde mental.
I – O homem quantitativo 1. O invencível Um O registro A polêmica é necessária, é preciso não restringi-la aos lugares convenientes, mas tentemos compreender, segundo a fala de Spinoza: “Não se lamentar, não se regozijar, sed intelligere”. Compreender o que ocorre, compreender o fenômeno do qual nós mesmos somos parte pregnante, mesmo que seja para nos opormos, é o que eu gostaria de fazer. Esses períodos perturbados, agitados, são bastante ativadores dos neurônios. Há uma arqueologia a fazer. O registro, ao qual parece aderir, como um só homem, a maioria do Senado da República – o que ainda não foi feito – inscreve-se claramente no mesmo contexto daquele da ideologia da avaliação. Como ela, o registro coloca diante dos olhos o “tornar-se unidade contável” do sujeito. Há um “tornar-se unidade contável” que vai além do Sr. Mattei, do grupo UMP do Senado e outras iminentes personalidades. Tornar-se unidade contável e comparável é a tradução efetiva do domínio contemporâneo do significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1. Este escritor profético, Robert Musil, percebeu isso muito bem, quando a profunda reflexão que realizou sobre o pensamento estatístico o levou a intitular seu grande romance de “O homem sem qualidades”.[6] O homem sem qualidades é aquele cujo destino é o de não ter nenhuma outra qualidade senão a de ser marcado pelo 1 e, deste modo, poder entrar na quantidade. O segredo do título de Musil é que o homem sem qualidades é o homem quantitativo. Não temos necessidade de desfilar para cantar: “Somos todos homens quantitativos”, somos todos quantificáveis e quantificados. Isto pode não nos agradar, porém o modo atual, o modo contemporâneo de gestão da sociedade passa pela quantificação, fazendo mesmo com que ela reine de maneira exclusiva, já que o discurso universal não tem mais outras qualidades, outras identificações a nos propor que se sobreponham ao 1 da fila, o 1 que nos torna contáveis e comparáveis. Lacan nos anunciou isto: o significante-mestre é o significante do mestre, mas o mestre e o escravo são categorias que desapareceram do discurso jurídico, que não passam de lembranças. Por que – dizem-me – os psicoterapeutas não se registram nas prefeituras, como fazem os quiropraticantes, os VPR, os cartomantes e recentemente, – discretamente – os psicólogos? Todo mundo é obrigado a se registrar na prefeitura. O Estado se torna prefeitura. Da mesma maneira que, no tornar-se unidade contável, libera-se a essência do significante-mestre que antigamente era revestido de ornamentos esplêndidos, o Estado desnudado revela o que é sua matriz, como dizia Hegel e como retomou Lacan: a polícia. Do mesmo modo como o significante-mestre revela sua essência no número 1, o Estado, dirigindo-nos em densas filas para as prefeituras, nos indica o que constitui, o que é o suporte, o pivô de sua estrutura. Exceto os médicos e os psicólogos que, de certa forma, já estão registrados, isto será estendido de bom grado aos psicanalistas, cujos nomes figurarão nos anuários das associações analíticas. Como eles serão reconhecidos? Como serão definidos? Vejam os decretos de aplicação, que podem ser qualquer coisa. O significante-mestre como unidade contável é simultaneamente o mais estúpido dos significantes-mestres que surgiram na cena da História, o menos poético, mas também – reconheçamos – o mais elaborado, pois é justamente limpo de qualquer significação. Ele conduz ao que é, aparentemente, uma necessidade das sociedades contemporâneas: o estabelecimento de listas. Lacan o havia assinalado como asno-à-lista (“l´âne-à-liste”) – deste jogo de palavras vem o nome de um jornal que fiz reaparecer recentemente – mas é a sociedade, o Estado, que é este “asno-à-lista”. Ele tem necessidade de listas, precisa nos colocar em listas; passageiros de avião ou cartomantes, psicoterapeutas, trata-se do mesmo princípio. Isso apenas começou e irá marcar – façamos a aposta pelo que já conhecemos – o século XXI, que será o século das listas. Talvez seja mesmo muito mais profundo do que aquilo que é denunciado com o termo mercantilização. Fala-se do reino do dinheiro, ao qual se opõem os valores espirituais, humanistas. O dinheiro, o equivalente simbólico universal, não passa de uma forma, de uma realização do significante-mestre contável. Como avaliar vocês quando as qualidades desapareceram? Resta apenas a avaliação quantitativa monetária. Não é que o comercial domine; ele não domina de forma alguma. O que domina é esta espiritualização do significante-mestre que se encarna no número 1, de cujo aparecimento é preciso dar conta. Lacan se esforçava para fazê-lo, com dificuldade, em seu Seminário XX. Como o significante-mestre adveio? Ele se coloca a questão, pois agora podemos apreender que ele antecipava que este significante um viria a governar o sujeito, e que o agregado social, o laço social, seria governado pelo um. Trata-se então de um produto extremamente elaborado. É esse reino da quantidade que se traduz pela avaliação financeira. O processo mais profundo é a redução do significante-mestre ao osso do um, a finalidades, que é preciso isolar como tais, que são finalidades de controle. Fiquemos à distância da emoção, da comoção. A sociedade reclama o controle. É possível que os encarregados de organizar esta sociedade coloquem em jogo esse controle de uma maneira desajeitada, como no assunto que nos ocupa. É uma falta de tato aproximar a palavra psicoterapia da palavra prefeitura. Aqueles que o fazem não têm habilidade – felizmente, talvez. Isto choca. Se eles fossem mais hábeis, talvez o fizessem passar facilmente. Porém, em relação ao ponto em torno do qual gostaria de desenvolver hoje minhas considerações, isso é secundário. A sociedade reclama controles e existe uma dinâmica do controle. Ela reclama saber quais são os ingredientes dos alimentos ingeridos. O que há de mais legítimo? Nessa inquietação de cada um já existe o desejo de controle.
A
escrita A própria palavra papel é mais antiga, do século doze. Tem origem no latim medieval rotulus, rolo, papiro enrolado. Trata-se de um rolo, de uma folha enrolada, onde eram registrados os atos notariais, os assuntos do tribunal. Em nossa expressão “à tour de role” (cada um em sua vez), não se trata absolutamente do papel de teatro, mas “na sua vez” segundo a lista do registro, segundo seu lugar hierárquico, quando chega sua vez segundo a lista que é um rolo. Isso certamente tomou o sentido de partes de uma peça de teatro que corresponde a um personagem ou ao nome do próprio personagem, com todas as expressões que se seguem, como por exemplo: “ele me deixa o papel principal”. O registro, palavra do século XIII, vem do latim regerere, que deu origem a regestus, relatado, inscrito. Regerere é trazer do passado, reportar, transcrever, especialmente anotar para guardar a lembrança[7]. É preciso observar que é um equívoco falar de nossa época como a do domínio das imagens. A produção de imagens é sem dúvida prevalente, pregnante, extremamente multiplicada, multiforme. Elas dominam por sua sedução, exercem uma captura que tenta manejar o discurso político. Mas de fato a escrita permanece sendo o osso do assunto, sob a forma do registro. É o que recentemente denunciava na imprensa o filósofo italiano Agamben.[8] O próprio corpo, o corpo contemporâneo, é exibido sob formas magníficas, estilizado nas imagens de publicidade, nas imagens cinematográficas, televisivas. A imagem é exaltada, mas é a escrita, o depósito eletrônico do um por um contável, que é efetiva. O corpo é transformado em escrita, ou seja, busca-se em seu corpo o que faz escrita. Gostaria de poder impressionar vocês citando as proposições, as pesquisas, a filosofia do Sr. Bertillon, francês, aquele que descobriu que todos trazemos em nossa mão uma escrita indelével, que encontrou em seu tempo uma marca, um símbolo, um significante indelével[9]. O Sr. Bertillon é um homem que demonstrou, na Chefatura de Polícia, um espírito elevado. Não esqueçamos que Gaëtan Gatian de Clérambault, assim como Lacan, exerceu a clínica sob o galpão da chefatura de Polícia. Era realmente possível aprender ali a clínica, pois por ali passavam, como perturbações da ordem social, os diferentes problemas mentais, como se diz atualmente. Na trilha do Sr. Bertillon se avançou e se encontrou, particularmente no olho, índices gráficos capazes de serem traduzidos e de identificar as pessoas do nascimento à morte. Aspiração que anima toda a civilização contemporânea desde a revolução industrial. Bentham foi o primeiro a dizer: “Seria preciso que cada um tivesse um número, conservado do nascimento à morte, para poder ser reconhecido”. Isso deu origem à carteira de identidade. Na última vez eu felicitei os ingleses por terem resistido à carteira de identidade e desconfiava que o Sr.. Blair queria introduzi-la.[10] Soube depois que a introdução da carteira de identidade na Grã-Bretanha estava prevista para 2007. Esse, me parece, é o povo mais fotografado da terra: câmeras de vigilância são de tal forma colocadas nas ruas de Londres, que o londrino médio é filmado ou fotografado em média quinhentas vezes por dia.
