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O
coito enigmatizado
Uma leitura de “A seita da Fênix”de Borges
Jacques-Alain Miller2
navarin@easyconnect.fr
El tiempo es la substancia de que estoy
echo.3
Jorge Luis Borges
Borges escreveu um pequeno conto, sensacional, no qual ele apresenta a
prática de uma seita enigmática. No final do conto, descobrimos
que essa prática estranha é, na realidade, o coito.
Poderíamos descrever a prática da psicanálise do
seguinte modo: você vai a um lugar preciso onde alguém o
espera; ali está a porta de acesso, o canal para o inconsciente.
Então, nesse lugar, você copula com o inconsciente, você
paga, vai embora, depois, recomeça.
Qual é o gozo que ali se paga?
Ao descrevermos as coisas assim, um tanto de fora, podemos responder à
pergunta de Lacan: por que a psicanálise não inventou uma
nova perversão? É que a própria análise é
uma perversão. É um modo novo e singular de gozar da linguagem
e de fazer brotar dela alguma coisa rara.
Para mim, esse conto de Borges é a jóia de seus escritos.
Ele o alojou, in fine, em sua compilação Ficções,
cujas diferentes edições são regularmente enriquecidas.
Esse conto – que não tem mais de cinco parágrafos
– intitulado “A seita da Fênix”4
, aparentemente passa despercebido nessas edições.
Uma espécie de canular
O primeiro parágrafo introduz a
seita da Fênix sob a forma de uma paródia. Como muitas das
coisas escritas por Borges, esse conto é um canular. De saída,
algumas frases, sem dúvida por se tratar de Flávio Josefo,
nos fazem pensar nas menções dos sectários de Jesus
encontradas na literatura antiga.
Pelo que se disse, pelo que se escreveu, essa abordagem indireta convém
à própria noção de seita, porquanto ela se
reúne em torno de um saber essencialmente secreto, não exposto,
um saber sob um véu, um saber suposto, para retomar o termo de
Lacan.
Para se aceder ao saber secreto dessa seita, que em si mesma é
supostamente secreta, para acedermos ao que ela é, dispomos apenas
de indícios, fragmentos recolhidos em todas as literaturas, indícios
desfalcados e eventualmente contraditórios.
Borges é excelente na evocação do saber fragmentário,
o das velhas crônicas. Mas o vemos também extrair um pedaço
de sistema do idealismo alemão: o argentino colhe, ali, uma pequena
frase ressonante, e então o fragmento surge em seu resplendor.
Saber e segredo
Em toda sua produção literária,
Borges ostenta o corpo despedaçado do saber. Ele se move como um
peixe dentro d’água em S de A barrado, o que designamos como
o caráter necessariamente fragmentário, explodido, desfalcado
do saber. Ele consegue fazer brotar uma poesia da erudição
canularesca.
Borges leu muito, principalmente a Enciclopédia
Britânica, de onde extraía pequenos fragmentos aludindo
a uma cultura universal. Nesse pequeno texto, “A seita da Fênix”,
ele conjuga o saber e o segredo, termos que parecem antinômicos:
de um lado, o que se sabe; do outro, o que não se sabe. Essa divisão
entre saber e segredo alimenta o imaginário da conspiração,
muito presente em Borges. A existência de uma conspiração
tem como efeito dividir a humanidade em duas classes distintas: os que
sabem e os que não sabem.
Devemos reconhecer que, em seus primórdios
– porquanto naquela época os analistas se reuniam em torno
de um saber que não era para todos, um saber que apresentava um
certo caráter de originalidade pretendendo ao mesmo tempo a universalidade
–, o movimento psicanalítico foi abordado, concebido como
uma espécie de conspiração. Aliás, não
é dito que os primeiros psicanalistas e o próprio Freud
não cederam muito ao imaginário da conspiração.
Entre eles, ela era chamada a causa! Mas é também a conspiração
freudiana. Essas questões de seita e de conspiração
têm como ponto de partida o fato de que há os que têm
o saber e os que não o têm. De um lado, alguns, os Happy
Few Band of Brothers5
; do outro, todos os outros.
Mas a torção impressa por Borges no imaginário da
seita, particularmente nesse texto, é a revelação
de que esses alguns não sabem mais do que todos os outros, o que
não os impede de agrupar-se, reunir-se. Em torno do quê?
Do significante da seita que Borges imediatamente nos mostra como altamente
duvidoso. Eles não sabem mais do que os outros o que é um
segredo para os outros. E, no final do texto, nos é revelado que
aqueles que nos foram apresentados como alguns são tão numerosos
que constituem todos os outros.
O segredo para os outros é também um segredo para eles próprios.