A sociedade do medo Estamos nela. Estamos muito mais ainda do que eu podia pensar em 2003. Entramos, no início de 2004, no século XXI, na época da vigilância. Não necessariamente “vigiar e punir”, mas trata-se de uma sociedade em que a palavra de ordem é “vigiar e prevenir”. Estamos na época da prevenção: sanitária, e também guerreira. Guerrear um país sem que este lhes tenha declarado guerra corresponde a descobrir a doença mental antes que ela tenha se manifestado[11]. Os fatos que se apresentam desde o início desse século nos indicam que começou a ser escrito um grande capítulo sobre os grandes medos do século XXI. O medo dos psicoterapeutas é um pequeno medo perto de nós. Brincamos de nos amedrontar, mas estas são as notas que se organizarão a seguir em uma sinfonia. Aquilo que o eminente sociólogo alemão Ultrich Beck gentilmente chama de sociedade do risco[12] é a sociedade do medo. O sujeito, no início do século vinte-e-um, está em perigo. Comer, respirar, se deslocar, se tratar, isso se faz sob a égide do perigo e da precaução a tomar. Reivindica-se, pelo menos na França, muito geralmente ao Estado, que não é mais o Estado-providência de antes, o Estado maternal, um Estado ao qual se demanda que se restrinja às suas próprias tarefas. Trata-se da idéia do Estado estrategia [13]. E qual é a tarefa própria fundamental do Estado? A polícia. Reivindica-se, portanto, um Estado policial. A sociedade se vê em perigo. Ouvimos, sob diferentes formas, um “SOS sociedade”. Aquilo que Ultrich Beck mascara, com o nome de risco, talvez para não reforçar o pânico. Nós nos tornaremos sociedades do medo e do pânico. Tento construir a esse respeito para que mantenhamos em relação a isso, mesmo quando somos nós próprios os vermes a serem exterminados ou os inclassificáveis a serem classificados, um certo saber sobre a configuração na qual entramos, e que tal ou qual iniciativa possa desviar ou retardar o processo. Isto é essencial. Carl Schmidt, sobre o qual por outro lado se pode falar muito mal, havia isolado na história a função daquilo que ele chamava “o retardador”, aquele que chega a retardar processos inevitáveis. Quando se retarda, se ganha tempo; outros fatores podem entrar em jogo, e assim o fatal pode ser contornado. Por isso, saber que é inevitável que tal lógica se aplique, absolutamente não implica que nos desarmemos.
2. Quételet Ironia das Luzes Naquele momento, eu me disse que podia aproveitar a ocasião dessa pesquisa arqueológica na qual eu queria me engajar para apresentar a vocês, porque imagino que isso não se aprende nas salas de aula, um grande espírito que me parece um dos grandes nomes na origem disso que está em causa no homem quantitativo, que é Quételet. Tenho alguma coisa em comum com Quételet. Aliás, isso me levou a me interessar por ele um pouco mais. Quételet era belga – não era o meu caso -, e professor na Universidade de Gand, única universidade no mundo que, sem dúvida por engano, considerou bom, outrora, me nomear Doutor Honoris Causa. No agradecimento que fiz na Universidade de Gand, eu havia citado, entre os augustos dessa universidade, Quételet. Quételet era astrônomo e teve, na primeira metade do século XIX, a idéia de aplicar as concepções e métodos válidos para a astronomia às sociedades humanas. Ele é o mais eminente na origem da abordagem estatística do fenômeno social, a abordagem estatística que nos propõe a epidemiologia em saúde mental. Percebemos a mudança de regime de pensamento ocorrida entre o século XVIII e o XIX. No XVIII se acumulou, de uma maneira muito divertida – que sempre me encantou, da qual eu trago a marca – um número enorme de informações, de descrições das sociedades diferentes das nossas. É possível sentir a presença desse movimento em Montaigne, que vai buscar suas referências nos autores da Antiguidade para mostrar a diversidade dos costumes e das leis humanas, mas, no século XVIII, a multiplicação de relatos de viajantes, de aventureiros, de missionários. Acumula-se toda uma literatura sobre a diversidade humana, a diversidade de hábitos, de usos e costumes, das religiões, dos regimes políticos, das leis, e se começa a elaborá-la de maneira excepcional. Pensem no Esprit des lois de Montesquieu, que se prestava ao chiste: “O Sr. Montesquieu não fez o espírito das leis, mas humor sobre as leis.” (de l’esprit sur les lois) Isso é muito injusto, mas mostra que no século dezoito o acúmulo desses dados sobre as sociedades colocava em evidência a contingência, mostrava que não tínhamos necessidade de nossos próprios costumes, nos convidava a nos distanciarmos de nossas práticas, e era marcado por certo estetismo. Em um pequeno speech no teatro Hébertor[14], disse que os filósofos do século XVIII, tendo idéia da unidade da natureza humana, colocaram no registro da comédia humana o fato de que aqui as pessoas se vestem de uma maneira e ali de outra, que aqui se governa desta maneira e ali de uma forma diferente, que aqui se come isso e ali isso é proibido. Se o homem é um, se há uma unidade da natureza humana, a diversidade provém da comédia humana. No século XVIII a acumulação desses dados comparativos introduzia uma postura irônica, definitivamente muito socrática e, pode-se dizer, muito psicanalítica. Era uma maneira de se desvencilhar dessas identificações e de aprender que não há apenas nós, que não há apenas esta maneira de fazer. Essa abordagem tinha um efeito de dissolução sobre todo o imaginário em torno dos significantes-mestres. Vocês são cristãos, mas outros são muçulmanos, outros adoram os animais. A substância imaginária, a carne imaginária do significante-mestre, no século XVIII, era dissecada e caía aos pedaços. Esse momento tão delicioso de ironia, que adoro repetir como posso, também é uma etapa no processo que tende à simplificação do significante-mestre. O esqueleto aparece: é o número 1. A ironia dissolvente das Luzes é um momento do processo histórico que conduz ao momento presente, no qual reina o invencível 1.
O real social O espírito do século XIX é completamente diferente. Não se trata mais da ironia mas, se quiserem, do progresso do espírito científico avançando sobre seus dados, buscando e construindo as regularidades. Pode-se dizer que ele partiu da observação. Há regularidades que dizem respeito aos nascimentos, às mortes, aos casamentos, aos crimes. Há regularidades sociais, os patterns, configurações regulares e essas regularidades incitam a buscar leis no universo social. Trata-se do que Montesquieu esboçou com humor e que começou a ser abordado pelos meios da quantificação, com a convicção de que havia um saber inscrito no social e que, portanto, o social era um real do mesmo nível que o real da física. É um avanço em relação a Descartes, que reservava essa pesquisa do saber matemático inscrito no real ao universo da física, às ciências naturais e à física matemática. Em relação à ordem social e política, seu conselho era o de aderir ao significante-mestre em vigor na própria sociedade, de não começar a se fazer de esperto, de sabido com o significante-mestre. Esse era o ponto de vista de Montaigne. Só Deus sabe se os semblantes sociais não lhe pareciam necessários. Ele sabia que eram semblantes. Sua moral era que a prudência exige a conformação ao espírito de sua sociedade no que concerne à organização social. É possível ver o próprio Descartes avançar no discurso científico, mas ao mesmo tempo manter, no domínio social e político, a reserva de Montaigne. Como essa barreira foi franqueada? Eu não tenho de forma alguma os meios para reconstituir essa arqueologia de memória. Seria necessário, já no século XVIII, dar um lugar especial à economia política, ao espírito escocês. Há certamente coisas a serem encontradas em Adam Ferguson e na escola escocesa, porém, é no início do século XIX e a partir do momento em que a revolução industrial realiza uma fabulosa transferência de população do campo para as cidades, que se torna um imperativo social dispor de informações estatísticas sobre a população. Marx descreveu esse deslocamento do campo para a cidade de uma forma sensacional, poética. Ele foi remanejado pelos historiadores, mas permanece, em linhas gerais, bem estabelecido: o processo das enclosures ou closure. Acumula-se nas cidades uma população nova, assalariada, empobrecida e que constitui risco social. São os imigrantes do interior. Esses imigrantes, que vemos aqui com terror chegar de todas as partes mediterrâneas da Europa, vinham, na época, do campo. As invasões de imigrantes eram invasões de rurais proliferando nas cidades. Isso provocou um movimento epistêmico, o desejo de dispor de informações quantitativas sobre a sociedade e sobre o que se passou a chamar de população. Ah, essa palavra população! A população não é o povo. O povo, evocado na Revolução francesa como princípio de soberania, é um significante-mestre. A população é outra coisa. São os corpos que estão lá, um agregado de corpos nascendo, vivendo, se acasalando e morrendo, e eventualmente se agredindo uns aos outros. Reaparecem, em todos os escritos desse período, o nascimento, a morte, o casamento, o crime. População é como povo em massa, porém numa vasta extensão, e considerada do ponto de vista bio-político. Aliás, uma das palavras que desaprovei no discurso de uma eminente epidemiologista que nos visitou foi o adjetivo “populacional”, muito empregado, com efeito, em epidemiologia. Eu lhe disse: “Como se fala assim entre vocês: ‘populacional’”? Ela prontamente me respondeu: “Eu não falo assim, são os Quebequenses”. Não! O ponto de vista populacional está presente no discurso estatístico desde o início do século XIX. Não há por quê se desculpar.
Estatísticas Eu adoraria poder citar para vocês uma obra do século XVIII, que li outrora nos meus tempos de estudante, o Ensaio sobre o princípio de população[15] deste eminente espírito que era o reverendo Malthus. Ele legou seu nome ao malthusianismo de uma forma bastante injusta, como o marquês de Sade deu origem ao sadismo, e Sacher-Masoch ao masoquismo. Eu gostaria muito de poder citá-lo e eu mesmo relê-lo a partir do ponto de vista que a questão atual me permitiu perceber. Há verdadeiramente duas tendências que se opõem e que Lacan nos ajuda a localizar. De um lado, vocês tiveram no século XIX uma sociologia que tomou como princípio as normas e as instituições, as representações coletivas, como sendo impostas, embora esse não seja um termo de seu vocabulário, digamos, a uma dada população. Trata-se do ponto de vista de Émile Durkheim, a quem Lacan se referiu porque, de fato, ele dá uma representação sociológica do grande Outro, um discurso feito de crenças, de instituições que se impõem e que estruturam uma população. Nessa direção Lacan foi, de saída, durkheiminiano, pelo menos em seu artigo da Enciclopédia[16]. Há nela um esboço do que se desenvolverá mais tarde como sendo da ordem simbólica. Vocês têm, porém, uma outra sociologia, a que triunfa na epidemiologia da saúde mental, que não parte de cima, mas de baixo. Não parte do grande Outro, mas das ações do indivíduo e da multiplicidade multicolorida dessas ações individuais; considera, pelo contrário, que as normas e as instituições resultam dessa multiplicidade de ações individuais e busca, portanto, através do cálculo estatístico, isolar as regularidades partindo efetivamente do quantitativo. A primeira abordagem parte do conteúdo significativo, ao passo que a segunda parte do quantitativo. Quételet avança como um astrônomo em direção à sociedade – os planetas não falam – e armado da estatística e do princípio de distribuição de erros das observações na astronomia, ele diz: “Eu não tenho teoria, não tenho sistema, observo, anoto”. Esse segundo ponto de vista é o do “Outro que não existe” em nossa linguagem. Trata-se do ponto de vista: o grande Outro resulta das convivências contínuas do sujeito. Este é o segundo ponto de vista de Lacan, conforme o segundo Wittgenstein, que vocês vêem emergir no Seminário Mais, ainda[17]. Doravante, a sociologia durkheimiana, que sempre adotou um ponto de vista sobre o todo, funcionalista, um ponto de vista macro, resistiu ao pensamento distributivo e probabilístico. O ponto de vista “o Outro que não existe” é um ponto de vista micro, ou seja, que recolhe os dados quantitativos e estuda as distribuições, as médias, e as dispersões e os desvios em relação à média. Ela estuda as distribuições e, ao estudar as distribuições, ela pode definir as médias, um espectro de dispersões e de desvios em relação à média, tudo isso, sem referência a nenhum conteúdo significativo nem a nenhum absoluto. Não se diz: “O homem deve ter 1,72 m”. Isso não é imposto. Levanta-se o tamanho dos homens de tal idade e se diz: “A média é de 1,72m. Os que não tem 1,72m são pequenos e os que têm mais são grandes”. É um dos grandes exemplos de Quételet ao estudar o tamanho. É muito bem estabelecido. Vocês não imaginam o entusiasmo que cercava os estudos de Quételet. A epidemiologia em saúde mental faz exatamente a mesma coisa hoje em dia, a única diferença é que ela incide sobre a saúde mental. Constata-se ao longo de toda a primeira metade do século XIX que se acumulam os dados quantitativos. Há uma paixão por isso, justamente porque houve ruptura e recomposição do laço social e essa ruptura e recomposição do laço social se traduzem como um perigo quanto à estabilidade social, um perigo quanto à segurança – e toda a primeira metade do século XIX é ocupada em como garantir a segurança – e também um perigo sanitário. A literatura traz todas as marcas disso. A felicidade no crime de Barbey d’Aurevilly foi escrito nesse contexto. Do que fala Stendhal em O Vermelho e o negro, crônica de 1830? Ele fala de uma história, lida nos jornais, de um empregado de uma fazenda que se torna amante da patroa e a assassina. Em seguida há o nascimento do detetive, Edgar Poe... Vocês não têm nada comparável na literatura do século XVIII na qual, pelo contrário, quando há crimes, são pequenos delitos engraçados, pequenos envenenamentos divertidos e estéticos. Tudo se torna negro a partir do século XIX, porque estamos nesse contexto da criminalidade. Não encontrei mais entre meus livros a grande referência histórica a esse respeito, o livro de Louis Chevalier, lançado em 1955, Classes trabalhadoras e classes perigosas [18], que dá o panorama da época. Falarei disso a partir das minhas notas do meu concurso para o magistério secundário. Ele explica que esse período do início do século XIX é marcado pela vontade de quantificar tudo, medir tudo, saber tudo sob o chicote do perigo. Estamos nele. Revivemos o início do século XIX com os meios do século XXI. Eu tinha leituras curiosas da época, precisando de mais tempo para ler. Fazia referência ao Dr. Parent-Duchâtelet, um médico francês, que particularmente se dedicou em 1836 a uma obra muito sábia, A respeito da prostituição na cidade de Paris...[19], na qual ele faz estatísticas sobre as prostitutas parisienses. É uma obra de referência para a estatística. Na Inglaterra, passemos por cima do eminente papel desempenhado pelos utilitaristas, os alunos de Bentham, e pela criação em 1857 por Lord Brougham, um eminente benthamiano, da Associação de Ciências Sociais. Esta é a época na qual se criam as sociedades estatísticas – Quételet é ainda um pesquisador individual -, organizam-se equipes para reunir e tratar os dados. Na França, começa-se a publicar todos os anos coletas de cifras estatísticas. Todos os anos, a partir de 1827, vão sair os dados quantitativos dos crimes cometidos, dos que foram elucidados, das punições a que os criminosos foram submetidos. Tudo isso deixa esperança. Essa moda alcançou seu apogeu na primeira metade do século XIX e decaiu um pouco na segunda metade, mas permaneceu presente. Antes de Quételet, estudos já haviam observado regularidades estatísticas nas variáveis demográficas, em particular no que concerne à mortalidade e à distinção sexual no nascimento, evocados por Lacan em “O aturdito”.[20] Estuda-se o número comparado de meninas e meninos no nascimento. Passou-se a tratar dessa maneira todos os domínios da vida social: o crime, o suicídio, os nascimentos adulterinos, a freqüência às igrejas a freqüência à escola, a pobreza, até mesmo as doações filantrópicas. Passou-se a observar tudo isso e a fazer comparações. Há uma obra de 1833 sobre a criminalidade, intitulada Ensaio sobre a estatística moral da França.[21]
O homem mediano Quételet, que escreveu uma obra intitulada Le système social, pensava fundar uma ciência nova de física social. Ele promoveu o que, em minha opinião, continua sendo o princípio da epidemiologia em saúde mental: a teoria do homem mediano. Ao estudar as cifras relativas ao tamanho dos recrutas militares, ele se deu conta de que estas obedeciam a uma curva de Gauss, e que os erros de observação obedeciam à distribuição normal dos erros de medida em astronomia. Com esses dados sensacionais, realmente inteligentes, ele formulou os princípios de uma espécie de astronomia social. Do mesmo modo que, para o deslocamento dos corpos celestes, reconheceu-se a existência “de uma força de gravidade” entre aspas, isto é, de uma fórmula matemática à qual sua órbita obedece, deve-se, ao mesmo tempo, reservar o lugar de uma quantidade de pequenas forças de perturbação que fazem com que nunca encontremos o corpo celeste exatamente em seu lugar matemático. Há sempre uma ligeira perturbação, as observações astronômicas têm sempre algo fortuito. Com base nos cálculos, procura-se em uma zona do céu, mas encontra-se sempre um pouquinho ao lado. Meu Quételet formulou que no universo social e moral das representações do indivíduo há o equivalente da gravitação. Foi o que ele chamou “a tendência”. Tendências que obrigam a uma distribuição normal em curva de Gauss. Ele distingue a tendência ao crime, ao suicídio, ao casamento. Assinala, por exemplo, que a taxa de crime é mais elevada nos homens de vinte e nove anos. No que concerne ao crime, eles estão no top nível! Do mesmo modo, há idades em que os casamentos acontecem. Ele conclui ser possível encontrar no universo moral do comportamento do indivíduo as mesmas leis que as da mecânica celeste e que, nesse momento, devemos considerar as pequenas forças de perturbação que fazem com que o cálculo nunca seja exato, há sempre uma diferença. Para ele, essas tendências são formas do instinto em relação ao qual a vontade humana lhe parece, na ordem normal, de intensidade zero. É uma força pouco utilizada e só intervém como uma dessas mínimas forças de perturbação, no que diz respeito à regularidade orbital das tendências. Então, para ele, a base da estabilidade da ordem social é o homem mediano; as propriedades estatísticas das principais ações humanas, do casamento e do crime, é que são estáveis. Isso foi amplamente criticado. Um pré-sociólogo alemão, Drobisch, em La statistique morale[22], criticou o homem mediano como uma ficção matemática abstrata. Max Weber também se refere a Quételet e critica essa vontade de fazer uma análise astronômica dos acontecimentos da vida. Mas foi sobretudo Durkheim que, referindo-se a Quételet, opõe-lhe, ao mesmo tempo, um outro ponto de vista: o da exterioridade da ordem social aos indivíduos, ao passo que Quételet a encontra nas regularidades das ações humanas. O célebre estudo de Durkheim sobre o suicídio se inscreve nessa polêmica[23]. Ele faz uma análise muito mais apurada do que a abordagem global quantitativa de Quételet, pois ele distingue as taxas de suicídio segundo qualidades muito finas, ou seja: segundo grupos religiosos, sexo, profissão, idade e status marital. Todavia, o avanço e a motivação do estudo famoso de Durkheim se inscreve nesse contexto de Quételet. É uma polêmica com Quételet, com o ponto de vista astronômico. Durkheim e Quételet concordam em muitas coisas. São deterministas e, portanto, afirmam que no universo social nada se produz por acaso e que a sociedade é regida por leis. Durkheim admite, inclusive, que se pode definir o normal e o patológico sem ideal: o normal é a mediana, o patológico é o desvio em relação à mediana. Esse ponto de vista é muito leigo, porquanto ele leva a dizer que o crime é normal. Há uma regularidade do crime: o anormal é quando há crimes em demasia ou não o bastante. Quando não há o bastante, falta energia. É o que dizia um Stendhal. Quando os italianos estavam sob o regime dos principados, eles se apunhalavam galhardamente. Em seguida chegou a democracia e eles perderam todo o ardor. É um ponto de vista extremamente leigo, mas é a ditadura da mediana. Antes de vir aqui, para poder agir sobre a mediana do senador U.M.P., telefonei para meu amigo François Ewald a fim de lhe assinalar o estado desastroso de nossa campanha parlamentar. Ele me prometeu fazer o impossível. Então eu lhe disse: “Vamos nos apressar para terminar a conversa porque vou falar um pouquinho sobre Quételet”. Concordamos sobre a grandeza de Quételet. Disse ele: “A idéia de Quételet equivale a instalar um julgamento perpétuo da sociedade por ela mesma”. Isso me pareceu muito preciso. Com efeito, a mediana é um ideal secretado pela própria estatística quantitativa. Isso não vem de nenhuma prescrição, de nenhum comando, são as próprias cifras que dão um ideal, o da norma, distinto do da lei. A lei mantém sempre sua ancoragem em um grande Outro. É a lei divina, a lei do Estado que, em um certo momento, se impõe de cima, do exterior. Já a mediana – é muito mais suave, é invisível – vem de vocês, da combinação de suas decisões individuais ou de suas propriedades individuais, libera-se insensivelmente e não é possível opor-se a isso. Nessa pequena discussão, François Ewald me dizia: “O que amedrontava Michel Foucault no reino da norma é que a norma não tem exterior”. É congruente com o que eu evocava na última vez[24]: podemos nos rebelar contra a lei – é o que fazemos -, mas não o podemos contra a mediana, contra a ditadura da norma. Isolar essa referência à norma nos permite ver que, embora ela seja extraída da estatística, decidir conformar-se à norma, fazer da norma a lei é uma escolha política. Aqui, podemos opor alguma coisa aos nossos estatísticos em saúde mental que pode ser o vetor de uma intervenção propriamente política: fazer da norma a lei e perseguir todos os desviantes em relação à norma é um fator de estagnação. Isso se opõe precisamente ao que seria a ambição de alguns: a inovação. Para preservar a inovação de uma sociedade, é essencial que a norma não seja a lei. Afinal, é lógico que isso seja formulado a partir do discurso psicanalítico.