Isso responde a esta frase de Hegel a respeito da arte egípcia,
encontrada em sua Estética: “Os segredos egípcios
eram segredos para os próprios egípcios”. É
o que acaba por emergir, pouco a pouco, nos cinco parágrafos de
Borges.
Duas grandes vertentes do saber....
Duas grandes vertentes do saber ocuparam
o que chamamos o Ocidente. O Ocidente dos ocidentais, chamados por Lacan
“ocidentados”: o saber grego, e o saber egípcio. O
saber grego é o saber ostentado, exposto, cujo modelo é
matemático. A seita dos matemáticos surgiu primeiro como
uma seita especial. E teve sucesso. Razão pela qual ela tem com
quê se manter na psicanálise, seita mais recente que ainda
não obteve o lugar central na cultura, lugar conquistado pela seita
dos matemáticos. É uma seita orientada para um real inteiramente
novo, extremamente sólido e que fazia Lacan empalidecer de inveja.
Como obter para a seita dos psicanalistas um real prometido ao mesmo sucesso
que o real matemático?
De um lado, o saber grego, o saber do matema: se começa, se termina,
não se tem nada a dizer, é um circuito completo, resta apenas
refazer o caminho ou integrar o resultado em uma estrutura mais compreensível.
Do outro lado, o saber egípcio, o saber codificado, misterioso,
suposto. Por certo devemos supô-lo para tentar uma decifração,
ou seja, substituir um certo número de significantes por outros
que nos digam alguma coisa e que, por isso, fazem com que os primeiros
também queiram dizer algo. Duas pontuações: o saber
grego e o saber egípcio, antinômicas, tal como o matema em
relação ao mistério.
... antinômicas
Essa antinomia foi essencial para o espírito
das Luzes. Podemos nos reportar a Voltaire, ao seu artigo “Seita”,
no Dicionário Filosófico: “Não há
seita em geometria. Não se diz: um euclidiano, um arquimediano.
Quando a verdade é evidente, é impossível erigir-se
partes e facções. Nunca se pôs em questão o
fato de já ter amanhecido ao meio-dia”. Isso é uma
ingenuidade, é claro. Pode-se perfeitamente discutir a questão
de saber se ao meio-dia já amanheceu. Trata-se ainda de saber,
por exemplo: meio-dia de onde? Esse é todo o espírito das
Luzes, o espírito anti-seita. Com efeito, é examinar todas
as coisas à luz desse meio-dia sobre o qual se discute, e estender
o meio-dia reinante sob o modelo matemático a todas as questões
desse mundo. Ah! É evidente que quando se põem sob a luz
do meio-dia verdades que só prosperam na sombra, verdades morcego,
essas verdades se evaporam. A Revolução Francesa sancionou
a vontade de examinar os fundamentos dos significantes-mestres como se
fossem significantes-matemáticos, assim como a vontade de querer,
em matéria política, ser demonstrativo e universal.
A psicanálise está dividida
entre o grego e o egípcio. Por um lado, o objeto de seu trabalho
é o saber do inconsciente, do tipo egípcio, porquanto deve
ser decodificado. Sabemos da fascinação pessoal de Freud
pelo antigo Egito, por sua arte, seus produtos. Ele se cercava de testemunhos
do saber codificado. Por outro, a psicanálise visa a conduzir esse
saber ao matema. A referência de Freud era o discurso cientifico.
Ora ele tinha o gosto, a fascinação pelo objeto egípcio,
ora ele martelava sobre a pertinência da psicanálise ao discurso
cientifico e sobre o fato de que o real do inconsciente precisava poder
ser atestado pelo discurso científico.
A questão é evidentemente
mais difícil do que a formulada por Voltaire. Não há
apenas especialidades em matemática, há seitas tendendo,
de fato, a tornar-se especialidades. Não há geometria, no
sentido em que ainda se podia escrevê-lo no século XVIII,
há geometrias. Além disso, a concepção intuicionista
das matemáticas surgiu no século XX, com traços sectários
extremamente marcados em torno de um líder, Brouwer, que concebia
seu intuicionismo como uma verdadeira cruzada.
Um saber separado
O dicionário Le Robert define seita
como o conjunto de pessoas que professam uma mesma doutrina filosófica,
ou como um grupo organizado de pessoas professando uma mesma doutrina
no seio de uma religião. Definição absolutamente
insatisfatória. Reportam-se à raiz da palavra segui,
seguir. Contudo, na palavra seita, é evidente, há algo de
uma secção, de sectio, que designa a ação
de cortar, de separar. A seita comporta essencialmente uma parcialidade
da verdade, uma opinião preconcebida em matéria de verdade.
Assumir-se como seita é reconhecer que o saber de que se trata,
o saber da doutrina, não é para todos (a seita retém
esse saber ou constata que outros resistem a ele). É um saber separado.