II – O objeto-máquina. 1. Acontecimento. Hold-up[25] De fato, este curso incide sobre a questão: como chegamos a isso? Há uma espécie de efeito de “então, isso era ainda mais verdade do que podíamos dizê-lo”. De um lado, no que está acontecendo, não há nada que nos surpreenda, já que foi anunciado de todas as maneiras possíveis. Ao mesmo tempo, quando isso ocorre, o acontecimento traz com ele, sempre, um elemento que desconcerta, que torna perplexo. A leitura que fiz, desde o começo, do que estava acontecendo, é que se meditou sobre os meios de reduzir, de asfixiar e de fazer desaparecer a psicanálise, projeto que mostra, pelo menos, que não se pensou que a evolução simples das coisas levaria a isso, que era preciso, no mínimo, dar um último empurrão. O que é a psicanálise para merecer essa empreitada? O que é a psicanálise para entravar essa empreitada e para surgir, ao menos hoje, por ora, como um núcleo de resistência a essa empreitada? Um personagem de Balzac, chamado Vautrin, formula este belo princípio: “Não há princípios, há apenas acontecimentos”. Este é um princípio de oportunismo, do qual, dizem, o príncipe de Bénévent, Talleyrand, teria sido o inspirador para Balzac. Nós, que temos princípios, constatamos não ser simples fazer com que eles dominem os acontecimentos. O acontecimento, seja qual for sua força, seja qual for a surpresa que ele possa trazer, desde que o consideremos com certa distância, aparecerá situado em uma estrutura e inscrito em um processo. Ao pronunciar o nome de Quételet[26], quis pôr um nome próprio – escolhi esse supondo que ele não lhes era familiar – na origem do processo que fez nascer, difundir-se e dominar, um novo tipo de homens, aqueles a quem Robert Musil chamava “os homens sem qualidades”. No que foi percebido por Quételet, entraram em jogo sua reflexão sobre a estatística, sobre o cálculo das medianas e a importância que ele deu à emergência da psicologia quantitativa.O que produz o homem sem qualidades é a quantificação, a entrada de sua pessoa no cálculo. A palavra pessoa inclui até mesmo o que se chama usualmente psiquismo, do qual o nome psicanálise traz ainda, para sua desgraça, o rastro. Foi somente o respeito dos semblantes que fez com que Lacan conservasse esse nome que lhe parecia uma herança da história, por pouco que esse nome tenha sido conforme ao que ele estruturou da prática freudiana. Talvez seja necessário, um dia, aprendermos a prescindir dele, desse nome. Assistimos a um verdadeiro hold-up[27] do nome “psicoterapeuta” que, sem dúvida, não é o nosso. Mas vemos como isso se passa quando, em dado momento, a potência do Estado, sua mão, pode abater-se sobre um significante e decidir dar-lhe um novo sentido, um novo uso e novos agentes. Sejam quais forem as diferenças apuradas que possamos fazer entre psicanálise e psicoterapia[28], essas duas palavras levam o estigma do psiquismo. Tocou-se nisto, em uma zona que, depois dos psiquiatras e dos psicólogos se viu, durante um tempo, como uma zona talvez protegida, ou melhor, não protegida, isto é, protegida dos demasiados interesses que se tem por ela. É preciso uma obtusão particular para que colegas tenham formulado, se acreditarmos em uma dépêche da A.F.P. desta manhã, que estavam seguros[29]. Muito pelo contrário, é preciso nos perguntarmos por quanto tempo o nome “psicanalista” não será protegido, por quanto tempo esses protetores vindouros o deixarão com um livre uso, do qual podemos constatar até que ponto ele foi, em seu conjunto, na média, garantido por agentes que, por indignos que tenham sido dos ideais freudianos, asseguraram, fosse como fosse, sua função. Entramos em um momento no qual temos de nos formular a questão: como seremos levados a nos chamar, um dia, talvez, para continuarmos a fazer o que queremos? A morte do absoluto. A entrada da pessoa na quantificação se traduz pelo que Musil chamava um “desencantamento”. Ele acontece no decorrer de um episódio de seu grande romance no qual seu herói, Ulrich, se vê levado — Ulrich que acredita na ciência, que meditou sobre a estatística — ao posto de polícia. Como diz Musil, de maneira requintada: “Ele continuou capaz de apreciar, mesmo nesse momento, o desencantamento que a estatística infligia à sua pessoa. E o método de descrever os sinais de identificação e de mensuração que o policial lhe aplicava entusiasmou-o como um poema de amor inventado por Satã”. Ulrich se encanta ao constatar que “o operador disseca sua pessoa em elementos insignificantes, irrisórios” e que, depois, a partir desses elementos, pode recompô-lo “torná-lo novamente distinto dos outros e reconhecê-lo por seus traços”. Essa operação, aqui policial, é a operação científica decomposta em elementos insignificantes. Foi bem a isso, sobre a linguagem, que a lingüística procedeu, e somos levados a distinguir o significante e o significado conforme a orientação estóica. Essa decomposição elementar, quando se efetua sobre os grandes nomes, tem como efeito uma evaporação daquilo que, durante séculos, se chamou liberdade. É nisso que se inscreve, que se impõe o que se poderia chamar a lei de Quételet, à sombra da qual Musil escreveu seu próprio poema romântico. “Quanto mais o número de indivíduos é grande, diz Quételet, mais a vontade individual se apaga e deixa predominar a série dos feitos gerais que dependem das causas segundo as quais cresce, existe e se conserva a sociedade”. Aqui está a constatação comum de que vocês tomam individualmente a decisão que lhes convém, no que concerne às suas férias, estando a S.N.C.F. em condições de calcular, grosso modo, o número de viajantes que viajará em seus trens e de acrescentar vagões suplementares, se for o caso. Esses cálculos que nos cercam tornam o indivíduo enfermo e lhe prescrevem um novo tipo de destino que era desconhecido dos gregos: o destino estatístico, que pesa na escrita de Musil, tendo como efeito fazer evaporar o único e substituí-lo pelo típico. Em Musil, sentimos como isso aumenta no decorrer do século vinte, “o espanto, a devastação, a deploração de filiação romântica dos intelectuais, dos escritores, dos artistas, diante daquilo que emerge como o homem das massas”, dizia Ortega e Gasset. Musil escreve a influência crescente das massas, do grande número, o que torna a humanidade cada vez mais mediana. Há um crescimento específico da civilização, do que é mediano. Utilizo a palavra civilização para fazer eco ao título de Freud, e sem que se trate, aqui, de recalque. Um crescimento potencial dos valores médios, medianos, realiza-se irresistivelmente, e viveremos o triunfo dos valores medianos. Essa é uma versão da morte do absoluto, a substituição do absoluto pela mediana, ou seja, pelo cálculo estatístico, de tal forma que Musil pode falar do verdadeiro como sendo suplantado pelo provável. O incomparável Eis aí o enquadre, o contexto que não isolamos e no qual a psicanálise surgiu. Lacan dizia que a condição do acontecimento Freud foi a rainha Vitória. É uma maneira imagética, emblemática, de assinalar que foi preciso uma recrudescência social do recalque para que se produzisse, nesse contexto, o que se deve chamar uma liberação da fala. Nós o observamos nas pacientes de Freud. Elas encontram em Freud, e elas o formam para que ele o seja, um interlocutor, um ouvinte daquilo que elas não podem dizer em outro lugar. Dócil ao desejo delas de dizer, Freud, pouco a pouco, conformou-se ao que, para nós, de modo mais desencantado, é a posição do analista, posição na qual o que é recalcado pode chegar a ser dito de um outro modo que não através do puro e simples retorno do recalcado, pode chegar a ser dito de modo a se desenodar. Freud previa que as sociedades vitorianas se esboroariam e que a psicanálise teria algo a ver com isso. Ele antecipava, em seu famoso texto de 1910 [30], que já comentei, uma Aufklärung social, o triunfo das Luzes na sociedade, que faria com que aquilo que não se pudesse dizer, exibir, massificar, nos regimes vitorianos, encontraria a ocasião de achar seu caminho. Nesse sentido, muito foi realizado nas sociedades em que vivemos. Razão pela qual sugiro que não foi apenas em relação à rainha Vitória que a psicanálise foi possível, ou que se achou necessária, foi também por causa de Quételet, menos espetacular, sem dúvida, do que a rainha Vitória. A psicanálise apareceu na época do homem sem qualidades, e não saímos dessa época. Decididamente, mais do que nunca entramos nela. Nenhuma Aufklärung nos protege dela, visto que o reino do cálculo, o avanço com números e medidas no domínio do psiquismo, pode igualmente recomendar-se do espírito das Luzes. Nada de preconceitos! Sem dúvida, foi porque a pressão do grande número, a emergência do homem sem qualidades se tornou insuportável que a psicanálise tomou a seu cargo a clínica, a arte do um por um. Ela se encarregou não do um por um da enumeração, mas sim da restituição do único em sua singularidade, no incomparável. Este é o valor profético, poético, da recomendação técnica de Freud: escutar cada paciente como se fosse a primeira vez, esquecendo a experiência adquirida, ou seja, sem compará-lo e sem pensar que alguma palavra vinda de sua boca