Por isso, a seita tem afinidades essenciais com o segredo, com o saber
não disponível para todos.
Em seu conto “A Seita da Fênix”, Borges começa
nos descrevendo uma seita muito antiga, de tal modo que só se pode
abordá-la pelo que chamei de indícios. Depois, num deslizamento
sensacional, ele a amplia para toda a humanidade, revelando em quê
a própria humanidade é uma seita.
O texto
Eis aqui o primeiro parágrafo.
“Aqueles que escrevem que a seita da Fênix teve sua origem
em Heliópolis e a derivam da restauração religiosa
que sucedeu à morte do reformador Amenofis IV alegam textos de
Heródoto, de Tácito e dos monumento egípcios, mas
ignoram, ou querem ignorar, que a denominação da Fênix
não é anterior a Hrabano Mauro e que as fontes mais antigas
(as Saturnais ou Flávio Josefo, digamos) só falam da Gente
do Costume ou da Gente do Segredo. Já Gregorovius observou, nos
conventículos de Ferrara, que a menção à Fênix
era raríssima na linguagem oral; em Genebra, tratei com artesãos
que não me compreenderam quando perguntei se eram homens da Fênix,
mas que admitiram, imediatamente, ser homens do Segredo. Se não
me engano, semelhante coisa acontece com os budistas: o nome pelo qual
os conhece o mundo não é o que eles pronunciam”.
O mistério reina e a menção de Genebra, aqui, é
comovente por ser o lugar escolhido por Borges para morrer, assim como
o lugar onde ele passou os anos mais felizes de sua adolescência.
Uma de suas últimas compilações de poemas se chama
Os conjurados que, segundo Borges, seria a união dos primeiros
cantões suíços visando formar a Suíça.
Em alguns versos, ele evoca essa conspiração, essa conjuração
inicial. O poema termina com a evocação de uma Suíça
que se estenderia pelo mundo todo, o que parece encantá-lo.
Que termo delicado: “Gente do Segredo”! É o nome próprio
de todas as seitas iniciatórias. Seria formidável chamar-se
“Gente do Segredo” em vez de psicanalistas. Ele diz também
“Gente do Costume” o que, nesse texto, anuncia o lugar que
ele dará a um rito misterioso.
Que termo delicado: “Gente do Segredo”! É o nome próprio
de todas as seitas iniciatórias. Seria formidável chamar-se
“Gente do Segredo” em vez de psicanalistas. Ele diz também
“Gente do Costume” o que, nesse texto, anuncia o lugar que
ele dará a um rito misterioso.
O rito é uma ação simbolizada e implica o fato de
se emprestar o corpo ao símbolo. Há ritos individuais descritos
por Freud por analogia com o rito antropológico. Mas o rito faz
laço social. No deslizamento realizado por Borges, todo segredo
de que se trata era introduzido pelos livros e pelos “dizem”.
Todo segredo revela concentrar-se em um rito.
No segundo parágrafo, ele faz a diferença entre a Gente
do Segredo e os ciganos. A Gente do Segredo não é constituída
de ciganos nem tampouco de judeus.
“... os sectários confundem-se
com os demais e a prova disso é que não têm sofrido
perseguições”.
Terceiro parágrafo.
“... não há grupo humano em que não figurem
partidários da Fênix”. Esta é uma seita que,
de algum modo, é onipresente, mistura-se com todos.
O quarto parágrafo subtrai suavemente da noção de
seita todos os traços que a particularizam. Eles não têm
um livro sagrado, nem memória comum, nem uma língua própria,
apenas um rito. Inclusive: “O rito constitui o Segredo”.
“Consultei os relatos dos viajantes, conversei com patriarcas e
teólogos: posso dar fé de que o cumprimento do rito é
a única prática religiosa que observam os sectários.
O rito constitui o Segredo. Este, como já indiquei, transmite-se
de geração a geração, mas o uso não
quer que as mães o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes;
a iniciação no mistério é tarefa dos indivíduos
mais desprezíveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem
de mistagogos. Também um menino pode doutrinar outro menino. O
ato em si é trivial, momentâneo e não requer descrição.
Os materiais são a cortiça, a cera ou a goma arábica”.
Isso é para dispersar o leitor. Começa-se, então,
a compreender do quê se trata. “Não há templos
dedicados especialmente à celebração desse culto,
mas uma ruína, um porão ou um vestúbulo são
considerados lugares propícios. O Segredo é sagrado mas
não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício
é furtivo e ainda clandestino e os adeptos não falam dele”.
Isso data do pós-guerra. “Não há palavras decentes
para denominá-lo, mas se entende que todas as palavras o denominam
ou, antes, que inevitavelmente o aludem e, assim, no dialogo, eu disse
uma coisa qualquer e os adeptos sorriram ouse incomodaram, porque sentiram
que eu tinha tocado o Segredo”.