tem o mesmo uso que aquela vinda de um outro, e até de si-mesmo, e instalar-se, na experiência analítica, na estranheza do único. Isso me parece bastante convincente. Há um efeito em jogo, uma correlação, uma compensação entre a dominação crescente da estatística e essa arte singular que conheceu, durante um tempo, uma expansão universal nas sociedades que praticavam o cálculo dos grandes números. Um Bion chegou até a dizer: “Esqueçam tudo sobre o mesmo paciente. Que cada sessão seja como uma primeira vez, uma emergência”. Ao mesmo tempo, trata-se da mesma época, a de Freud ou de Quételet, a do homem sem qualidades, uma vez que a psicanálise só funciona sobre o fundamento do determinismo o mais desgrenhado. O que Lacan cristalizou no significante do sujeito suposto saber. A associação livre, o método que consiste em partir de qualquer enunciado, como se por acaso, só é pensável porque há no horizonte a noção de que se trata de uma associação determinada. Portanto, realiza-se igualmente na operação analítica e no cálculo estatístico a mesma volatilização da liberdade individual. A associação livre aparece estritamente condicionada. Do lado do analista – Lacan via nisto o próprio fundamento da certeza do analista -, trata-se de balizar, demonstrar regularidades no enunciado fortuito - Lacan dizia “de primeira” - do analisante. São não somente as leis da fala que estão aqui em questão, as leis do significante, mas também as leis internas ao discurso do paciente, que permitem extrair as constantes e as leis próprias ao seu discurso.
2. A prática do questionário.
Quadradinhos a preencher. Para continuar a balizar esses elementos que se ordenam segundo a época, podemos correlacionar ao método da associação livre esta prática que só conhecemos, sem dúvida, em seu início, que está em vias de se difundir, de atingir até mesmo os entornos de nosso ato: a do questionário. Talvez isso esteja ainda longínquo para nós, mas a geração que chega se formará nela. Foi com assombro que tomei ciência disso, nos últimos dias do ano 2003, dia 29 de dezembro, ao ler a circular difundida pelo Bulletin officiel de l’Éducation Nationale, em 11 de dezembro. A notícia me foi trazida por Gabriel, como o Anjo Gabriel, Gabriel Chantelauze: o Ministério da Educação Nacional e o da Saúde tomaram a decisão de fazer as crianças da sétima série preencherem, a partir do próximo retorno às aulas, questionários de saúde mental. Esta não é a obra de um impulsivo, ela é pensada, fundamentada no pensamento da administração. Ao escutar, ao observar o debate ocorrido nessa segunda-feira no Senado, fiquei feliz ao ouvir ressoar, no semicírculo, esta víscera da democracia, a voz do Sr. Jean-Pierre Sueur, senador e agrégé em gramática, que interpelou o quanto pôde sobre o que essa decisão podia ter de exorbitante[31]. Caso isso seja feito, as próximas gerações serão formadas, desde tenra idade, para pensar, para pensar-se em termos de questionário. Não posso prejulgar o questionário que será do tipo: “Você se entristece?” E preenche-se o quadradinho: um pouco, nunca, raramente, com freqüência, muito, o tempo todo.. Sem dúvida, a prática do questionário tem fundamentos extremamente complexos. Diante dessa balbúrdia atual, não tive tempo de remontar ao nascimento do questionário, à maneira como ele se organizou. Isso supõe interrogar o sujeito, dar-lhe a palavra, solicitá-lo, ou seja, um movimento contrário ao de uma medicina que dispensa cada vez mais o testemunho do sujeito. Ao menos formalmente, isso tem algo a ver com a psicanálise. Dizem-lhe: “Fale”, ou melhor: “Escreva”. Convidam-no a responder, mas o sujeito é, desde então, capturado em um aparelho de escrita, em um dispositivo que faz com que sua resposta seja necessariamente comparável àquela de um outro, quer ela seja a mesma, diferente, na média... Saber-se-á que 40% dos alunos ficam tristes de vez em quando. O resultado ou a inépcia do resultado não tem nada a ver com o que está em questão. Apenas o fato de se situar o sujeito nesse dispositivo de escrita já o destitui daquilo que ele tem de único. Caso ele rasgue a folha, não responda, ele estará na porcentagem dos refratários. Há nisso alguma coisa que não tem exterior. Talvez chegue o momento em que os questionários serão queimados, junto com a escola, e se recusará imprimir os questionários com seus quadradinhos, porque estes quadradinhos que preenchemos tiram nossa pele. Não a nossa, a dos que virão. Eis aí o instrumento cujo uso vimos chegar. Anteriormente, não se preenchia quadradinhos. Constatou-se que ele era muito cômodo para obter respostas calibradas, sem retórica. Esse instrumento comporta que, na existência, tudo é questão de mais ou de menos, e que esse mais ou menos não vem em um continuum, mas em unidades discretas. Compõe-se uma cadeia significante de zeros e de um, uma cadeia significante binária, propriamente digital. Entra-se, então, no cálculo estatístico, um cálculo de medianas. Não há nada que explique melhor a prevalência da mediana do que o quadradinho vazio onde cada um deve imprimir sua marca sob a forma de um entalhe, entalhe que Lacan balizara como o do animal abatido, pré-histórico. O animal abatido, são vocês!
O behaviorismo. Entre os fatores desta era deve-se dar um lugar de destaque a Watson, o criador do behaviorismo. Durante muito tempo, só se dizia a palavra em inglês a fim de marcar “não quero nem de graça!”, mas retomei os textos originais de Watson, a introdução da segunda edição de sua obra Behaviorism[32]. Ele diz, com todas as letras: “Se, na qualidade de psicólogo, você pretende continuar cientista, você deve descrever o comportamento do homem em termos que não são diferentes dos que você utilizaria para descrever” — e o que é que ele escolhe para dizer? — “o comportamento do boi degolado por você”. Observem que, mesmo quando me deixo levar, tenho as referências. O questionário, que é carregado de uma cadeia significante, que lhes faz cadeia significante, é também a encarnação, a materialização de uma linguagem que quer ser unívoca. Disso decorre o cuidado com o estabelecimento do questionário a fim de que ele seja inteiramente não ambíguo. A estandardização opera sobre a própria linguagem e vemos que, de modo binário, a prática do questionário se opõe, termo a termo, à prática analítica que, pelo contrário, intensifica a ambigüidade. A arte da análise está no fato de que, no contexto da sessão analítica, cada palavra seja carregada de uma multiplicidade de significações, que o analista tenha como disciplina saber que não sabe o que você diz, que deverá aprender sua língua, seu uso único da língua. Isso só é possível sob a condição de que você próprio esteja, em relação ao seu dito, nessa posição de estranheza. A elaboração do questionário, ao contrário, visa a constituir com a língua usual uma metalinguagem unívoca. Todas as questões, ali, são infinitas. Por isso, há edições de questionários. O Sr. X critica o questionário do Sr. Y, porque a questão é sempre tendenciosa, ela nunca é suficientemente unívoca. Caso a prática do questionário se difunda desde a época do berço, ela acabará tendo um efeito de estandardização sobre a língua. Para poder fazer com a língua o que você quiser, é preciso que você fale a linguagem dela. No questionário, é disso que se trata: o operador os obriga a falar a linguagem dele. Na análise, é o não saber o que isso quer dizer que produz o efeito de sujeito suposto saber, sua fala é referida a ela própria. Se há determinismo, é um determinismo do único. Em contrapartida, aqui, o sujeito não é suposto, é o saber em pessoa que se apresenta. Poder-se-ia falar de preenchimento de quadradinhos como do ritual imposto pelo sagrado do saber, a quem se traz o que ele demanda. Você aceita reduzir-se a uma combinatória de quadradinhos, e, assim, você se torna “o homem sem qualidades”. Todas as suas qualidades entram nos quadradinhos. A partir disso, você pode ser composto. Não há melhor representação do sujeito barrado de Lacan do que o quadradinho que se preenche, que não passa de uma variável. Quando você preenche o questionário, você confessa não ser nada mais do que uma variável do questionário. Podemos discutir a referência etológica, isto é, a primeira referência do behaviorismo. Vocês podem vê-la, por exemplo, em o “boi que se degola”. Será preciso que eu ilustre, algum dia, o emblema do behaviorismo: the ox that you slaughter. Da obra de Watson, só conheço esse livro, mas talvez seja possível encontrar a relação que ele tinha com o matadouro. Ele prevê a resistência, a indignação, e responde a isso de uma maneira que não é antipática, cujo parentesco de época com Freud pode ser visto: o behaviorismo, assim como a psicanálise, são dessas disciplinas que trouxeram a desidealização à era do homem sem qualidades. A imagem é sanguinolenta, mas participa do grande movimento de desidealização do qual a psicanálise faz parte, e do qual foi possível censurá-la por ter se afastado sublimando a linguagem. Mas, nas terapias, no behaviorismo, no cognitivismo e nas terapias que vimos deles se deduzirem, não é o animal que é o modelo, mas, antes, a máquina, o objeto-máquina.