Recentemente tive a ocasião de dizer que Borges havia sido muito
refratário à psicanálise, o que é verdade.
Aliás, ele disse que a psicanálise era o ramo médico
da ficção científica. É formidável!
Parece, todavia, que ele fez algumas poucas sessões de análise.
E agora, o quinto parágrafo.
“Tenho merecido em três continentes
a amizade de muitos devotos da Fênix; consta-me que o Segredo, a
princípio, pareceu-lhes frívolo, penoso, vulgar e (o que
é mais estranho) inacreditável. Não concordavam em
admitir que seus pais se houvessem rebaixado a tais práticas. O
estranho é que o Segredo não se tenha perdido, há
muito; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos
êxodos, chega, surpreendentemente, a todos os fiéis. Alguém
não vacilou em afirmar que já é instintivo”.
Borges libera o Segredo
É o coito. Borges nos distrai com
algumas bugigangas, como a goma arábica não indispensável
ao ato, conseguindo, porém, enigmatizar o coito literalmente. Aliás,
eu já havia me referido a esse texto na tentativa de enigmatizar
a sessão analítica para nós, assim como na descrição
do que faz parte do cotidiano de um certo número de analistas e
de analisantes sob o modo sectário.
É o segredo do texto que se apresenta como um saber a ser decodificado.
Com efeito, nos perguntamos: do que se trata? A goma arábica é
absolutamente definidora desse rito, ou podemos deixá-la de lado
a fim de apreender o de que se trata? O texto é feito de modo a
nos perguntarmos de que se trata. Qual é a referência?
Não é de hoje que eu tenho uma noção, tanto
desse texto quanto do seu charme. Dei-me conta de que, na notável
edição da Pléiade (tomo 1, página 1595), encontramos
uma nota assinalando que Borges liberou o segredo em uma entrevista com
um americano. E Borges confessa: “A primeira vez que ouvi falar
desse ato, quando ainda menino, fiquei escandalizado diante da idéia
de que minha mãe e meu pai o haviam praticado. Foi uma descoberta
assombrosa, não? Todavia, devo dizer que se trata de um ato de
imortalidade, um rito de imortalidade, não é?”
A grande habilidade desse texto está no fato de enigmatizar o ato
sexual, a relação sexual. Isso implica em levar o espírito
das Luzes ao limite, até o ponto em que o real racional se torna
fantástico.
O ponto limite do espírito
das Luzes
Desde o início o espírito
da Luzes formulou a existência costumes. Não há apenas
a nossa maneira de fazer, há outras. Há costumes essencialmente
diversos, segundo os povos e as tradições, e a humanidade
se divide entre diferentes costumes. O fato de eles serem múltiplos
mostra que os nossos, assim como os dos outros, são semblantes,
não têm um fundamento necessário na humanidade, são
invenções. Trata-se então de escolher a melhor invenção,
isto é, a que fizer menos mal a essa humanidade.
Esse é o ponto limite desse espírito porquanto o costume
de que se trata é o da humanidade como tal. Nesse texto, a obra
de carne é tratada integralmente como um fato de cultura. Ela é
imputada a uma seita, a uma parcialidade. Desse modo, é transferida,
imputada ao semblante.
A velha questão das Luzes formulada por Montesquieu: “Como
se pode ser persa?”, é a mesma formulada por aquele que,
de tanto aderir aos costumes de sua região, de seu tempo e de seu
povo, não mais consegue compreender por que o outro faz as coisas
de maneira diferente e se surpreende com isso. Sente-se tomado pelo sentimento
de estranheza diante dos costumes do estranho. De fato, no século
XVIII as pessoas se encantavam com os relatos dos viajantes, com o exotismo
que fazia a vida cotidiana virar semblante. De algum modo, o texto de
Borges é precedido pelo de Diderot, “Suplemento à
viagem de Bougainvile”, no qual ele se encanta ao nos mostrar a
existência de povos para os quais o ato sexual tem valores morais
e simbólicos inteiramente diferentes dos nossos. Por exemplo, um
padre chega a um determinado lugar e imediatamente o chefe lhe oferece
sua esposa ou sua filha. Diderot descreve como o padre, nos primeiros
tempos, se espanta diante de tais ofertas.
Como se pode ser um homem?
Aqui, Borges nos conduz a alguma coisa
semelhante à questão: “ Como se pode ser homem?”
É a própria condição humana que parece estranha,
enigmática, especialmente no nível do coito. Como é
isso de podermos nos entregar a algo tão incrível quanto
o que chamamos fazer amor?
Em “A seita da Fênix”,
a genialidade de Borges está no fato de ele abordar o sexo pelo
saber. Diz ele: “A Seita da Fênix”. Fênix é
o falo. O falo é um fênix. Vocês são o fênix
dos anfitriões desses bosques! O ato sexual consuma o desaparecimento
do falo e, depois de um lapso de tempo mais ou menos extenso, o falo,
supostamente, renasce de sua cinzas.
A humanidade faz do sexo um segredo. E mesmo quando ela não mais
o faz, há algo do sexo intrínseco a um segredo. Por essa
razão, a humanidade pode ser descrita com uma seita.
O paradoxo que anima esse texto está no fato de que, em matéria
de sexualidade, todos se comportam como se fossem os alguns que esconderiam
de todos um segredo, mas, na verdade, trata-se do segredo de todos. Por
isso, esse é um texto da época da psicanálise.
O “alguns à parte” que definitivamente passam para
o “todos”, para o universal, é um tema fundamental
de Borges.
Seu conto “O Congresso” – que Borges levou muito tempo
para escrever e que lhe era particularmente importante – descreve
uma conspiração muito especial fomentada por um proprietário
imobiliário que, diante de sua incapacidade para se tornar deputado
no Congresso do Uruguai, decide fundar o Congresso do Mundo no qual estariam
representados todos os homens de todas as nações. Ele nunca
agrupou mais do que um pequeno bando um tanto corrompido, algo como os
apóstolos ou como o bando de Freud.
O Congresso do Mundo
O que se faz quando se é o Congresso
do Mundo? Começa-se a falar de tudo e de qualquer coisa, inclusive
das coisas mais fúteis. Organiza-se listas, monta-se uma biblioteca
de obras de consulta. Busca-se a língua que conviria à reunião
do Congresso do Mundo: o esperanto, o volapuque ou o latim? Seria a linguagem
analítica de John Wilkins? Depois, Don Alejandro manda juntar os
livros no pátio e os faz queimar. Diz ele: “O Congresso do
Mundo começou no primeiro instante do mundo e continuará,
mesmo quando não passarmos de poeira. Não há nenhum
lugar onde ele não aconteça”. O Congresso do Mundo
está em toda parte, em cada um, em cada coisa, em cada acontecimento.
Ele leva o que resta do pequeno bando para passear à noite, em
carro aberto, através de Buenos Aires, não muito longe do
cemitério de La Recoleta. É um momento encantador, descrito
em um só parágrafo, uma espécie de revelação
de que o Congresso do Mundo ali está, não sendo preciso
esfalfar-se juntando livros e estudando línguas, tudo já
está ali sem precisar de nós, sem precisar que nos agitemos.
Há então uma espécie de revelação mística.
Cito-lhes apenas esta passagem: “O importante é ter sentido
que nosso plano, do qual tantas vezes zombamos”(o Congresso do Mundo
é também uma forma de ponto limite do espírito das
Luzes, uma universalidade sustentada por uma conspiração
que descobre, finalmente, ser inútil), “existia real e secretamente,
ele era o universo inteiro e nós mesmos”.
No começo, há os alguns que parecem crispados em suas particularidades.
Querem representar todos. Por fim, é a dissolução
do Congresso do Mundo no próprio mundo. De algum modo, o mundo
não precisa ser representado pelo Congresso do Mundo, não
precisa que alguns se dediquem a uma tarefa especial. Essa tarefa já
foi cumprida, já está lá. É o universo, o
grande todo.
Não podemos nos impedir de pensar na frase de Hegel: “O absoluto
quer estar junto a nós”. Nada da Fenomenologia do
espírito seria concebível se o absoluto não quisesse
e já não estivesse junto a nós. É o momento
místico.
O universal, o próprio universo, pelo simples fato de ser abordado
através do viés do particular – e quando este sabe
abolir-se, em seguida -, é o cotidiano. Cada coisa toma então
outro sentido. A essência de todas as sabedorias místicas
é fazer encontrar, no acontecimento mais fútil, o sentido
do absoluto que, aqui, é o segredo. É a bela conjunção
destas duas palavras: real e secretamente. É um segredo sem conteúdo,
um segredo que é apenas a significação do segredo,
tal como Lacan pôde dizer que o sujeito suposto saber não
é senão a significação do saber.
“A seita da Fênix” põe
em cena a pertinência da sexualidade e do segredo. É um segredo
praticado por todos permanecendo, porém, um segredo para cada um.
Para cada um há segredo na sexualidade. Conforme Borges nos faz
ver, é um saber que se mantém inteiro num ato realizado
por todos, como um rito, ou seja, sem se saber o que ele significa.
De toda a literatura, esse é o texto mais condensado, mais requintado
para pôr em cena o que quer dizer a não-relação
sexual, porquanto ela é segredo para os que a realizam (assim como
para os que não a realizam). Nesse sentido, e de maneira prodigiosa,
Borges indica, na última frase, que o rito vai ao encontro do instinto
porque, tal como o instinto, o rito é, por excelência, o
que se faz sem se saber o por que: “Alguém não vacilou
em afirmar que já é instintivo”.