3. O ideal da Saúde Mental.
Estorvo Alguns objetos foram chamados gadgets, porque eram considerados fúteis. Trata-se de objetos nascidos da indústria e que incorporam o cálculo. Quero enfatizar a relação do sujeito com objetos que comportam uma incorporação simbólica. Mas isso é dizer muito pouco. São objetos nascidos do simbólico. Os objetos nascidos do simbólico são objetos construídos, deduzidos, calculados, produzidos maciçamente. De todo modo, são inúmeros os exemplares, implicam um novo gênero de real surgido com a revolução industrial, um real que é o produto da medida e do número – não de um savoir-faire -, são subprodutos do discurso científico e repousam sobre o fato de se pôr o número a trabalhar. Era o que Lacan visava, durante um tempo de seu ensino, quando evocava a invasão da vida pelo real, tendo esse real se tornado, segundo sua expressão, extremamente incômodo. Isso significa captar o mal-estar na civilização de um modo diferente do de Freud, ou seja, não a partir do recalque, mas a partir do incômodo em que se achavam as pulsões devido ao recalque. É captar esse mal-estar na civilização partindo do fato de ele ser dominado pelo discurso científico cuja propriedade é a de fazer pulular o real de um modo muito especial. Lacan o disse em uma conferência na Itália, tomando como exemplo a própria mesa do conferencista: “Esta mesa é alguma coisa que tem uma insistência completamente diferente do que ela jamais pôde ter na vida dos homens anteriormente”. Não é grande coisa, porém é um objeto que não é mais talhado pela mão do homem, ele não é mais relativo a um savoir-faire. Através de um certo número de mediações, ele é filho do número e da medida. É um aparelho, e o aparelho substitui a coisa. Não se trata, aqui, do recalque que incomoda. Trata-se da máquina, uma vez que ela reconfigura o mundo e tem um efeito de invasão e de estorvo. A psicanálise compensa. Lacan evocava a própria psicanálise como uma resposta a esse estorvo do real, como um meio de sobreviver nele. Isso lhe parecia fundamentar a necessidade dos analistas. A necessidade não implica a probabilidade, mas indica que, apesar de toda uma maneira de tomar os impasses da civilização, para permanecer analista, é preciso começar a se esquivar de se tornar esse gênero de objeto capturado na medida e no número. Eles não nos pedem grande coisa: “Façam a lista para nós”. Só isso! Mas o que se avança nessa demanda, nesse convite, é, ao mesmo tempo, a promessa: “Tornem-se máquinas. Vocês serão como máquinas”. É a promessa, por exemplo, de que você poderá ser reparado, reprogramado, semelhante ao computador. E a grande promessa avança! Já chegamos aos bancos de órgãos, e já se cogita, quando soubermos produzi-los, nos supermercados de órgãos. Estarão nas prateleiras. Vi isso representado não em utopias, mas em projeções. Com efeito, o que é preciso para que se chegue ao ponto de sair às compras e perguntar: “Quanto custa este fígado?”. E ele será o seu. Voltaremos com ele e faremos com que seja colocado. Tudo o que gira em torno à clonagem gira em torno do ideal máquina. Para que isso se realize, é preciso primeiro ter sido reduzido ao estado de homem sem qualidades, é preciso começar por preencher os quadradinhos. Quando Lacan assinala que esse real é incômodo, e mesmo insuportável, essa é a própria definição do real como impossível de suportar. É a própria definição que Lacan dava da clínica: “O real como o impossível de suportar”. De certo modo, a clínica está por toda parte e, pelo fato de o real ser cada vez mais difícil de suportar, assistimos à promoção da saúde mental.
Adaptação. Aqui também há uma história, uma arqueologia a ser feita que deverá esperar por dias mais serenos. Antes de pesquisar sua arqueologia, apreendamos a lógica que aqui está em marcha. A saúde mental é o ideal de um sujeito para o qual o real cessaria de ser insuportável. Quando se parte disso, só se encontra distúrbio mental, disfuncionamentos. É preciso que a língua, a nossa, não se deixe ganhar por este sintagma: distúrbio mental. O conceito de distúrbio mental veicula a noção de saúde mental, e foi este conceito que desfez as esplêndidas entidades nosográficas herdadas da clínica clássica. O distúrbio mental é uma unidade e, desse modo, pode ser cingido, balizado pelo método dos quadradinhos. Isso não é um absurdo. Tive a ocasião de assinalar, en passant, que o conceito lacaniano de sinthoma respondia à mesma exigência de passar sob as construções nosológicas para isolar unidades discretas de funcionamento. O sinthoma é o distúrbio mental considerado como aquilo de que temos um gozo. É, antes, o que faz com que achemos o real suportável, o que permite gozar do real. Por que não se tinha este ideal de saúde mental anteriormente? Tampouco se tinha a O.M.S. É preciso interessar-se na O.M.S., a Organização Mundial de Saúde. A partir do que eu vi da organização da saúde na França, estou persuadido de que a Organização Mundial de Saúde é aterrorizante. Busca-se, ali, a resposta universal ao mal-estar na civilização. Por que antes não havia essa promoção da saúde mental? É que se imaginava que o mundo fora feito para o homem e se podia pensar, então, que a relação era naturalmente harmônica. Hoje, a harmonia faria rir. Há as ersatz. As pessoas se evadem para ir ao encontro de uma pequena zona de harmonia, respirar um ar saudável, ir ao encontro da natureza, do que resta dela, para não ver seus congêneres. Mas o conceito que suplantou o de harmonia e dominou o imaginário durante séculos foi o de adaptação. Isso diz tudo. É preciso adaptar-se. Aliás, esse é o único critério da saúde mental. E quem quis introduzi-lo imediatamente na psicanálise, porque era muito astucioso, foi Heinz Hartmann. Ele fez uma monografia sobre a adaptação. Foi um de seus primeiros escritos[33]. A adaptação traduz precisamente o fato de que temos de viver em um mundo que não é mais feito para homem, uma vez que ele é, inclusive e cada vez mais, feito pelo homem. Lacan podia dizer: “As pessoas são devoradas pelo real”. Poderíamos ver esse quadradinho a ser preenchido como uma boca que vai nos morder.
Um real de semblante. Será que o real do qual se trata, aqui, é o real? É um real, visto que ele é impossível de suportar. Diz Lacan: “É o real ao qual as pessoas são capazes de aceder”. São capazes de aceder a esse real que produziram baseados no cálculo e no número e, a partir daí, se fizeram uma vida infernal. É um real materializado — Lacan emprega esse adjetivo. É preciso ainda entender de que materialismo se trata. Esse materialismo é também um artificialismo. É bem isso que animava a polêmica discreta de Lacan com Lévi-Strauss, que pensava que a combinatória da estrutura - tal como ele a usava, por exemplo, no que concerne ao pensamento selvagem -, feita de uma complexificação de relações binárias, refletia a estrutura do cérebro – conclusão que, na época, causou escândalo -, refletia até mesmo a estrutura da matéria da qual era como se fosse o duplo. Não é um materialismo artificialista, um materialismo estilo século dezoito, mas um materialismo primário. Lacan opunha a isso argumentos que tirava do próprio Lévi-Strauss: não há apenas o mundo e a matéria, há também o lugar onde se dizem as coisas, que ele chamava a cena. É preciso ainda que o mundo venha à cena. Ali, ele é pego em uma outra estrutura. É o que Lacan chamava o grande Outro. O lugar do Outro é aquele onde, sejam quais forem a estrutura da matéria, as leis da física e mesmo as da estatística social, isso vem a ser dito. Aliás, sem dúvida, é por isso que há, em Lacan, tantas referências ao teatro. O teatro é como a reduplicação da cena à qual o mundo deve vir. É a linguagem quem impede de reduzir o mundo à imanência. Pela ação da linguagem, a imanência é trabalhada por uma transcendência que é um efeito da linguagem. É o que traduz o grafo de dois patamares de Lacan: há um mais além ligado ao próprio funcionamento da linguagem, um efeito de transcendência[34]. Se destacarmos o efeito de transcendência, obteremos a instância de Deus Pai. Nós o imaginamos anterior e criador, ao passo que, para Freud e Lacan, Deus não é criador, mas sim criado, criado pela linguagem. E, se ele existe, é, quando muito, uma ex-sistência, uma subsistência a partir da linguagem. O mundo é reconfigurado pela cena segundo as leis do significante. São leis próprias, distintas das leis físicas ou estatísticas. Lacan podia utilizar os próprios exemplos de Lévi-Strauss. Há o calendário cronológico: quando se mencionam certas datas, elas são carregadas de significação. Se você menciona 2 de dezembro, 18 de junho, pelo menos em um dado contexto cultural, são datas que marcam e que respondem a outras funções, que têm uma outra presença, uma instância diferente de uma data puramente cronológica. Percebe-se pelo menos a imaginarização que se apodera da coisa, mas, um passo além, a própria ciência, uma vez que ela opera sobre uma realidade, faz com que esta desapareça. Em seu Seminário, Lacan tomava o exemplo dos elefantes, a partir da linguagem. A explicação científica, seja ela qual for, deixa apenas, como resíduo daquilo de que se trata, uma combinatória de elementos significantes. Ela volatiliza tudo o que podia, inicialmente, enganchá-los na busca e na própria substância da coisa. Quando a explicação científica se conclui, ela faz inclusive desaparecer a causa para substituí-la pela lei. A ciência substitui a causa pelo significante, ela desemboca na criação de semblantes. O que prova sua eficácia é que ela possa reproduzir. Há um efeito de reprodução interno à operação científica. Sobre este real que invade, e que não é o real, talvez possamos dizer que ele é muito mais opressor e insuportável por ser um real de semblante.