A refutação do tempo
Exatamente nessa mesma linha se inscreve
a revelação mística, a revelação do
sem porquê. Vocês conhecem a citação de Angelus
Silesius: “A rosa é sem porquê”. É a revelação
apontada no final do “Congresso”: o mundo é sem porquê.
O mundo não precisa de nós, de nossa preocupação,
não precisa de nós se formos a preocupação,
o espírito empreendedor, se somos o desejo. É uma sabedoria
que se une à do Tao. Não é preciso agitar tanto.
Basta sair passeando, tudo o que acontece ali está. É o
tema do mundo e da falta, se quisermos. A falta é ilusória.
Não há senão o que é. E isso já é
dizer demais, porquanto evoca outra coisa. Poderíamos dizer, como
Heidegger: há o “há”.
O mundo, tal como aparece no final de “O Congresso”, é
o mundo material, aquele que percebemos em nosso passeio. Há ainda
as imaginações, as cogitações, as ficções,
é claro. De certo modo, tudo isso também o é. Razão
pela qual Borges chega definitivamente à univocidade do ser. Tudo
isso também é: o que cogitas, teus sonhos, a idéia
que te passa na cabeça, o instante.
Nessa perspectiva, o tempo se torna, por certo, problemático. Esse
Borges é o autor de um texto capital para nossa questão
deste ano e que comporta uma refutação do tempo. Aliás,
Borges é o autor de duas refutações do tempo (ele
próprio se encarrega de o dizer): uma, em 1944, outra em 1946.
Ele é malicioso a ponto de publicar os dois artigos juntos em sua
compilação, indicando claramente suas datas. O título
exato é: “Nova refutação do tempo”. Isso
implica, é claro, ter havido refutações do tempo
anteriores. A malícia está no fato de o próprio título
desmentir a tese exposta no texto. Ele começa dizendo não
acreditar nela, mas “com freqüência ela vem visitar-me
durante a noite, ou na lassidão do crepúsculo, com a força
ilusória de uma verdade primeira”.
O que seu texto demonstra com isso? Que, de fato, refutou-se o tempo.
Muitos filósofos refutam o tempo. As negações do
tempo pertencem ao idealismo filosófico, ao imaginário ou
à literatura. Ele o faz à sua maneira, com pequenos fragmentos
recolhidos por toda parte a fim de mostrar que a negação
do tempo é pensável, isto é, ela é obra do
pensamento e da imaginação. Mas qual é o efeito disso?
O de isolar o real do tempo. A nova refutação do tempo,
de Borges, mostra que o fato de ser refutado não impede o tempo
de ser. Ele é apesar da refutação, ou seja, como
impossível.
Por fim, é a refutação da refutação,
a refutação no real da refutação idealista
do tempo: “Para nossa infelicidade, o mundo é real e eu,
para minha infelicidade, sou Borges”.
Este não é exatamente o final do texto. Ele se conclui depois
da frase acima com a citação de um dístico de Angelus
Silesius: “Amigo, isso basta. Se você quiser ler mais, vai,
torne-se você mesmo a escrita e o ser (das Wesen)”.
Eu sou do tempo
Se forçarmos as coisas um pouquinho
a fim de conceitualizá-las, o que isso introduz? O fato de haver
uma quebra borgesiana do cógito. O cógito se vai. É
o idealismo, a refutação do real, a refutação
do tempo. Alguns intérpretes quiseram mostrar que o cógito
só tinha existência, para falar com propriedade, no instante.
Com efeito, foi quando Descartes tropeçou em seu cógito
que lhe surgiu a questão: “Penso, sou, mas por quanto tempo?”
Os comentadores quiseram mostrar que essa questão do “por
quanto tempo?” só poderia resolver-se passando pelo grande
Outro divino, pois o cógito só poderia assegurar-se de seu
ser no instante do pensamento. Para que o “por quanto tempo?”
continue, é preciso a demonstração da existência
de Deus.
Do lado do cógito não há tempo e, simultaneamente,
isso abre para a oni-temporalidade, para a co-presença de tudo
o que aconteceu e acontecerá: através do pensamento, “sou
o universo”, “sou todos os homens”. Borges se encanta
com o tema do cógito. Através do pensamento, nego o real,
faço literatura, refuto o tempo. O sum, porém,
joga sua partida à parte. Do lado do sum, sou do tempo.
Ninguém marcou, parece-me, de um modo tão puro e tão
preciso quanto Borges, a pertinência do “eu sou” ao
tempo, um “eu sou” feito de tempo e o tempo substância
do que sou.