Afirmação de si Tropeçamos nisto: o significante que é universalizável, reprodutível, desmontável, que, em última instância, está no mesmo registro do semblante, e o pequeno a que não é universalizável mas, ao contrário, marcado pela singularidade do encontro, não têm o mesmo regime. Daí a impossibilidade de se escrever S2 dominado pequeno a, e que está na linha superior do discurso da universidade, dizia Lacan, o impossível da ambição de dominar o gozo pelo saber. Há um mestre escondido, que é a decisão mesma de instaurar o significante como mestre. O resultado da operação, resultado que se espera desse domínio do gozo pelo saber, está encarnado em todos esses questionários de saúde mental. Só se trata disso: dominar as perturbações, as emoções, a singularidade da experiência, através de um pequeno aparelho de saber ultra reduzido e cujo produto é lhe transformar num homem sem qualidade, homem quantitativo, esperando lhe fazer encontrar, mas isso é impossível, o significante-mestre. Qual é a chave de todas as terapias cognitivo-comportamentais? É algo que se chama afirmação de si. Por qualquer via que se tome, o atrativo em todas as terapias cognitivo comportamentais é a afirmação de si. Uma vez que vocês são produzidos como homem sem qualidade, fazem com que vocês sejam os mestres de si mesmos. A promessa vai longe. Prometem-lhes o poder ilimitado sobre vocês mesmos. Há técnicas para isso. Refiro-me a um manual que está em sua terceira edição.[35] Isso visa particularmente às pessoas que são vítimas de perturbações das competências sociais. Será que há pessoas que não tenham perturbações de suas competências sociais? Isso pode chegar até os grandes tímidos. O problema é que, com os grandes tímidos, é muito difícil fazer terapias de grupos. Vou lhes explicar os princípios que só valem se você suporta a vida em grupo: “Frequentemente deve-se fazer preceder aos grupos da afirmação uma fase de terapia cognitiva individual, uma vez que a maior parte dos pacientes é muito frágil para abordar o grupo. Cungi (1996) desenvolveu um programa de terapia em um livro que propõe uma série de exercícios práticos. Esse método está em fase de avaliação”. Aqui está o coração das técnicas de afirmação de si: “As técnicas de afirmação de si preparam o sujeito para encarar as situações sociais difíceis. Elas se enraízam numa concepção democrática das relações humanas e podem se resumir a sete mensagens principais.” Devem ser repetidas com insistência, freqüentemente, para lhes recondicionar e tranqüilizar. A autoterapia é um ponto forte, importante pelo que se pode apreender. “Primeiramente, seja respeitado pelos outros. Em segundo lugar, afirme seus direitos”. Fazemos isso, meu senhor! “Em terceiro lugar, não procure sempre ser amado por todos”. Eu tentei isso e não consegui. “Em quarto, tenha uma imagem positiva de você mesmo. Cinco, lute contra a depressão ativamente.” Vocês não pensaram nisso! “Sexto, encare os outros. Sétimo, pouco importa o fracasso, o importante é se afirmar.” Eis um esforço sensacional para preencher o abismo entre e S1.
III – Uma consciência de si
A autoavaliação... Dei-me ao trabalho de olhar o Boletim número 38, de novembro último, do Comitê Nacional de Avaliação das universidades[36] (CNE), fundando e presidido por Laurent Schwartz, que se confronta com a constituição do espaço europeu no ensino superior. Trata-se de fazer das coletividades do ensino superior – o que se estende a todas as coletividades que trabalham, nos estabelecimentos, nos centros de saúde – sujeitos autônomos definidos como sujeitos responsáveis, no sentido em que eles se engajam no cumprimento de uma tarefa e que são capazes de responder por esses engajamentos. Há um esforço, através da avaliação, de transformar em sujeito o coletivo. Ser responsável, ser capaz de responder diante de um Outro. O paradoxo é que o fato de fazer dessas coletividades sujeitos e de lhes conferir uma autonomia responsável faz, ao mesmo tempo, emergir um Outro ainda mais exigente por ser parceiro deles. Cito uma frase dessa literatura um tanto ingrata: “Na perspectiva de uma autonomia crescente, o número de parceiros aos quais convirá fornecer informações confiáveis e pertinentes aumenta.” Eis um Outro, um Outro ao qual se deve informar, ao qual se deve transmitir o saber, que está em inflação constante. É um Outro que exige não só que seja feito, operado, tratado, mas também que se faça a demonstração. Deve-se demonstrar que se assumem as responsabilidades, se respeitam os engajamentos, e isso, ao melhor preço. É um espaço no qual os coletivos são sujeitos que têm continuamente de demonstrar, sob o olhar do Outro,que se pode confiar neles, exatamente, demonstrar a fim de dar confiança. Eles chamam de “a lógica da demonstração.” Isso me parece o cerne do que se percebe na avaliação, no passo seguinte àquele que evoquei antes. Seus dois pólos são a demonstração e a confiança. Isso quer dizer uma única coisa: esses coletivos sujeito têm de se haver com um Outro que é desconfiado por estrutura e diante do qual é preciso permanentemente exonerar-se, justificar-se por existir e funcionar. O discurso de Laurent Schwartz, de 10 de maio de 1985 pela instalação do Comitê nacional de Avaliação[37], só fala de confiança, liberdade, coragem, objetividade, transparência. Ele afirma que o Comitê de Avaliação não exerce um controle policial. Isso dá confiança! Isso realça o fato de que, para que esses coletivos sejam sujeitos, a etapa maior dessa subjetivação do coletivo é a autoavaliação. Lemos a recomendação de que, num coletivo, ela seja sempre confiada a uma instância específica que assegure permanentemente a orientação do coletivo. Isso só quer dizer uma única coisa: trata-se de dotar o coletivo de uma consciência de si. A autoavaliação confiada a uma instância que, permanentemente, orienta o coletivo, só consigo concebê-la como uma consciência de si objetivável sob a forma de um saber transparente e comunicável ao Outro. Disso resulta que toda atividade do coletivo – e isso desce evidentemente aos elementos individuais – deve ser continuamente redobrada pelo saber da atividade. Vocês têm uma tarefa a fazer, cuidados a distribuir. Sua atividade específica enquanto coletiva deve ser redobrada pela atividade de elaboração do saber sobre essa atividade. É aristotélico. Trata-se de criar uma alma para o coletivo, de lhe dotar de alma. Poder-se-ia mesmo dizer – talvez seja por isso que há tanto entusiasmo inclusive religioso pela avaliação – que isso faz parte do processo de conscientização da humanidade, no sentido de Teilhard de Chardin. O coletivo acede à consciência através do processo de avaliação. Em termos aristotélicos, dota-se o coletivo de uma alma. No horizonte, a autoavaliação dota o coletivo de uma alma que orienta.
... e seu impasse Vamos dar ainda mais um passo a fim de nos apercebermos que é um modo inteiramente inédito de formação de unidade dos coletivos. Conhecemos o modo isolado por Freud na sua Psicologia das massas, o da formação da unidade do coletivo pela identificação e, nos termos de Lacan, discute-se saber se é ao significante-mestre ou pela via do objeto a. Trata-se de outra coisa aqui: tentar dar ao coletivo sua unidade pelo saber, S2. Isso jamais tinha sido tentado, ao passo que todas essas formações coletivas, inclusive aquela que Lacan estuda em “A psiquiatria inglesa e a guerra”, a partir de Rickmann e Bion, passam pela função do líder, do um-a-mais.[38] Essa função é absolutamente ausente em todos esses traços de avaliação porque se tenta obter a subjetivação do coletivo unicamente pelo saber, e por um saber homogêneo. A função do mais-um ou do menos-um é estritamente impensável nesse caso. Essa mesma avaliação, a elaboração do saber de si da atividade, tem, um custo. Ela custa e desvia os recursos do coletivo em que ela se implanta, devendo ela mesma justificar sua existência na relação custo-benefício. Eles são obrigados a observar que o primeiro efeito da implantação da avaliação num coletivo é de desorganizar e empobrecer, e devem acrescentar: “A avaliação deve difundir uma cultura econômica para que suas vantagens econômicas sejam identificadas e superiores ao custo financeiro que ela engendra”. Se nessa paisagem de ruínas e pesadelos deve brilhar uma esperança, esta vem do impasse intrínseco dessa operação de avaliação. Primeiramente, não é possível obter a subjetivação dos coletivos unicamente pelo saber. É um sonho especificamente burocrático. Em segundo lugar, esse sonho é engolido em sua eficácia pelo paradoxo da avaliação, quer dizer, o empobrecimento imediato e o caos que a avaliação introduz sob o pretexto de introduzir a ordem. É bem mais lúcido constatar, como fazia Lacan, um pouco depois de “A psiquiatria inglesa e a guerra”, que as regras de autonomia da consciência de si, mesmo transpostas ao coletivo, estão condenadas pelo advento do discurso sobre o saber.[39] O império do saber é contraditório a esse sonho remanescente da autonomia da consciência de si. A avaliação só faz traduzir esse sonho de autonomia, ele próprio já desfeito pela época em que estamos: a de um saber, ao contrário, anônimo e impessoal. É um esforço desesperado para restituir ao coletivo uma consciência de si, enquanto lhe é impossível emergir no reino do saber.
Tradução: Vera Avellar Ribeiro -------------------------------------------------------------------------------- [1] Texto e notas estabelecidos por Catherine Bonningue a partir das aulas de 14 e 21 de janeiro e de 4 de fevereiro de 2004 do Curso de Orientação Lacaniana III, 6, ministrado no quadro do Departamento de Psicanálise de Paris VIII e da Seção Clínica de Paris Saint-Denis. O início da aula de 4 de fevereiro (a exposição de Éric Laurent assim como o comentário de J.-A. Miller) foi publicado em Quarto n° 82, revista da Escola da Causa freudiana na Bélgica. [2] Psicanalista. Diretor do Departamento de Psicanálise – Paris VIII. [3] Petrarca. Invectives. Paris: Jérôme Millon, 2003, p. 45. [4] Ibid., p. 7. [5] Ibid., pp. 7-8. [6] Musil, R. L´Homme sans qualités. Paris: Seuil, Points poche, 1956. Cf. Bouveresse, J. La voix de l´âme e les chemins de l´esprit Dix études sur Robert Musil. Paris: Seuil, 2001. [7] C.f. Rey ª, Dictionnaire historique de la langue française, Paris, Le Robert. 2000. [8] Artigo publicado no Le Monde, datado de domingo, 11 e segunda-feira 12 de janeiro de 2004 e citado por Philippe Sollers no Grand Meeting de la Mutualité de 10 de janeiro de 2004. [9] Alphonse Bertillon nasceu em 1853 no seio de uma família em que vários membros foram demógrafos. Por volta de 1880 ele inventou a antropometria judiciária, um método de identificação de criminosos baseado em uma vintena de medidas antropométricas que permitia fornecer uma descrição única e infalsificável de uma pessoa. O método por ele desenvolvido recebeu o nome de bertilhonagem. Alphonse Bertillon tomou posse em 1879 da Chefatura de Polícia para estabelecer as fichas antropométricas dos malfeitores. Ele pensará uma “sinalização antropométrica” própria a cada detento. Esta técnica consiste em uma enumeração metódica e sistemática das características físicas invariáveis de um indivíduo: altura, envergadura, largura e comprimento da cabeça, cor da íris, largura do dedo médio, do mínimo e do pé direito. Em 1º de julho de 1887 foi oficialmente criado o “serviço de identificação de detentos”, naturalmente confiado a A. Bertillon. Este método se impôs muito rapidamente por todo o mundo: os Estados Unidos o adotam desde 1888, tendo sido sucedidos por mais de meia centena de países. Este método vai muito rapidamente ser complementado pela “fotografia antropométrica” constituída por clichês de face e de perfil dos detentos tirados em certas condições rigorosas (aparelho e mesa base fixa, iluminação constante). Esse método eficaz será entretanto substituída, no fim do século vinte, pela impressão digital, de manejo mais fácil e custo menos oneroso. Por volta de 1914, pouco antes de sua morte, Alphonse Bertillon sugeriu aos artistas que colocassem suas impressões em seus trabalhos, para impedir a falsificação. Um artigo sobre esse tema foi publicado no Matin c com o título “Bertilhonage, on ne truquera plus lês oeuvres d’art”, no qual um certo número de artistas célebres, entre os quais Rodin, declaravam ser favoráveis a esse sistema. http://www. prefecture-police-paris.interieur.gouv. fr/documentation/reportages/liaisons76/p20.pdf. [10]Cf. lição de 10 de dezembro de 2003, publicada em Miller J.-A. & Milner J.-C., Voulez-vous être évalué?, Paris, Grasset, 2004. [11]Cf. o relatório do INSERM sobre Le dépistage des troubles mentaux chez les enfants et les adolescents, publicado em dezembro de 2002, uma síntese desse relatório está disponível no site do INSERM desde o início de 2003. [12] Cf. Beck U., La société du risque. Sur la voie d’une autre modernité, Paris, Aubier, 2001. [13] Cf. Bauby P., L’état stratège, Paris, Les Éditions ouvrières, coleção Portes Ouvertes, 1991. [14] Cf. J.-A., “L’ironie des Lumières”, Théatre Hébertor, 1-0/11/2003: La question des Lumières. La regra do jogo. nº 24, 2004. [15] Cf. Malthus T.R., Essai sur le príncipe de population (1798), Paris, Garnier-Flammarion, 1992. [16] Cf. Lacan, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938), Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 2003, pp.29 - 90; texto publicado pela primeira vez no tomo VIII de L’Encyclopédie française. [17] Cf. Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1985. [18] Cf. Chevalier, L., Classes laborieuses et classes dangereuses, à Paris, pendent la première moitié du siècle XIX, Collection civilasation d’hier et d’aujourd’hui, 1958. [19] Cf. Parent-Dechâtelet, A., La prostitution à Paris au XIX siècle, Paris, Seuil, 1981. [20] Cf. Lacan, J., “O aturdito” (1973), Outros escritos, op. cit., p.460. [21] Cf. Guerry A.-M., Essai sur la statistique morale da la France, Paris, Crochard, 1833. [22] Drobisch M. W., Die Moralische Statistik und die Menschliche Willensfreiheit, Leipzig,L. Voss, 1867. [23] Durkheim É., Le suicide, Paris, PUF Quadrige, 2002. [24] Cf. lição de 10 de dezembro de 2003, publicada em Évaluation, op. cit. [25] N.T. Assalto. Em inglês no original. [26] Lambert-Adolphe Quételet (Gand, 1796 - Bruxelles, 1874) estudou astronomia étudia no Observatório de Paris e a teoria das probabilidades com Laplace. Foi Doutor em Ciências da Universidade de Gand, depois professor nos Athénées royaux de Gand e de Bruxelles. Em Sur l’homme et le développement de ses facultés, ou Essai d’une physique sociale (1835), Quételet apresentou sua concepção do homem mediano como valor central em torno do qual as medidas de uma característica humana eram agrupadas segundo uma curva normal. Influenciado por Pierre Laplace e Joseph Fourier, Quételet foi o primeiro a utilizar a curva normal de modo diferente do de distribuição de erros. Seus estudos sobre a consistência numérica dos crimes suscitaram uma ampla discução entre liberdade e determinismo social. Ele reuniu e analisou as estatísticas sobre o crime, a mortalidade, e trouxe melhorias para as decisões das sanções. Seu trabalho suscitou uma grande controvérsia entre os sociólogos do século XIX. No observatório de Bruxelas, estabelecido por ele em 1833, a pedido do governo belga, trabalhou sobre os dados estatísticos, geofísicos e meteorológicos, estudou as chuvas de meteóros e estabeleceu métodos de comparação e de avaliação dos dados. Quételet organizou a primeira conferência internacional de estatística em 1853. A medida de obesidade utilizada internacionalmente é o índice de Quételet. É QI = (peso em quilogramas) / (altura em metros). Se QI > 30, então uma pessoa é oficialmente obesa. [27] Cf. os boletins da Agência Lacaniana de Imprensa, La guerre des palotins, notadamente o n° 10, de 20 de janeiro de 2004 (site : www.forumpsy.org). [28] Remeter-se sobretudo ao texto de J.-A. Miller «Psychanalyse pure, psychanalyse appliquée à la thérapeutique et psychothérapie», La Cause freudienne n°48, Paris, diffusion Seuil, 2001, pp. 7-35. [29] Cf. nota de Pontalis. [30]Cf. Freud S., « Les chances d’avenir de la thérapie psychanalytique » (1910), Oeuvres complètes, Paris, PUF, 1993, pp. 63-73. Este texto foi comentado por J.-A. Miller em L’orientation lacanienne III, 4 « Réflexions sur le moment présent », lição de 6 de fevereiro de 2002. [31] Debate do Senado de segunda-feira 19 de janeiro de 2004 sobre a emenda Accoyer-Giraud-Mattei, do qual se pôde ler a transcrição no site do Senado. [32] Watson J. B., Behaviorism, trad. franç., Le behaviorisme, Paris, Éd. du Centre d’études et de promotion de la lecture, 1972. [33] Cf. Hartmann H., La psychologie du moi et le problème de l’adaptation, Paris, PUF, 1968. [34] Cf. Miller J.-A., L’orientation lacanienne II (1997-98), lição de 28 de janeiro de 1998. [35] Cottraux, J., Les thérapies comportamentales et cognitives, Paris, Masson, 1998. [36] Cf. htpp://www.cne-evaluation.fr/WCNEpdf/bulletin38.pdf. [37] Esse discurso está disponível no site do CNE. [38] Cf. Lacan, J., “A psiquiatria inglesa e a guerra” (1947), Outros escritos, op.cit., p.112. [39] Não encontramos a referência precisa. Talvez J.-A. Miller se refira ao “Discurso de Roma”, 1953, Outros escritos, op. cit., pp. 144 e seguintes. |