O mortal comido pelo imortal
É demasiado simples dizer: “eu sou apenas Borges”.
Esse texto se completa de um outro, célebre, uma simples página
de Borges intitulada “Borges e eu”. Nele, o eu fala desse
Borges que, todavia, não sou eu, do qual digo o nome, os montes
de coisas que faz, sua vida apaixonante, enquanto passeio por Buenos Aires
e, além disso, imputo a Borges tudo o que faço. O “eu
sou apenas Borges”, que termina a refutação do tempo,
empalidece diante desta sublime divisão esboçada no final,
quando ele diz: “Sou o rio que me carrega, o tigre que me despedaça,
o fogo que me consome”. Aqui, ele diz: “Sou Borges e sou o
que devora Borges”.
Não é simplesmente uma divisão entre o ser e a aparência.
De um lado, Borges, o que tem o nome, o escritor, o ser do simbólico
e, ao mesmo tempo, o “tu me viste”, considerado um tanto duvidoso
pelo eu. Minhas qualidades, em Borges, tomam um certo aspecto teatral,
diz ele. De um lado, há o Borges imortal; do outro, há o
eu, o suporte, o material de Borges, o eu mortal. É como diz o
texto: “Estou condenado a desaparecer definitivamente, apenas algum
instante de mim poderá sobreviver no outro”. O mortal se
experimenta comido pelo imortal, a ponto de dizer: “Não posso,
como Diz Spinoza, perseverar no ser. Sou forçado a perseverar em
Borges, não em mim, desde que eu seja alguém”.
Em outras palavras há, de um lado, um eu que estende o tempo, que
é tempo; e há um outro que é significante e que,
por isso, é uma idealidade operando e fazendo do eu seu dejeto.
Aqui, o eu se experimenta como dejeto de sua própria imortalidade.
Cabe porém assinalar a primeira frase dessa página célebre
que, contudo, não é explicada: “É com o outro,
com Borges, que as coisas acontecem”. Isso significa que Borges
situa o acontecimento do lado do significante. Contrariamente ao que os
fúteis poderiam pensar, o acontecimento está do lado do
imortal, não do lado do fluxo temporal onde eu simplesmente faço
meus passeios. Para que algo aconteça, é preciso estar do
lado significante.
O fênix-falo
Façamos ainda um pequeno retorno ao fênix-falo. Designar
o falo como fênix é enfatizar a importância da potência
diante do tempo, o PH6
. O PH triunfa sobre o tempo. Triunfa sobre o tempo porquanto
ele renasce com a potência do mais, ainda.
Não há razão de se exaltar sobre esse assunto. O
tempo marca sua presença, é claro, no nível do particular,
mas não quando se trata da transmissão da vida e, em termos
precisos, destes dois aspectos presentes o tempo todo no que Borges nos
faz passar: o germe imortal e os corpos que definham e perecem. A vida
existe sob estas duas formas: o imortal da vida e o perecível sob
a forma corporal. Eu os remeto ao que insisti maciçamente no ano
passado, à suposta “Biologia lacaniana”7.
Assim, a relação da vida com o tempo é dupla. Ela
tanto cede a ele quanto o atravessa. E o que permanece na espécie,
pelo menos enquanto ela durar, é a celebração do
rito sexual, ou seja, a celebração desse não-saber
sobre o sexo ou do não-saber do segredo sexual, um não-saber
que se dá ares de saber – o que chamamos segredar sobre um
assunto – do segredo sexual, também vedado aos seus próprios
sectários. Por essa razão, buscamos sempre saber cada vez
mais sobre o tema desse segredo. É por haver uma pertinência
essencial entre o sexual e o segredo que o “mais, ainda” se
aplica a essa busca.
O conto de cinco parágrafos é tramado por uma história
percorrida em todos os sentidos, das mais antigas crônicas aos “dizem”
recolhidos em viagens. Todavia, o que é cingido é um fato
trans-histórico, a repetição misteriosa de mesmo
ato. Encontramos em “A nova refutação do tempo”
a seguinte proposição: “Não basta a repetição
de um único termo para deslocar e confundir toda a história
do mundo, fazer parecer que essa história não existe”.
Aliás, Borges, essa biblioteca ambulante, tinha para com a história
o mesmo recuo que Lacan, na última parte de seu ensino: não
tocar no H, no Machado da História . Aqui, o único termo
que se repete e é próprio para deslocar a história
do mundo fazendo parecer que tal história não existe, é
o rito sexual. Esta é a lição de “A seita da
Fênix”: que o coito anule a história do mundo e que
convirja sobre ele a natureza e a cultura, que ele dê acesso a um
ponto infinito onde as duas ordens paralelas se encontrem, no segredo,
fora do saber. Este é bem o caso de se dizer: “Perdoai-os,
porque eles não sabem o que fazem”.
A seita da sessão
Evoquei “A seita da Fênix” a propósito da psicanálise
como prática e como prática da sessão. Eu poderia
ter dito “A seita da sessão”. Por certo que se pode
abordar a psicanálise como prática sectária, no nível
do grupo analítico. É evidente que há um empuxo à
seita em psicanálise. Para apreendê-lo, é preciso
referi-lo ao que ela tornou uma questão sua e que se denomina:
o inconsciente. Freud pôde querer fazer dele um real digno da ciência,
assim como Lacan quis capturá-lo no matema. Mas resiste-se a isso,
o que foi situado por Lacan como sendo o que constitui a seita, propiciando
assim matéria para o sectarismo em psicanálise. Não
se deve pensar que a internacionalização da seita muda sua
natureza. Faz-se apenas um sindicato de seitas.
É uma abordagem muito limitada da questão, porque não
passa de conseqüências da relação com o saber
existente no discurso analítico. O fenômeno deve ser apreendido
em sua raiz, ou seja, na própria sessão analítica.
Há uma pertinência essencial entre a psicanálise e
a sessão. A sessão é, contudo, a forma mais importante
de sua prática. Não há psicanálise sem sessão
analítica. E uma sessão de psicanálise é um
encontro que se poderia qualificar, sobre o fundo de “A seita da
Fênix”, como um encontro entre a Gente do Segredo, a Gente
do Inconsciente, a Gente do Saber Suposto. Nesse caso, não se poderia
dizer que os lugares propícios para a seita da sessão seriam
as ruínas, um porão ou um vestíbulo. Considera-se
o consultório do analista como o lugar apropriado, embora Freud
tivesse uma certa liberdade quanto a isso: por vezes, ele passeava com
algum analisante (excepcionalmente! Não se trata de modo algum
de fazer com que o passeio se torne a forma princeps da prática
analítica). Tendo como pano de fundo “A seita da Fênix”,
pode-se dizer que as pessoas daquela seita se encontram regularmente e
abstêm-se de se entregar ao rito sexual.
Isso apenas evidencia a relação essencial entre a sessão
e a relação sexual, o que delicadamente chamamos regra de
abstinência, a qual completaria a regra da associação
livre. O que quer dizer essa regra senão o fato de ser preciso
que a relação sexual seja possível para que ela não
aconteça? Aliás, devemos reconhecê-lo, ela o é
pela própria presença da cama, que chamamos divã,
fazendo com que haja sujeitos que não podem deitar-se nela durante
a sessão analítica porque a conotação sexual
lhes é insuportável.
Imaginem como isso seria dito sob a escrita de Borges: eles se encontram
em um recinto onde há uma cama; apenas um deles se deita a fim
de que, nesse lugar, se estabeleça uma relação com
o saber. A relação com o saber mobiliza a libido e é
preciso que essa libido se dedique ao saber.
Tradução: Vera Avellar
Ribeiro
1Texto
estabelecido por Catherine Bonningue, do curso de J.-A Miller de 24 de
novembro de 1999, “Os usos do lapso”, ensino pronunciado no
quadro do Departamento de Psicanálise de Paris VIII. Traduzido
e publicado aqui, com a amável autorização de Jacques-Alain
Miller, a partir da versão que pode ser lida em Quarto Revue de
psychanalyse – ECF – ACF Bélgica, “Pouètes
de Pouasie. Lacan et la poésie”, abril de 2000.
2Jacques-Alain
Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise
(Paris VIII)..
3NT:
“O tempo é a substância da qual sou feito”.
4NT:
As traduções, tanto do título do conto quanto das
citações de Miller, foram extraídas de: Borges, J.L.
“A Seita da Fênix”, em Ficções, tradução
de Carlos Nejar. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p.p. 181-184. Não
se tratando de citação ou do título do conto, optamos
por traduzir Fênix, no masculino, referindo ao pássaro, considerando,
sobretudo, a aproximação feita por Miller, “falo-fênix”.
5
NT: O bando dos poucos irmãos felizes.
6NT:
vale lembrar que PH, que optamos por manter na tradução,
além de ser o dígrafo presente nas palavras phallus e phénix,
é também, em química, a abreviação
de potencial hidrogênio. Cf. Le Petit Larousse Illustré,
1997.
7Cf.
Miller, J.-A. (2000). Biologia lacaniana e acontecimento de corpo. La
Cause Freudienne, 44. Paris: Seuil. (1999).
8NT:
no orig., ne pas toucher à la H, à la Hache de l’Histoire,
em que Lacan se utiliza do jogo de palavras, possível em francês,
pela homofonia entre ache, a letra agá, e hache, machado, jogo
impossível de reproduzir em português.
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